v. 19 n. 1 (2019): Bicentenário de Clara Schumann (1819-2019), uma reflexão sobre a atuação e a visibilidade das mulheres na música

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Por Eliana Monteiro da Silva (editora convidada):

Clara Josephine Wieck, tornada Schumann pelo casamento com o compositor romântico Robert Schumann, foi das poucas crianças-prodígio que asseguraram fama e reconhecimento como virtuosas do piano por toda a vida. Como compositora, porém, sua atuação não alcançou as mesmas proporções, apesar de suas peças terem agradado não somente ao público, mas, também, a grandes mestres de seu tempo – como Félix Mendelssohn, Frédéric Chopin, Franz Liszt e Johannes Brahms, além de seu próprio marido[1]. A insegurança relatada em seus diários, aliada à necessidade de se sustentar e aos filhos após a viuvez - o que fazia com os rendimentos dos concertos e não com a venda de suas partituras - explicam, em parte, o pequeno número de composições de seu catálogo[2]. Mas estas não são as principais causas do desencorajamento que inibe, ainda no século XXI, as mulheres de adentrar o ramo da composição na chamada música clássica ou erudita: a ausência de registro sobre a contribuição da maioria delas ao repertório ocidental, seja em publicações, em gravações ou em apresentações ao vivo, faz com que a composição feita por mulheres fique restrita aos eventos temáticos, que raramente ultrapassam o mês de março, dedicado ao Dia Internacional da Mulher. Sendo assim, a escassez de modelos incide sobre as sucessivas gerações, transformando a profissionalização da compositora num ato quase heroico e de pura militância. Entretanto, elas persistem.

            A composição não é a única vertente em que as mulheres não se veem representadas e estimuladas a se profissionalizar no campo musical. Da docência universitária à regência, principalmente instrumental, é visível o restrito número de musicistas do gênero feminino, embora tenha aumentado nas últimas décadas. Na América Latina, o preconceito contra mulheres em esferas de poder tende a ser maior, devido, por um lado, à presença de religiões de cunho patriarcal, que defendem a imagem da mulher como “modelo primordial da humanidade”[3], cuja pureza não deve ser contaminada por ambições fora da esfera doméstica e privada, e, por outro, pelo colonialismo - que, em si, pressupõe hierarquias e protecionismos não só de gênero como também de raça e classe. Vale dizer que, já em 1987, a França lançava programas de inserção de mulheres na formação profissional e no emprego (ORTIZ, apud MANASSEIN, 1995, p. 149)[4], fato praticamente ignorado pelos países do nosso continente.

            Inspirada pelo bicentenário de Clara Schumann, por pesquisas como a realizada por Ashley Fure em 2016 para comemorar os 70 anos dos Cursos de Férias de Darmstadt, na Alemanha - em que foi quantificada a presença de mulheres em diversas áreas do evento nas edições anuais[5] -, por encontros temáticos como “Seminário Internacional Fazendo Gênero 11 & 13º Women’s Worlds Congress” (2017), “III Coloquio Ibermúsicas sobre investigación musical: Música y mujer en Iberoamerica” (2017), “Simpósio A produção musical e sonora de mulheres: reflexões sobre processos e práticas a partir de uma perspectiva decolonial” (ANPPOM, 2018), entre outros, bem como pela atuação de grupos militantes pela maior visibilidade da mulher na música, tais como rede “Sonora - músicas e feminismos”, “Asociación mujeres en la música”, “Feminoise Latinoamérica”, para citar alguns, a Revista Música convida pesquisadoras e pesquisadores a submeter artigos para um dossiê sobre conquistas e dificuldades da mulher na música de concerto da América Latina, estendendo-se às demais formas de apresentação como arte sonora, música eletroacústica, instalações e outras vertentes. Serão bem vindas reflexões sobre aspectos específicos do protagonismo da mulher nos diversos níveis do ensino de música, entre os quais sugerimos: 1) a presença de obras compostas por mulheres em programas e repertórios de conjuntos estáveis como coros e orquestras; 2) estudos qualitativos e quantitativos sobre a produção musical de mulheres em contextos determinados; 3) análises musicais de suas composições; 4) estilos mais atraentes ao gênero feminino; 5) atuação das mulheres no registro musicológico de suas pares; 6) mulheres musicistas no contexto racial e social; 8) outros desdobramentos do tema principal. O recorte no panorama da América Latina contribui também para o maior conhecimento da realidade musical e cultural de nossos vizinhos e companheiros de história.

            Com esta iniciativa, a Revista Música se abre ainda mais à diversidade e pluralidade que compõe a cultura ocidental, em especial a latino-americana. Uma musicologia que ignora a produção de mulheres em tantos países pode apenas apresentar uma versão parcial de sua história e de seu patrimônio cultural, o que, a duzentos anos do nascimento de Clara Schumann, é no mínimo inaceitável.

 

BIBLIOGRAFIA

MONTEIRO DA SILVA, Eliana Maria de Almeida. Clara Schumann: compositora x mulher de compositor. Dissertação (Mestrado), 2008. São Paulo: Universidade de São Paulo, 2008. Disponível em: http://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/27/27158/tde-05072009-234006/pt-br.php. Acesso em 13/9/2018.           

MONTEIRO DA SILVA, Eliana. Música erudita e cognição social: assim se cria um patrimônio universal. In: Rio de Janeiro: Anais do VI SIMCAM, 2010. pp. 567 a 579.

______. Clara Schumann: compositora x mulher de compositor. São Paulo: Ficções Editora, 2011.

______. Menina não entra? Reflexões sobre a hegemonia masculina na música erudita ocidental. In: Anais Eletrônicos do 13º Mundos de Mulheres & Fazendo Gênero 11. 2017. Disponível em: http://www.fazendogenero.ufsc.br/conteudo/view?ID_CONTEUDO=605. Acesso em 13/9/2018.

ORTIZ, Laure. Antilogie de l’égalité des chances. In: MANASSEIN, Michel (Dir.). De l’égalité des sexes. Paris: Centre National de Documentation Pédagogique, 1995. pp. 147 a 166.

 

[1] MONTEIRO DA SILVA, 2008, p. 9. Disponível em: http://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/27/27158/tde-05072009-234006/pt-br.php. Acesso em 13/9/2018.

[2] Clara é autora de 24 opus e algumas peças sem numeração. Para mais detalhes, vide MONTEIRO DA SILVA, 2011, pp. 62 a 65.

[3] ROUSSEAU, apud MONTEIRO DA SILVA, 2010, p. 569.

[4] “Sous l’impulsion du secrétariat d’État aux Droits des femmes, de nombreux programmes ont été engagés, eux aussi à la charnière de la formation et de l’emploi : programme expérimental d’insertion (7.000 femmes concernées en 1987), programmes locaux d’insertion pour les femmes adultes de petit niveau de qualification, actions de formation pour les mères isolées, bilan-formation pour les mères de familie, opérations pilotes d’insertion des femmes dans les grands chantiers, comme en Savoie, à l’occasion des Jeux Olympiques d’Albertville ».

[5] “Em 2016, o Curso de Férias de Darmstadt, na Alemanha, fez um movimento para avaliar os 70 anos de atividade do evento anual que participou da mudança de paradigmas da música erudita no período pós Segunda Guerra Mundial. Com apoio do Goethe Institute, arquivos dos cursos foram examinados em busca daquilo que não constava das edições dos mesmos – e não do que efetivamente constava. De olho nas estatísticas, Ashley Fure montou uma tabela comparativa entre homens e mulheres segundo os itens composições apresentadas, autores participantes, professores convidados e prêmios oferecidos. E constatou o que já imaginava: entre os anos 1946 e 2014 apenas 7% das composições apresentadas eram da autoria de mulheres – 334 contra 4.750. Mesmo entre os compositores mais tocados e suas colegas mais frequentes havia uma discrepância enorme. Enquanto John Cage teve 88 obras apresentadas, Younghi Pagh-Paan teve 18” (MONTEIRO DA SILVA, 2017).

Publicado: 2019-07-07

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