Identidade entre ideia e volição na Ética de Espinosa

Autores

  • Juarez Lopes Rodrigues UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO

DOI:

https://doi.org/10.11606/issn.2447-9012.espinosa.2014.84461

Palavras-chave:

livre-arbítrio, intelecto, vontade, ideia, volição

Resumo

O objetivo desse artigo é explicitar, na medida do possível, as críticas formuladas por Espinosa em relação a Descartes, notadamente em sua doutrina do livre-arbítrio. As críticas são fundamentadas nas proposições 48 e 49 da parte II da Ética, além das objeções que a complementam. Essa análise se deterá especialmente na identificação que Espinosa realiza entre ideia e volição, sendo a ideia concebida como um ato de afirmação ou negação, de modo que a volição é constitutiva da ideia. Com essa análise, tentaremos evidenciar que a identidade entre ideia e volição não elimina o caráter voluntário da ação cognitiva do homem na filosofia espinosana. A crítica de Espinosa em relação ao conceito de vontade, entendida como uma faculdade abstrata, isto é um universal abstrato, visa a romper com a ideia de que a vontade é absolutamente livre. A vontade deixa de ser a faculdade que afirma a liberdade entre contrários e torna-se a afirmação da livre necessidade. É essa concepção de uma faculdade universal e abstrata que acarretará ilusão do livre-arbítrio.

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Biografia do Autor

  • Juarez Lopes Rodrigues, UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO

    FFLCH

    HISTÓRIA DA FILOSOFIA MODERNA

Referências

Contrariamente ao que afirmara Descartes, pois o filósofo francês admite a existência de três substâncias (Deus - substância pensante - substância corpórea), o homem é uma substância, criada por Deus e composta pelas substâncias pensante e corpórea, sendo que, por ser uma substância, pode ser causa livre e total de suas ações.

Apesar de Espinosa não admitir o livre-arbítrio ao homem, haverá liberdade, porém, em outro registro: “liberdade não é livre decisão de uma vontade, e sim a necessidade interna de uma essência de existir e agir segundo a necessidade das determinações que lhe são próprias” (Chaui, p. 78).

No §9 da Quarta Meditação, Descartes afirma o poder conferido à vontade: “Pois consiste somente em que podemos fazer uma coisa ou deixar de fazer (isto é, afirmar ou negar, perseguir ou fugir) ou, antes, somente em que, para afirmar ou negar, perseguir ou fugir às coisas que o entendimento nos propõe, agimos de tal maneira que não sentimos absolutamente que alguma força exterior nos obrigue a tanto” (Descartes, p. 118).

No art. 32 dos Princípios, Descartes afirma: “Todas as maneiras de pensar que experimentamos em nós podem reduzir-se a duas gerais: uma consiste em apreender pelo entendimento e a outra em determinar-se pela vontade. Assim, sentir, imaginar e mesmo conceber coisas puramente inteligíveis são formas diferentes de apreender; mas desejar, ter aversão, confirmar, negar e duvidar são formas diferentes de querer” (Descartes, p. 39).

Cf. Espinosa: “A bem da verdade, se não tivessem experimentado que fazemos muitas coisas das quais depois nos arrependemos, e que frequentemente, ao nos defrontarmos com afetos contrários, vemos o melhor e seguimos o pior, nada os impediria de crer que tudo fazemos livremente” (Espinosa, EIII SP2).

Cf. Chaui: “A ignorância dessa determinação necessária, ao obscurecer o apetite/desejo como causa eficiente, é responsável pela imagem da vontade como livre-arbítrio; essa mesma ignorância constrói a imagem dos fins como aquilo que move o apetite/desejo, quando, na verdade, conforme a definição espinosana, o apetite/desejo é seu próprio fim” (Chaui, p. 223).

Espinosa na P43 já fizera a crítica da ideia considerada como pintura em contraposição à ideia verdadeira: “Pois ninguém que tem uma ideia verdadeira ignora que uma ideia verdadeira envolve suma certeza; com efeito, ter uma ideia verdadeira não significa nada outro que conhecer uma coisa perfeitamente, ou seja, da melhor maneira; nem decerto pode alguém duvidar dessa coisa, a não ser que acredite uma ideia ser algo mudo, ao feitio de uma pintura num quadro, e não um modo de pensar, quer dizer, o próprio inteligir. [...]” (Espinosa, EII SP43).

Cf. Gleizer: “A expressão 'imagens, como as que se produzem no fundo dos olhos ou, se se quiser, no meio do cérebro', bem como o emprego do verbo 'pintar', reenviam manifestamente ao artigo 35 das Paixões da alma, onde Descartes explica como, na visão que temos de um animal, 'a luz refletida de seu corpo pinta duas imagens dele, uma em cada um de nossos olhos, e essas duas imagens formam duas outras, por intermédio dos nervos ópticos, na superfície interior do cérebro... as duas imagens existentes no cérebro compõem uma única na glândula que, agindo imediatamente contra a alma, lhe faz ver a figura desse animal” (Gleizer, p. 34).

Espinosa nega a possibilidade de interação causal interatributiva conf. E II, P5 e P6.

Cf. Landim: “Clara é uma ideia que torna patente a presença do objeto, do qual é ideia, à consciência atenta de um sujeito. Distinta é a ideia completamente clara, isto é, é a ideia que apresenta o seu objeto de uma maneira suficientemente clara e precisa para que ele possa ser distinguido de qualquer outro objeto” (Landim, p. 102).

Cf. Landim: “Assim, se o critério da clareza e da distinção tornou plausível a relação de correspondência entre as ideias e as coisas que elas representam, sem o apelo a uma impossível comparação das ideias com as coisas, a existência do Deus Veraz legitimou o critério da razão, garantindo assim a possibilidade da ciência: um conjunto ordenado de conhecimentos certos, estáveis e verdadeiros” (Landim, p. 125).

Espinosa já enfatizara esse engano no §89 do TIE: “Afirmamos e negamos muita coisa porque a natureza das palavras, não a natureza das coisas, permite afirmá-lo ou negá-lo; ora, ignorando-se a natureza das coisas, facilmente tomaremos o falso pelo verdadeiro” (Espinosa, §89, p. 54).

“Que o terceiro modo de percepção (no contexto do TIE) não é excluído por Espinosa, mas re-situado no contexto da ciência, está comprovado pelo tratamento dado ao segundo gênero de conhecimento na Ética, isto é, àquele que conhece adequadamente as propriedades que se encontram igualmente nas partes e no todo (em suma, as noções comuns), desde que se compreenda que essas propriedades foram deduzidas de uma causa (a potência dos atributos da substância absolutamente infinita) e que com elas ainda não se conhece qualquer essência singular da coisa” (Chaui, p. 652).

Cf. Gueroult: “Na perspectiva imaginativa, a ideia se põe somente como percepção de uma coisa existente na duração, e, se alienando nessa coisa, crê a querer. Na perspectiva do intelecto, a ideia se põe antes de tudo como ideia da ideia e, se descobrindo ela mesma, sabe que ela não quer a coisa, mas que ela se quer ela mesma” (Gueroult, p. 494).

Essa análise também é realizada no §84 do TIE: “Assim, pois, fizemos a distinção entre a ideia verdadeira e as outras percepções, e mostramos que as ideias fictícias, falsas e outras têm origem na imaginação, isto é, vêm de certas sensações fortuitas e, por assim dizer, soltas, que não nascem da própria força da mente, mas de causas externas, conforme o corpo, quer no sono quer em vigília, é afetado por diversos movimentos”. (Espinosa, p. 51).

Cf. Chaui: “Toda definição real é nominal, mas a definição nominal pode ser ou verdadeira (real, de essência) ou apenas concebível (não contraditória, segundo o que foi estipulado pelos usuários de uma língua ou linguagem)” (Chaui, p. 683).

Cf. Gleizer: “O fato de a mente construir espontânea e ativamente suas ideias adequadas não significa que essas não sejam construídas como representações de uma realidade que é, ela também, produzida de maneira autônoma pelo seu respectivo atributo” (Gleizer, p. 60).

Cf. Descartes: “Pois, por exemplo, se considero a faculdade de conceber que há em mim, acho que ela é de uma extensão muito pequena e grandemente limitada e, ao mesmo tempo, eu me represento a ideia de uma outra faculdade muito mais ampla e mesmo infinita; e, pelo simples fato de que me posso representar sua ideia, conheço sem dificuldade que ela pertence à natureza de Deus” (Descartes, §9, p. 118).

Cf. Teixeira: “Consiste em afirmar no juízo - que para ele é um ato da vontade - mais do que aquilo que o intelecto permite. Julgar antes que o entendimento tenha alcançado a evidência - eis o que é a precipitação.” (Teixeira, p. 21).

“Em HP, 16, quando se discute se o cético tem uma regra doutrinária, diz Sexto Empírico, 'o cético não adere a dogmas se entendemos por 'dogma', a assentimento a uma proposição não-evidente'. O que parece então especialmente problemático para o cético são os juízos acerca daquilo que vai além de nossa experiência imediata e direta de algo, ou seja, a pretensão de fazer uma afirmação sobre o não-evidente ou oculto (tò adelon)” (Marcondes, p. 71).

Cf. Gleizer: “Posto que toda ideia envolve uma afirmação, a dúvida não consiste na supressão da afirmação da ideia, mas na instabilidade lógica ocasionada pela presença de uma outra afirmação que lhe é oposta. Essa instabilidade lógica significa que, na situação epistêmica da dúvida, a mente torna-se incapaz de chegar a uma conclusão determinada sobre o objeto da dúvida” (Gleizer, p. 209).

Cf. Gueroult: “Dessa forma, quando ele estabelece, na proposição 49, a parte positiva de sua teoria, Espinosa devia ser naturalmente conduzido, para demonstrar que a essência de toda ideia enquanto ideia envolve uma volição, a considerar de preferência uma ideia do intelecto, ou seja, uma ideia clara e distinta e verdadeira” (Gueroult, p. 504).

Conforme axioma da Parte IV da Ética: “Na natureza das coisas, não é dada nenhuma coisa singular tal que não se dê outra mais potente e mais forte do que ela. Mas, dada uma coisa qualquer, é dada uma outra mais potente pela qual aquela pode ser destruída” (Espinosa, EIV axioma).

Cf. Espinosa: “Passo finalmente, à outra parte da Ética, que versa sobre a maneira, ou seja, a via que conduz à Liberdade. Nela me ocuparei, portanto, da potência da razão, mostrando o que a própria razão pode sobre os afetos e, a seguir, o que é a Liberdade da Mente ou felicidade; e com isso veremos o quanto o sábio é mais potente do que o ignorante. Entretanto, aqui não cabe dizer de que maneira e por qual via o intelecto deve perfazer-se, nem, ademais, com que arte o Corpo deve ser cuidado para cumprir corretamente seu ofício, pois isto concerne à Medicina e aquilo à Lógica”. Um outro momento em que essa característica de aporte é evidenciada quando Espinosa evoca o opúsculo no esc. da P40 da parte II a respeito dos axiomas fundados sob as noções segundas: “Mas, pois que consagrei outro Tratado a elas, e também para não produzir fastio por causa da excessiva prolixidade do assunto, decidi aqui abster-me disso” (Cf. Espinosa, EIV Praef).

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Publicado

2015-06-09

Edição

Seção

Artigos

Como Citar

Rodrigues, J. L. (2015). Identidade entre ideia e volição na Ética de Espinosa. Cadernos Espinosanos, 31, 89-116. https://doi.org/10.11606/issn.2447-9012.espinosa.2014.84461