Cantam pretos, dançam brancos:
Coreografia da colonização em Nha Fala, de Flora Gomes1
Fabiana Carelli2
Resumo
O objeto de estudo deste artigo é o filme Nha Fala, título que, em crioulo da Guiné-Bissau, país africano de língua oficial portuguesa, quer dizer, simultaneamente, “minha voz”, “meu destino”, “minha vida” e “meu caminho”. Essa produção será analisada segundo aspectos narrativos (enredo e função) e de gênero (comédia musical), buscando interpretar a questão da tradição tanto no filme quanto na cultura guineense contemporânea.
Abstract
This article aims to analyze the Guinean film Nha Fala according to its narrative (plot and function) and genre (musical commedy) aspects, searching for an interpretation of the problem of tradition both within the film and the Guinean contemporary culture. The title Nha Fala, in Guinean creole, means at the same time “my voice”, “my destiny”, “my life” and “my path”.
PALAVRAS-CHAVE: Nha Fala; Flora Gomes; Guiné-Bissau; Cinema; Musical
KEYWORDS: Nha Fala; Flora Gomes; Guinea-Bissau; Cinema; Musical
Para mim, a África tem duas faces: uma virada para o passado, a outra para o futuro. É um continente constantemente dividido entre o peso das origens e a força dos desejos, entre a colonização e a independência, entre a tradição e a modernidade (Flora Gomes).
Trailer do filme Nha Fala

O filme Nha Fala (Portugal/França/Luxemburgo/Suíça, 2002, 110 min, cor) conta a história de Vita, moça de um país “da África continental” (como declara a personagem) não completamente definido no filme, talvez Guiné-Bissau ou Cabo Verde, que está de partida para a Europa, onde prosseguirá seus estudos. Em África, ficará o namorado Yano, que ocupa um status proeminente na região devido à prática de operações comerciais escusas e a jogadas políticas duvidosas. Vita abandona Yano rumo a Paris e despede-se da mãe e da avó, levando consigo cartas e encomendas para os conterrâneos exilados e uma maldição familiar: a de não poder, em hipótese alguma, cantar, sob pena de morrer por isso. Na França, Vita conhece Pierre, músico por quem se apaixona e que fará sua vida mudar radicalmente (Figura 1).

Nha Fala é o quarto longa-metragem dirigido por Flora Gomes, que, antes dele, já havia lançado Mortu Nega (Aqueles que a morte negou, 1988), Udju Azul di Yonta (Olhos azuis de Yonta, 1991) e Po di Sangui (Pau de Sangue, 1996). Co-produzido por Portugal, França, Luxemburgo e Suíça, o filme pode ser considerado caríssimo para os padrões do cinema africano: seu orçamento rondou os 2 milhões de euros, como informou o Jornal de Notícias de Portugal, logo após sua apresentação no Festival Internacional do Filme de Amiens, França, em 2002, onde foi distinguido com dois prêmios (JORNAL DE NOTÍCIAS, 2002).

Figura 1: Vita e Pierre na França

Como aponta Fernando Arenas, em ensaio dedicado ao cinema africano de língua portuguesa, Nha Fala busca, em muitos de seus aspectos, evocar o espírito de uma “África que ri” (ARENAS, 2011, p. 126), escapando dos clichês de pobreza, destruição, miséria e abandono que vem acompanhando o continente ao longo dos séculos. Em conversa com alunos da Universidade de Minnesota, em 2003, Flora Gomes declarou, a respeito do filme:

[Em Nha Fala], quis mostrar que [em África] nos casamos, dançamos, etc. Quis mostrar uma África positiva, que existe. Quando se ouve falar de África, [as pessoas em geral] acham que é só sangue e moscas. Neste filme quis mostrar a explosão de alegria, a dinâmica de uma África que vai ao encontro deste novo século. (GOMES, 2003).

Qualquer olhar (ainda que desatento) sobre o filme e várias das resenhas que se escreveram sobre ele percebem isso. Nha Fala une, numa mesma construção fílmica, a beleza cenográfica de Paris e especialmente da cidade do Mindelo, em Cabo Verde, onde foram feitas as locações externas da filmagem, com seu casario colonial em contraste com o azul profundo do oceano e do céu; a vivacidade dos figurinos de Rosário Moreira e Virginia Vogwill; a alegria dançante da trilha sonora do camaronês Manu Dibangu; a marcante atuação da atriz senegalesa Fatou N’Diaye como a protagonista Vita; e uma fotografia multicolorida e vibrante, cheia de nuances, contrastes e significados (YOUNG, 2002, p. 31)3.

Mas, acima de tudo, e mais importante para as considerações que tecerei aqui, Nha Fala pertence ao gênero das comédias musicais - com a já referida trilha sonora original composta por Manu Dibangu e coreografia da portuguesa Clara Andermatt -, tipo de filme raro entre os países africanos, mais afeitos a criações em chave mais realista e dramática4. A escolha do gênero musical por Flora Gomes, além de remeter à sua intenção de mostrar o lado alegre e dançante do continente, também faz do filme uma forma complexa em relação a pelo menos um aspecto que ele ao mesmo tempo tematiza (em seu enredo) e discute (em sua estrutura): a questão da tradição.

Tradição e talento individual

No capítulo dedicado a comentar as culturas nacionais em Os condenados da terra, Frantz Fanon visionariamente pondera que o desenvolvimento das culturas nacionais nas ex-colônias africanas, após suas independências, estaria estreitamente vinculado a uma discussão séria sobre o problema da tradição em seus contextos específicos. Para Fanon, após séculos e séculos de achatamento das culturas locais, seria natural que os intelectuais nativos buscassem um retorno às suas formas mais tradicionais, como modo de descobrir e resgatar suas “verdadeiras” identidades culturais:

[...] essa busca apaixonada por uma cultura nacional que existia antes da era colonial encontra sua razão legítima na ansiedade, compartilhada pelos intelectuais nativos, de se destacarem da cultura ocidental, em meio à qual todos correm o risco de serem varridos da cena. Porque percebem que se arriscam a perder suas vidas e, portanto, que podem ser dados como perdidos para o povo, esses homens, de cabeças quentes e ira nos corações, implacavelmente determinam que uma vez mais se renove o contato com as fontes mais antigas e pré-coloniais de seu povo. (FANON, 1966, p. 169-70. Trad. minha).

E Fanon vai além, arriscando uma interpretação psicocultural (sabemos que o teórico martinicano foi psiquiatra) desse movimento, no qual ele também se inclui:

Talvez essa procura apaixonada e essa ira sejam mantidas, ou pelo menos conduzidas, pela esperança secreta de descobrir, para além da miséria atual, da autopiedade, da resignação e da retratação, uma era verdadeiramente bela e esplêndida cuja existência nos reabilite em relação a nós mesmos e aos outros (FANON, p. 169-70).

A longa citação de Os condenados da terra se justifica aqui porque acredito que toda a obra cinematográfica de Flora Gomes discute o papel da tradição no contexto cultural das novas nações africanas. Especialmente em Nha Fala, essa discussão atravessa o filme verticalmente, desde o ponto de vista mais superficial, do enredo, até alcançar questões formais bem mais complexas. Como procurarei demonstrar, a relação de Flora Gomes com as formas da tradição africana não são esquemáticas e podem às vezes causar polêmica, caso observemos seus filmes de modo ingênuo. Em minha opinião, para além da superficialidade, Flora Gomes propõe em sua obra fílmica discussões bem pouco simplórias a respeito da constituição cultural das formas nacionais de que seu trabalho vem a tratar. Lembro aqui que o conceito de nação em África é problemático, já que estamos falando de fronteiras estabelecidas arbitrariamente e de fora, pelas ex-metrópoles, que historicamente desconsideraram a diversidade étnica, linguística e cultural do continente em função de seus interesses particulares. Esclareço também que compreendo nação da maneira como a define Benedict Anderson, ou seja, como “uma comunidade política [e cultural] imaginada” (ANDERSON, 2008, p. 32). No contexto das literaturas e dos cinemas africanos produzidos e/ou co-produzidos nos países africanos de língua oficial portuguesa, isso diz respeito a como cada produtor cultural imagina – ou reimagina – sua nação, frente a um mundo que se moderniza, se globaliza e se enriquece a cada dia, a partir de um lugar de miséria econômica, ausência de condições mínimas de sobrevivência, violência e expoliação (este aspecto é destacado com ironia em Nha Fala, no número musical em que as mulheres da cidade dão conselhos à protagonista Vita, de partida para a Europa).

Um dos aspectos da tradição no filme Nha Fala diz respeito ao enredo. Na história contada pelo filme, Vita é vítima de uma maldição familiar que atinge as mulheres, a qual lhe é comunicada pela mãe que, por sua vez, a ouve da avó: as mulheres dessa família não podem cantar, senão morrem. Vem daí, portanto, a admoestação da mãe de Vita momentos antes de sua partida: “Promete, minha filha. Promete que não vais cantar”. Toda a intriga de Nha Fala gira em torno desse aspecto: Vita viaja à Europa, apaixona-se pelo músico Pierre, descobre sua própria voz, grava um CD e entra para as paradas de sucesso europeias, enriquecendo – e a Pierre - com isso. Paira sobre Vita, no entanto, a ameaça da morte – e é por isso que ela resolve voltar à África, encenar seu próprio funeral e, finalmente, libertar-se da maldição – tradicional – que a vitimava. Em outras palavras, Vita talvez parafraseie de algum modo aquilo que postulou T. S. Elliot em seu célebre ensaio, substituindo a tradição por seu talento individual e recriando sua história. Ela “se atreve” – “Bo tem di ousa”, diz a canção em crioulo.

Figura 2: Yano com carro esporte e celular

Vários são os aspectos a se destacar sobre o enredo de Nha Fala (o roteiro do filme é de autoria de Flora Gomes e de Franck Moisnard, assim como as letras das canções interpretadas nos números musicais). Ligados à questão da tradição, estão os nomes e as personagens da mãe e da avó, que atendem somente por seus títulos e atuam apenas em sua função de transmissoras da cultura familiar; e o de Yano, o namorado, talvez uma referência ao deus latino Janus, porteiro celestial, cujas duas faces olhavam uma para o passado e a outra para o futuro e cujo nome deu origem ao do mês de Janeiro (CHEVALIER; GHEERBRANT, 1990, p. 512). Jano era também o deus latino das indecisões, porque cada cabeça falava uma coisa ao transeunte que lhe perguntava algo, Apesar de aparentemente referir algo próprio da tradição ocidental, não das africanas, tal interpretação releva o traço principal do personagem Yano: preso à terra e suas tradições (ele não migra), Yano ao mesmo tempo anda em carro esporte vermelho e arma falcatruas comerciais para ganhar dinheiro, posição política e o coração da protagonista Vita (Figura 2).

Figura 3: Busto de Amilcar Cabral

Além deles, há três personagens de nomes emblemáticos: Vita (Vida), o Sr. Sonho (que morre aos oitenta e tantos anos, de velhice, numa longevidade muito maior do que a média do africano comum, a cujo velório Vita comparece antes de viajar para a Europa e cujo rosto nunca vemos) e Caminho, um dos rapazes que carrega – por anos – a estátua de Amílcar Cabral entre as ruas da cidade, em busca de um destino final para o busto do herói da independência de Cabo Verde e da Guiné-Bissau (Figura 3). Simbolicamente, no desenvolvimento do enredo, Vita enterra o Sonho para buscar um Caminho, para si e para a terra onde nasceu, abandonando Yano, representante de um passado que tem dois rostos, um voltado para a modernidade aproveitadora e espoliante, outro para a manutenção de práticas antigas e obsoletas de sobrevivência numa sociedade africana pós-independente.

Nesse processo, Vita tem de preencher de sentido seu próprio nome: ameaçada de morte pela tradição familiar, e sem poder libertar totalmente seu dom de cantar sem morrer, ela tem de desaparecer simbolicamente, desafiando o passado da tradição, para renascer no presente, perfazendo seu caminho em direção ao futuro por meio de uma desconstrução engenhosa dessa mesma tradição. Imageticamente, o ritual fúnebre engendrado por Vita parece, a olhos ingênuos, um delírio surreal de toques fellinianos (cineasta que Flora Gomes declaradamente guarda entre suas principais referências cinematográficas – GOMES, 2003), com a protagonista sendo carregada dentro de um caixão em forma de borboleta (crisálida que se abre ao o voo) para dentro de uma festa de música e dança na qual é lançado o desafio, em crioulo: “Atreve-te!” (Figura 4)

Figura 4: Caixão de borboleta

O problema desse atrevimento, nascido no momento em que, no telhado de um apartamento em Paris, com a Praça da Bastilha e a estátua do Génie de la Liberté iluminada ao fundo, depois da primeira noite de amor com Pierre, Vita finalmente “se atreve” a contradizer a maldição e soltar a voz – o problema desse atrevimento é que, para os defensores de uma África mais “autêntica”, por assim dizer, Vita abandona muito facilmente e com muita alegria suas origens. Além disso, ela o faz depois de se entregar a um europeu, acabando por cumprir o destino sexual clichê das mulheres de África, ou seja, o de deitar-se com o (ex?) colonizador. Ainda por cima, Vita cantará em francês, e é assim que alcançará o sucesso, mediante insistentes pedidos de Pierre para que cante, exponha sua voz ao público, faça uma primeira gravação de estúdio ainda naquela noite etc., com o argumento de que “je suis musicien”, ou seja, de que ele, como músico, não poderia deixar passar uma oportunidade como aquela, já que “há muito tempo estava procurando” por uma voz assim (Figura 5).

Figura 5: Genie de la liberte

Esse aspecto nos remete a uma questão bastante comentada sobre o filme de Flora Gomes e alvo de críticas ferrenhas por parte de alguns africanistas, especialmente no Brasil: o seu caráter de “conto de fadas”. Fernando Arenas, em “Lusophone Africa on screen”, afirma de modo genérico que,

no seu nível mais básico, Nha Fala funciona como um conto de fadas sobre uma mulher jovem, talentosa e estonteantemente bela da África Ocidental (Vita) que consegue alcançar seus sonhos deixando sua terra de origem e se tornando uma cantora de sucesso em Paris, para finalmente retornar ao seu país, não obstante a maldição familiar que proíbe todas as mulheres de sua família de cantar, sob pena de morrerem depois. (ARENAS, 2011, p. 126)

O jornalista Norbert Creutz, do Le temps suíço, é ainda mais específico. Para ele, “Nha Fala bem poderia ser uma variação do conto de Andersen ‘A pequena sereia’, expurgado de todo o seu fatalismo nórdico” (CREUTZ, 2003).

Seja Vita uma variação de “Cinderela” ou de “A pequena sereia”, porém, algo é preciso ser dito a respeito de seu “príncipe” Pierre, apontado em muitas resenhas como simpático, afável, bom-moço. Caracterizado no filme como homem gentil e delicado, que é “pedido em casamento” pela talentosíssima Vita e a segue para a África, colocando-se, à primeira vista, em uma condição subalterna à da noiva, Pierre, se observamos bem, é construído, enquanto personagem, num viés irônico. No fundo, mesmo que aparentemente humilde e dedicado, ele continua sendo o europeu que faz uso da mulher africana para enriquecer e alcançar o sucesso através de seus talentos. Ele é quem provoca e incita Vita a abandonar sua tradição. Isso não virá a ser necessariamente ruim para ela, claro. Mas a postura assumida por Pierre não parece totalmente inocente, especialmente se o observarmos em espelho em relação a seus pais. Estes, ao conhecerem Vita, comportam-se da seguinte maneira: o pai diz “Ah, a namorada de meu filho!”, ao que Vita retruca: “Como adivinhou?” A resposta é irônica: “Foi seu sotaque parisiense, por certo...”, quando é óbvia a diferença de cor da pele, de origem, etc. Já a mãe de Pierre, nesse encontro, declara, a certa altura: “Já estou começando a me acostumar com a ideia de ter netos um pouco menos claros que eu”. Aparentemente leves e engraçados, os diálogos revelam não apenas a total consciência, por parte dos pais de Pierre e da sociedade parisiense que os rodeia, das diferenças étnicas e culturais do casal, como também a relação de sutil ironia entre o que se declara e o que se subentende na própria textualidade do filme. No contexto de Nha Fala, isso significa dizer também entre o que se fala e o que se canta e dança. Muitas vezes, o discurso irônico construído pelo filme se estrutura na relação entre aquilo que a imagem mostra e que a fala e o canto desconstroem, ou entre o que é narrado e o que é encenado nos números musicais.

A partir dessa visão irônica, o aparente caráter bondoso e inocente de Pierre também é posto em xeque, revelando a consciência de Flora Gomes a respeito do jogo de aparências e dos conflitos que jazem no bojo das relações encenadas ali (muito embora o filme enuncie em vários momentos, é verdade, o desejo de que novas relações sejam forjadas no limiar do novo século). Nesse sentido, se na superfície o filme apresenta uma “noção altamente romantizada das relações pós-coloniais entre Europa e África” (ARENAS, p. 128), parece jazer no subtexto uma crítica sutil a esse mesmo discurso – quase, por assim dizer, uma metacrítica.

Cantam pretos: musicais em África?

Nos vários comentários que foi convidado a fazer, por ocasião do lançamento de Nha Fala e mesmo depois, Flora Gomes nunca deixou de ressaltar o caráter alegre e festivo do filme. Para ele, esse caráter tem a ver com uma experiência genuinamente africana de estar no mundo, muitas vezes encoberta por um discurso triste, crítico, cinzento e frequentemente estrangeiro a respeito das profundas mazelas do continente (ANTUNES, 2004).

Sendo assim, a decisão do diretor de levar a cabo a criação de uma comédia musical no contexto africano parece estar ligada à necessidade de mostrar ao mundo, pela via do cinema, algo que remete a um caráter, às vezes, encoberto pelo discurso oficial, mas muito próprio do que seria uma África mais “autêntica” para Flora Gomes: a alegria, expressa muitas vezes na música e na dança. Numa leitura superficial, canto e dança frequentemente nos remetem a formas culturais africanas pré-coloniais, orais e, muitas vezes, tribais. Nesse sentido, fazer um musical africano seria também, sob o ponto de vista das escolhas formais feitas pelo criador do filme (entre elas, a do gênero e sua sintaxe), voltar às origens. Ou, em outras palavras, resgatar a tradição: ei-nos novamente diante do problema que nos vem preocupando desde o início desta reflexão, agora sob o prisma da forma.

Ocorre, porém, que a maneira como Flora Gomes escolhe contar sua história, por meio, sim, do canto e da dança, não se parece muito com um resgate de modos tradicionais de canto e dança do passado cultural do continente africano. Pelo contrário: ao espectador desavisado, os números musicais de Nha Fala, em si, não causam o estranhamento que ele provavelmente experimenta diante da língua falada ali e, talvez, do espaço apresentado, do casting de maioria negra e do caráter surreal de algumas cenas – estranhamentos esses que vão se amenizando no decorrer do filme. Em relação aos números musicais - alegres, bonitos, divertidos, enfim -, o espectador comum simplesmente adere. Os números musicais prendem, divertem, chamam a atenção. Em outras palavras, eles entretêm, fazendo com que o filme seja leve, engraçado, fácil de se ver. É por isso que, em minha opinião, o tipo de musical representado em Nha Fala, guardadas as especificidades que mencionarei aqui, parece remeter a alguns subgêneros do musical hollywoodiano (Figura 6). E isso é, ao mesmo tempo, força e perigo, como veremos.

Figura 6: Musical

Em seu artigo sobre o musical no Handbook of American Film Genres, James M. Collins afirma que, muito embora os musicais hollywoodianos tenham sempre sido considerados “puro entretenimento”, principalmente por sua desconexão com formas mais realistas de narrar, mesmo

filmes desavergonhadamente voltados ao puro entretenimento são baseados num complicado estilo visual-narrativo que integra o uso do espaço e do espectador de um modo sem paralelos, bem como integram uma aguda consciência da cultura contemporânea que os rodeia e das tradições históricas que os precedem. (COLLINS, in GEHRING, 1988, p. 269-284)

E completa: “Apreciar os musicais não requer esforço; mas avaliar seu significado cultural é uma das tarefas mais desafiantes do estudo do cinema” (COLLINS, p. 269).

James Collins lembra ainda que, por seu caráter não-realista (o espectador sabe que, na chamada vida real, as histórias não são contadas por meio de números de canto e dança intercalados em sua rotina), o musical é um gênero que cria um hiato entre a obra e o público, interferindo no processo de identificação entre espectador e filme. Em outras palavras, o espectador do musical sabe que está diante de uma obra de fantasia. Nesse sentido, é que a função primeira do musical seria proporcionar uma “fuga da realidade”, ou seja, o “puro entretenimento” (COLLINS, p. 270).

Em Nha Fala, no entanto, acredito poder afirmar que esse aspecto é problemático e também conscientemente problematizado. Problemático porque, para grande parte dos defensores das chamadas culturas africanas, mesmo os mais bem-intencionados, um africano criando um filme sobre África apenas para agradar e entreter seria o cúmulo da alienação. Na opinião dessas pessoas (e já tive oportunidade de apresentar Nha Fala a diversos públicos, especialmente no Brasil, com reações semelhantes), o excesso de cores, os números musicais, os traços fantasiosos, a relação entre a protagonista e um europeu, a positividade e a alegria do filme ofendem, porque apenas reforçariam os velhos estereótipos eurocêntricos a respeito de uma África colorida, alegre, festiva, etc. Para essas pessoas, fazer de uma parte do continente um musical hollywoodiano, então, seria o mais absurdo e o mais comprometido dos erros, ideologicamente falando.

Porém – e é neste aspecto que o filme, a meu ver, problematiza -, o artigo de James Collins citado anteriormente lembra que mesmo os musicais clássicos de Hollywood não se estruturavam todos da mesma maneira. Para Collins, houve três grandes tipos de musicais clássicos em Hollywood: aqueles ligados à tradição da opereta (produzidos pela Paramount nos anos 1930), com enredos de contos de fada, números musicais em geral centrados nos duetos românticos, uso estático do espaço e extremamente teatrais (COLLINS, p. 271); os musicais produzidos pela Warner Bros., radicalmente diferentes do ponto de vista estético, que tomavam como modelos os shows da Broadway e a música popular, com grande movimentação de espaços, muitas cenas de bastidores, números musicais que se seguiam de modo mais “natural” à narrativa fílmica e o uso de grandes grupos corais nas performances, numa tentativa de captar melhor a “vida das ruas” e se revestir de um caráter mais “popular” (COLLINS, p. 272); e um terceiro tipo, de caráter híbrido entre a opereta e o musical de bastidores. A grande diferença entre os primeiros e este último é que, enquanto nos dois tipos anteriores o enredo em geral era “interrompido” pelos números musicais, no tipo híbrido (representado tipicamente pelos filmes de Fred Astaire e Ginger Rogers), os números musicais passaram a assumir uma função na própria narrativa:

O filmes de Astaire e Rogers vieram a apresentar uma relação inteiramente diferente na qual as canções e as danças se tornaram completamente narrativizadas – os desenvolvimentos mais importantes nos relacionamentos entre os personagens começaram a acontecer não apenas quando eles dançavam e cantavam juntos, mas porque eles o faziam juntos (COLLINS, p. 274. Itálicos do autor).

Esses filmes também introduziram uma nova relação entre obra e público, uma vez que, nos tipos anteriores, especialmente nos musicais da Warner, os números musicais eram endereçados a uma audiência essencialmente diegética (ou seja, a outros personagens, ainda que secundários, do próprio filme), enquanto que, no tipo híbrido, passa a predominar a performance musical dos atores diretamente dirigida ao público extradiegético, ou seja, à audiência que assiste ao filme dentro da sala de cinema (COLLINS, p. 274).

Sendo assim, se o gênero musical por um lado rompe com a ilusão de realidade do cinema por meio das performances de canto e dança, por outro, o musical do tipo híbrido parece compor um outro modelo de vínculo dialógico entre obra e espectador. A partir do momento em que a performance musical passa a ser dirigida diretamente ao público, ele é chamado a participar da obra, não por acreditar que, na vida real, os problemas se resolvem cantando e dançando, mas por ser convidado a compreender e, mais do que isso, a se posicionar diante da mensagem que o número musical lhe propõe. Essa é, portanto, uma participação de cunho mais ideológico e político, num sentido amplo, do que propriamente pessoal ou psicológico. E é nesse aspecto que, segundo James Collins, o traço “apenas entretenimento” do musical se torna questionável.

Em minha opinião, por trás da aparente “leveza” de seus números musicais, Nha Fala se inscreve, em geral, nesse último tipo de musical mencionado por James Collins. Há, na estruturação das performances do filme, uma tessitura complexa, que vai muito além do puro entretenimento e que estabelece questões cruciais.

Uma breve análise dos números musicais ao longo de Nha Fala mostra que eles são, ao todo, sete, podendo ser resumidos da seguinte maneira (os títulos são meus):

1º) “Vote em mim”: ao entrar na igreja de sua cidade natal, Vita percebe uma confusão e é convidada a participar de uma “eleição” improvisada, escolhendo quem será o próximo diretor do coral. Cada um dos “candidatos” faz sua propaganda, dizendo por que razão Vita deveria escolhê-lo(a).

2º) “Os bons conselhos”: Vita vai à Carpintaria Destino Ltda. para se despedir dos amigos, a maior parte mulheres. Elas começam a lhe dar conselhos, como arranjar marido na Europa e assim por diante. O grupo vai crescendo à medida que se juntam a ele as crianças da escola. Todos aconselham Vita a voltar ao país natal antes da velhice, porque “eles” não cuidam bem de seus velhos – mas pelo menos chegam à velhice. Ao final, Vita também dá um conselho: “Façam mais caixões, porque a única coisa certa neste país é a morte”. Curiosamente, é essa mesma carpintaria que estará construindo caixões quando do seu retorno e que ela virá a comprar utilizando o dinheiro ganho com a gravação do seu CD. Neste momento do filme, a carpintaria está construindo bancos escolares.

3º) “Da bai”: número que lembra um pouco os duetos hollywoodianos a princípio, já que inicia como performance de Vita e Yano, mas que depois vai perdendo esse caráter, porque aos dois vão se juntando a outros personagens da cidade. Yano tenta convencer Vita a ficar em África e a confiar nele, prometendo-lhe casamento, mas ela repete incessantemente: “Yano, vou-me embora” (“Da bai”).

4º) “Je n’aime pas les noirs”: em Paris, os vizinhos de Vita prezam suas inúmeras prendas, dizendo que ela está sempre pronta a ajudar a todos, é bonita, só pensa nos estudos, etc. Também contam em retrospecto toda a história do romance da protagonista com Pierre. E há um velhinho que fica repetindo o mesmo bordão: “Mois, je m’en fous, je n’aime pas les noirs”.

5º) “Les portugais sont balayeurs”: No restaurante do pai de Pierre, uma faxineira portuguesa conduz a dança dos ex-colonizadores e ex-colonizados, em que todos os que ali estão, portugueses, algerianos, franceses, espanhóis, vietnamitas, senegaleses encontram-se unidos pela pobreza – a não ser pelo pai de Pierre, o “patrão”: “Ici non, un patron reste un patron”, diz ele.

6º) “La peur”: número individual, um pouco diferente dos demais, sem danças corais, em que Vita finalmente solta a voz para cantar. Sua canção fala do medo que é finalmente vencido, o que torna possível a realização de todos os anseios.

7º) “Atreve-te!”: trata-se da apoteose final, a cena da teatralização do enterro de Vita em África e o epílogo do filme (Figura 7).

Figura 7: Apoteose Final

Uma primeira observação a respeito desses números musicais em Nha Fala é a de que, mesmo quando eles se iniciam de uma maneira que lembra os duetos amorosos hollywoodianos, acabam se tornando peças corais, ou seja, momentos em que grandes grupos de pessoas cantam e dançam juntas em torno de algum tema. Do número final, além disso, (aquele que mostra a teatralização do enterro de Vita), quase todo o elenco participa. Nesse sentido, os números musicais em Nha Fala (à exceção de “La peur”) fogem da expressão pura e simples de problemas individuais para discutir problemáticas que interessam não apenas à protagonista e a seu parceiro amoroso, seja ele Yano ou Pierre, mas também a parcelas específicas do grupo social ou a todo ele. As questões que se discutem ali, são, portanto, coletivas.

Esse aspecto, além de remeter a um traço estético já mencionado aqui, o dos musicais de Hollywood que utilizavam grandes grupos corais nas performances (os do tipo produzidos pela Warner Bros., segundo James Collins), também resgata dois traços mais especificamente pan-africanos na apropriação do gênero, em minha opinião: a questão da cultura oral, em que as histórias são contadas numa performance coletiva, grupal, e não individualizante, mais típica das culturas letradas (a apropriação coletiva da história de Vita e Yano, num primeiro momento, e da história de Vita e Pierre e a de Vita como cantora de sucesso na teatralização de seu enterro, em outros, mostra isso claramente); e também a ênfase de um uso ético e pedagógico do narrar, em que cada história contada, ou a história contada como um todo, tem uma mensagem edificante, uma “lição” a ser aprendida.

Nesse sentido, se considerarmos os números musicais do filme mencionados aqui, poderíamos começar a tentar “traduzir” neles significados mais profundos:

- “Vote em mim” faz uma parodia irônica da democracia moderna (de origem europeia), em que cada “candidato” usa como propaganda as promessas mais estapafúrdias a respeito de si mesmo. O número parece questionar ironicamente, portanto, algumas instituições como a democracia política e a Igreja, “carnavalizando”, num contexto africano, certas tradições e discursos tipicamente ocidentais.

- Em “O bom conselho”, o saber tradicional (advindo da “grande experiência”) que as mulheres e as crianças procuram comunicar a Vita remete à transmissão coletiva da experiência própria do universo do costume. Mas esses “bons conselhos” são tão ultrapassados (especialmente os que dizem respeito ao casamento), que se tornam risíveis. De novo, vemo-nos diante de um subtexto irônico desconstruindo tradições. Além disso, nesse número são elencados vários dos problemas enfrentados pela África moderna, como o fato de seus habitantes não conseguirem, em território africano, um trabalho condizente com sua formação. Portanto, “O bom conselho” acaba por se configurar enquanto crítica à própria realidade africana em alguns de seus aspectos.

- Em “Da bai”, temos Vita e Yano numa performance musical que lembra de início alguns duetos clássicos de Hollywood, em que os protagonistas dançam e cantam juntos para resolver seu relacionamento. Porém, os problemas não se solucionam, pelo contrário: Vita declara ali ter decidido abandonar Yano. Além disso, outros habitantes da cidade participam do número, ecoando as declarações de Yano, o que acaba fazendo de uma questão individual um assunto coletivo. Sob esse aspecto, o filme desconstrói não apenas formalmente (pela participação do coletivo) como também tematicamente (pelo desfecho em forma de separação) a forma clássica do idílio musical hollywoodiano, além de desmascarar Yano como o modelo do “entrepreneur” africano malandro e aproveitador.

Até aqui, portanto, o que podemos depreender dos números musicais de Nha Fala é que, se inicialmente eles parecem remeter à estrutura dos musicais clássicos de Hollywood, o filme a ela se refere para, em última instância, subverter sua ordem e função: o que é individual passa a ser apresentado como coletivo, o que pretende solucionar problemas, na verdade, os agudiza e o que a narrativa parece representar (África, tradição, gênero cinematográfico, etc.) é, na verdade, criticado pelas performances. Em outras palavras, os números musicais de Nha Fala estabelecem, em relação à narrativa de que fazem parte, um contraponto de uma natureza que a meu ver preside essa obra de Flora Gomes, que se constrói e desconstrói a todo instante: a ironia.

Chegamos, pois, à metade do filme.

Dançam brancos: coreografia da colonização

Os outros quatro números musicais de Nha Fala fazem parte de uma segunda parte do filme, a que acontece em Paris, com a volta de Vita para sua cidade e a encenação do enterro fechando a narrativa.

A respeito dos três números musicais que se passam em Paris antes do retorno (e o filme é perfeitamente simétrico em relação a essa estrutura), podemos perceber que:

- Em “Je n’aime pas les noirs”, constrói-se uma performance especular em relação às performances corais no ambiente africano: os vizinhos de Vita em Paris dançam e cantam juntos, coletivamente, falando de uma única questão: sua vizinha estrangeira. Por um lado, isso remete a um “gossip” entre vizinhos, o que poderia ser visto como “normal”, falando de um modo bem generalizador, em termos de cultura ocidental. Por outro, com toda a vizinhança prezando as mil qualidades quase principescas da protagonista (bondade, beleza, amorosidade, generosidade, etc.), a cena se torna quase inverossímil, subvertendo o tipo de tratamento tradicionalmente recebido pelos imigrantes na França, especialmente em Paris, quase sempre marcado pelo preconceito e pela segregação. Esses brancos “dançam”, como os pretos em África. Mas sua dança é fake, não convence – a própria gestualidade da coreografia é afetada, pouco espontânea -, aspecto fortalecido pelo bordão repetido pelo velhinho que, não obstante, continua dançando: “Moi, je m’en fous, je n’aime pas les noirs”. Aqui, o filme, que em princípio parece desconsiderar os conflitos raciais, sutil e ironicamente mostra o quanto eles ainda estão presentes, apesar de a superficialidade do discurso fílmico se referir a uma aparente “democracia das raças” – novamente, construção e desconstrução.

Ainda sobre este número, é preciso ressaltar que ele é o que apresenta uma função narrativa mais evidente ao longo do filme, em que as personagens contam, em flashback, fatos importantes suprimidos no tempo da narrativa, desde a partida de Vita até seu primeiro “rendez-vous” com Pierre, em que ela conhecerá os pais dele.

Figura 8: Dança da colonização

- O número “Os portugueses são varredores”, na sequência, constrói a dança da (des)colonização (?) em Nha Fala. Considero este trecho muito importante e digno de atenta observação (Figura 8). Aqui, novamente, são os brancos (à exceção de Vita, embora caracterizada como europeia) que cantam e dançam. O trecho também apresenta estrutura coral (é representado por um grupo), e a música, de cunho mais jazzístico, é cantada em francês, como no número anterior. Vita não canta, mas parece à vontade e feliz rodopiando pelo salão com Pierre. A performance principal é a da varredora portuguesa, representante dos antigos colonizadores (“meu pai perdeu um braço na guerra”, “era de esquerda” – não sabemos se ser de esquerda é ou não um trocadilho com o braço) e grávida (seu bebê nascerá no século XXI, quando são necessárias, diz a letra da canção, novas relações entre colonizadores e colonizados, agora unidos pela mesma pobreza). A gestualidade é, por um lado, sexual, lúbrica (da varredora com a vassoura) (Figura 9), por outro animalizada (o espanhol sai de dentro da mesa como um touro a disputar espaço com os demais), mas a dança em si constitui um rodopio cortês de casais, bem diferente das danças nos números de contexto africano. Música europeizante (ou americanizante), danças de casais, imigrantes animalizados ou rebaixados economicamente: novamente, a aparente simpatia do discurso europeu para com os imigrantes, Vita inclusive, é desconstruída ironicamente pela forma do número musical. Também são fundamentais para essa desconstrução de sentido as falas do pai e da mãe de Pierre já citadas anteriormente: “[Adivinhei que você é a namorada de meu filho] diante de seu sotaque parisiense, por certo” e “Não aqui, o patrão continua o patrão!” (pai de Pierre); e “Já estou me acostumando à ideia de ter netos um pouco menos claros que eu” (mãe de Pierre). Novamente, a fala do preconceito se enuncia, travestida de aceitação.

Figura 9: Varredora Portuguesa

- Em “La peur”, vemos Vita soltando a voz no estúdio, com os músicos e Pierre a seguirem seus ditames. É ela quem modifica a canção originalmente escrita por Pierre, sugerindo-lhe aspectos que ela necessita e quer dizer. Trata-se de uma canção pop, e o estilo desse número musical aproxima-se muito mais dos videoclips do que o das performances corais. O trecho também tem função narrativa, com as imagens da ação se sucedendo sob a trilha sonora da canção de Vita. Trata-se de um momento em que a ação individual suplanta toda a questão coletiva que se coloca nos números anteriores, assim como o gesto individual de soltar a voz acaba por superar o peso da tradição, por um lado, e o do preconceito, por outro. No entanto, resta um problema: o número estaria propondo que o único sucesso possível para Vita seria cantar numa forma tão europeia? Seria essa a sua “voz” mais genuína? E, se a resposta for positiva, estaria Flora Gomes propondo que a busca pelo genuinamente africano passa, primeiro, por respostas individuais e particulares a essa questão, e, segundo, que não haveria algo “genuinamente” africano? Ou será que Vita teria simplesmente sucumbido aos modelos europeus?

- Talvez o fato de Vita se preocupar imensamente com a reescritura de sua própria tradição e com a reação da mãe diante do seu canto nos mostre que seu caso não é simplesmente esse último. Em “Atreve-te!”, número que narra o enterro teatralizado da protagonista, ela une a todos, europeus e africanos, numa festa coletiva em que todos “se atrevem” a cantar e dançar e em que, por fim, ela sai em cortejo fúnebre dentro de um caixão de borboleta e a estátua do libertador Amílcar Cabral, engrandecida, encontra finalmente seu lugar, a contemplar a baía. “O fim é o princípio”, diz o louco.

É preciso lembrar, aqui, que a cena apoteótica do enterro de Vita revisita, em espelho, os enterros anteriores do Sr. Sonho e do papagaio, que abre o filme, curiosamente ao som da própria canção de Vita, que só se torna diegética, por assim dizer, para além da metade da narrativa. Desse modo, se “o fim é o princípio”, os funerais do papagaio e do Sr. Sonho podem ser considerados prefigurações do enterro festivo de Vita, numa espiral de autorreferência em que o sentido vai-se modificando a cada volta. Mais ou menos aos vinte minutos, antes de Vita entrar na Carpintaria Destino Ltda. para se despedir dos amigos, ela encontra pela rua as crianças que ainda carregavam o cadáver do papagaio, e uma delas diz: “O papagaio da escola morreu esta manhã”, completando: “Só sabia dizer uma palavra: silêncio” (Figura 10).

Figura 10: Vita e crianças com cadáver do papagaio

Enterra-se o silêncio, enterra-se também o sonho. Nha Fala, parafraseando o célebre artigo de Gayatri Spivak (SPIVAK, 2010), mostra que os subalternos podem, sim, soltar a voz. Quem sobrevive é a Vida.

Percebe-se, assim, que, ao contrário do que uma visão ligeira possa acreditar, o filme de Flora Gomes é multifacetado, tratando de questões sobre a colonização (é possível uma cultura africana, uma vida africana, genuína e não-(anti-?) européia) e da neocolonização (como transformar imposições tradicionais em uma nova cultura, sem que ela seja uma sobreposição de novos valores e formas externos) de forma complexa. E não é apenas o enredo que tematiza isso. Se assim fosse, estaríamos diante de uma obra ingênua, que trataria como “sem diferenças” os diferentes. De acordo com o que menciona Christopher Miller, citando Paul De Man, não se trata, em Nha Fala, de perguntar “What’s the difference?” no sentido de “I don’t give a damn what the difference is”, mas, sim, no de “What’s the difference – explain it to me” (MILLER, 1990, p. 8). Várias são as surpresas que o filme proporciona ao espectador que consegue “estranhar” seu discurso aparente. Há algo de inusitado na extrema simpatia dos europeus em relação a Vita, assim como na posição subalterna assumida por Pierre diante da talentosa noiva. É também estranho o declarado amor de Yano pela protagonista e seu súbito desinteresse pelo assunto quando o celular toca, como também a composição de um musical africano em que a própria forma se vai corroendo por meio de autorreferências e de autocríticas. Quais as diferenças? Em minha opinião, só é possível percebê-las por meio da explicitação de um discurso irônico que, muitas vezes, tende à paródia de temas, de certas formas estéticas da linguagem do cinema e da própria noção de tradição.

“É festa ou funeral?”

A título de conclusão, um último e breve comentário sobre Nha Fala. Algumas cenas e escolhas formais desse filme, especialmente a apoteose final, lembram-me certos trechos de outra obra conhecida, Orfeu negro (1959), longa-metragem de Marcel Camus, baseado na peça teatral de Vinicius de Moraes intitulada Orfeu da Conceição. Neste filme, o habitantes da favela carioca, felizes, cantando e dançando, vestem-se com roupas da realeza e descem o morro para o desfile de carnaval que comandam. Pelo menos pelos quatro dias de folia, as relações sociais se revertem e os mais pobres podem, sim, tornar-se reis, rainhas e princesas. A carnavalização das relações sociais em Orfeu negro, porém, duram apenas o quanto dura o próprio Carnaval. Na quarta-feira de cinzas, tudo se acaba, como na canção de Tom e Vinicius que faz parte da trilha sonora do filme:

“A gente trabalha o ano inteiro Por um momento de sonho Pra fazer a fantasia de rei, Ou de pirata, ou jardineira E tudo se acabar na quarta-feira.” (Da canção “A Felicidade”, que começa dizendo: “Tristeza não tem fim, felicidade sim”).

Em Nha Fala, a carnavalização das tradições e das relações não é tristeza, mas alegria, e se projeta para o futuro, porque algo realmente se transforma no enredo e na estrutura desse filme complexo. Em “Entertainment and Utopia”, comentando o filme musical On the Town (Um dia em Nova Iorque, de 1949, dirigido por Stanley Donen, com Gene Kelly, Frank Sinatra e Ann Miller), Richard Dyer diz:

O filme começa como uma fuga - dos confins da vida na Marinha para a liberdade de Nova Iorque, e também da fadiga do trabalho, ressaltada pelo refrão do trabalhador das docas ‘Sinto-me como se ainda não tivesse saído da cama’, para a energia do lazer, à medida que os marinheiros saltam para dentro da cidade para seu dia de folga. Essa energia percorre todo o filme, inclusive a narrativa. Na maioria dos musicais, a narrativa representa as coisas como são, das quais é preciso escapar. Mas grande parte da narrativa de On the Town é sobre a transformação de Nova Iorque em utopia. [...]

Isso dá uma dimensão histórica a um musical, isto é, ele apresenta pessoas construindo a utopia em vez de mostrá-las de quando em quando encontrando-se nela.”

E completa: “Os musicais são uma forma para a qual ainda precisamos olhar, se os filmes forem, de acordo com as palavras de Brecht sobre o teatro, uma forma de ‘organizar a alegria de transformar a realidade’” (DYER, in ALTMAN, 1981, p. 188/9. Trad. minha).

Para mim, é isso que faz Nha Fala, com sua desconstrução irônica de certas formas tradicionais da cultura africana, das relações culturais e nacionais na pós-colonialidade e também de uma forma clássica do próprio cinema. O novo talvez não se apresente no filme de Flora Gomes de modo completo e definitivo, nem totalmente ausente de polêmicas. Mas ele perfaz um caminho. “O fim é o princípio”.

Referências

ANDERSON, Benedict. Comunidades imaginadas : reflexões sobre a origem e a difusão do nacionalismo. Trad. Denise Bottman. São Paulo: Companhia das Letras, 2008.

ANTUNES, João. Musical da Guiné-Bissau Nha Fala Flora Gomes Nha Fala: a minha voz. Jornal de notícias, Porto, 12-03-2004. Disponível em: <www.jnoticias.pt>. Acesso em: 20 set. 2010.

ARENAS, Fernando. Lusophone Africa on screen: After utopia and before the end of hope. In: Lusophone Africa : beyond independence. Minneapolis: University of Minnesota Press, 2011, p. 103-157.

CAMUS, Marcel. Orfeu negro (França/Brasil/Itália, 1959, 90 min, cor, ficção).

CHEVALIER, Jean & GHEERBRANT, Alain. Dicionário de símbolos . 3.ed. Trad. de Vera da Costa e Silva et al. Rio de Janeiro: José Olympio, 1990, p. 512.

COLLINS, James M. The musical. In: GEHRING, Wes D. (ed.). Handbook of American Film Genres . New York: Greenwood Press, 1988. p. 269-284.

CREUTZ, Norbert. Flora Gomes réve l’Afrique en musique et en couleurs. Le temps, Genève, 15-10-2003. Disponível em: <www.letemps.ch>. Acesso em: 17 2010.

DYER, Richard. Entertainment and Utopia. In: ALTMAN, Rick (ed.). Genre : the musical. London/New York: Routledge & Kegan Paul, 1981.

FANON, Frantz. The wretched of the earth . Trad. Constance Farrington. New York: Grove Press, 1966.

GOMES, Flora. Nha Fala (Portugal/França/Luxemburgo/Suíça, 2002, 110 min, cor, ficção).

____________. Conversations with Flora Gomes (Minneapolis, 2003, cor, documentário, VHS).

MILLER, Christopher L. Theories of Africans: Francophone Literature and Anthropology in Africa. Chicago/London: University of Chicago Press, 1990.

NHA Fala dá prêmio ao cineasta da Guiné Flora Gomes. Jornal de noticias, Porto, 28-11-2002. Disponível em: <www.jnoticias.pt>. Acesso em: 20 set. 2010.

SPIVAK, Gayatri Chakravorty. Pode o subalterno falar? Trad. Sandra Regina Goulart Almeida, Marcos Pereira Feitosa e André Pereira Feitosa. Belo Horizonte: Editora da UFMG, 2010.

YOUNG, Deborah. My voice. In: Variety, New York: 4: 31, 2002. Disponível em: <http://gateway.proquest.com/openurl?url_ver=Z39.88-2004&res_dat=xri:fiaf&rft_dat=xri:fiaf:article:004/0273071>. Acesso em: 20 set. 2010.

1- Dedico este trabalho aos colegas Fernando Arenas, por nossas longas e iluminadoras conversas sobre África e seus filmes, e Carlos Reis, que pacientemente garimpou em Portugal, durante meses, minha primeira cópia de Nha Fala. A pesquisa em que se inscreve este artigo foi parcialmente financiada pela FAPESP.

2- Professora Doutora da FFLCH-USP e pesquisadora da FAPESP. Projeto de pesquisa associado a esta publicação: A flor, a câmera, o tiro: cinema africano de língua portuguesa em perspectiva.

3- “Pulling the film together is glowing young actress N’Diaye, who becomes more beautiful from scene to scene. Pic boasts stunning cinematography by Edgar Moura, capturing the magical atmosphere of Bissau’s pastel-colored houses standing out against a turquoise sea. Veronique Sacrez’s sets, which include such objects as painted coffins in the shape of fish, are unexpected and delightful, while Vita’s bold-hued wardrobe designed by Rosario Moreira and Virginia Vogwill is pure liberation.” (YOUNG, p. 31).

4- A título de registro, os outros musicais produzidos ou co-produzidos em África de que tenho notícia são (a partir do trabalho de Fernando Arenas) West indies, de Med Hondo (Algéria, 1979), La vie est belle, de Benoit Lamy & Mweze Ngangura (Zaire, 1987), Karmen Geï, de Joseph Gai Ramaka (Senegal, 2001) e U-Carmen-e-Khayelitsha, de Mark Dornford-May (África do Sul, 2004).