é professor efetivo do Curso de Bacharelado em Música da Universidade Federal da Integração Latino-Americana (Unila). Publica, orienta e leciona na área de música, com ênfase em sociologia da música e música popular. E-mail: gabriel.rezende@unila.edu.br
Muito se escreveu sobre “Chega de saudade” (Jobim/Moraes), sua relação com a bossa nova e com a questão da modernização da música popular no Brasil. Mas, sintomaticamente, pouco se discutiu a música propriamente dita. Sendo assim, releio algumas ideias apresentadas na literatura para elaborar formulações teóricas que me permitam construir uma interpretação da composição que articule modernização musical e modernização socioeconômica. Apesar de não se prender ao processo empírico de emergência e consagração da canção, minha interpretação se ancora em fatos concretos ligados à polarização que se estabeleceu entre Tom Jobim e Jacob do Bandolim em torno de “Chega de saudade”: nesses fatos estão as pistas para que se revele o truque do mestre.
Much has been written about “Chega de saudade” (Jobim/Moraes) and its relation to both bossa nova and the question of modernization of popular music. But, symptomatically, little has been said about the music itself. Therefore, I revisit ideas discussed in the literature in order to elaborate theoretical formulations that allow me to build an interpretation that articulates musical and socio-economic modernization. Although not restricted to the song’s raising and consecrating empirical process, my interpretation lies on concrete facts linked to the polarization that arose between Tom Jobim and Jacob do Bandolim around the composition: in this facts lies the clues to uncover the master’s trick.
“O artista que não está em crise não cria nada relevante.” Essa é a resposta que meu então futuro orientador gostava de dar a certas objeções levantadas contra as leituras que problematizavam o lugar e a criação do artista. Mais especificamente, é a resposta à demanda de “paz para compor”, que a insatisfação contida naquelas objeções expressava. Não se tratava, evidentemente, de evocar a figura romântica e fetichizada do artista atormentado, mas sim de alertar para a dimensão essencialmente social da criação artística: um problema estético sempre traduz, de alguma maneira, um problema de natureza histórico-social. Quando isso não ocorre, a arte perde a sua substância e tende a se tornar estéril.
Hoje, a distância, a reflexão recupera a memória daquele tempo para ponderar sobre a própria experiência que a impulsionava e que levava, em outros casos, à busca pelo refúgio na paz. Ela toma como problema significativo, então, o próprio fato da vinculação entre criação artística e realidade social ter se tornado algo a ser retomado, a duras penas, pelo pensamento. E se desenvolve no lugar onde esse fato se apresenta de maneira mais expressiva: a canção popular. Refiro-me especificamente à linhagem de canção popular que, sendo uma singularidade histórica do desenvolvimento da música popular no Brasil, mostra claros sinais de esgotamento no tempo presente. Trata-se de uma crise que coloca em questão a dinâmica histórica dessa linhagem cancioneira, que extraiu muito de seu potencial criativo de momentos críticos do desenvolvimento histórico-social do país. Sendo assim, tomarei como objeto de reflexão um momento que considero privilegiado para compreender como o potencial criativo nesse âmbito da produção simbólica emanava da articulação entre problemas estéticos e problemas histórico-sociais, sob o signo da crise.
O consagrado LP
Inicio essa reconstrução me ocupando de um desses encontros que, apesar de algo anedóticos, permitem discutir processos mais amplos que estão em curso no campo da cultura. Em dezembro de 1959, Jacob do Bandolim é apresentado por Lúcio Rangel a Tom Jobim, no bar Zeppelin. A memória desse encontro, narrada por Ermelinda Paz, se centra em torno da seguinte questão dirigida por Jacob a Jobim:
“Como era verdadeiramente o
Que seja essa a memória pela qual o evento sobrevive na história já é, por si, sintomático. E a expressividade desse sintoma vai além da função laudatória que àquela reminiscência foi reservada na narrativa biográfica sobre Jacob. Os anos finais da década de 1950 assistiram a um acirramento das polarizações constituídas em torno das disputas sobre o destino da música popular no Brasil. Desde finais da década de 1930, a disseminação de produtos culturais de diferentes países americanos criou uma incipiente segmentação de mercado que abalou a hegemonia da produção de sambas “tradicionais”. Desde então, diferentes iniciativas foram tomadas para resgatar e proteger essa produção, seja do ponto de vista de sua posição de mercado, seja em relação aos valores identitários que a ela foram se agregando continuamente. Não tardaria até que os novos profissionais, cujas competências técnicas e conhecimentos estilísticos afinavam com as novas demandas das rádios e gravadoras, estabelecessem relações de tensão com o grupo de agentes que mantinha um posicionamento crítico em relação a essas novas práticas
O início da carreira profissional de Jacob do Bandolim dá-se justamente no contexto radiofônico dos anos 1930, no qual alcançou rapidamente certo grau de projeção, fixou determinados princípios estético-ideológicos e criou laços identitários. Assim, no momento em que a polarização se apresentou de maneira mais nítida, ele se alinhou ao círculo de artistas, jornalistas e intelectuais (dentre eles, Lúcio Rangel) que se agrupava em torno de um discurso crítico em relação à “modernização” da música popular. No entanto, apesar de sua afinidade com os ideais “tradicionalistas”, Lúcio Rangel tinha certo trânsito entre os “modernos”
Próprio da personalidade de Jobim, o caráter conciliatório de seus posicionamentos, temperado por sutis ironias, guarda certas afinidades com o processo histórico em curso. Em seus desdobramentos no plano dos ideais, os antagonismos tendiam a ser mais exacerbados no âmbito dos discursos verbais, enquanto arrefeciam nas práticas musicais. Pois havia uma base comum às posições conflitantes que sustentava as diferenças manifestadas na superfície das escolhas assumidas pelos agentes: o diagnóstico de que o país vivera uma “época de ouro” de sua música popular. O reconhecimento do período dourado é, ao mesmo tempo, o reconhecimento de sua existência problemática no presente: este era a vivência da crise que marcava um período de transição. Esse marco, que consolida um horizonte histórico de interpretação da música popular no Brasil, era o meio comum a partir do qual as posições conflitantes se diferenciavam
Além desse diagnóstico, havia outro substrato mais profundo que aproximava a experiência dos agentes, e que remete à própria condição de existência do campo musical em questão. Como sugere a mediação de Lúcio Rangel, havia entre “tradicionalistas” e “modernos” toda uma fluidez da ação que, em última instância, respondia à falta de uma clara diferenciação profissional nos meios musicais ligados aos setores radiofônico e fonográfico. Era justamente um momento de transição na estrutura produtiva da música popular, no qual as relações declinantes ainda se imbricavam com as emergentes, sendo ambas permeadas pelas demandas de uma produção comercial em crescimento e diversificação. Consequentemente, o trânsito e o contato entre artistas ligados a diferentes gêneros e estilos eram constantes, intensos e mediados pelo mercado de bens musicais em pleno processo de expansão. Essa falta de diferenciação se manifesta também no próprio caráter das trajetórias de Jobim e Jacob
Ambas as trajetórias, portanto, estavam indiretamente ligadas pelo baixo grau de diferenciação profissional e de especialização das funções que levava, por exemplo, a uma imbricação entre gêneros e estilos no exercício da atividade profissional. Em outras palavras, elas estavam ligadas pelo caráter e pelo limite da modernização socioeconômica do país: profissionalização e amadorismo eram interpenetráveis
A narração que Paz faz do encontro entre Jacob e Jobim tem lastro numa carta que o bandolinista dirige a Sérgio Cabral em março de 1963. Entretanto, no documento citado pela biógrafa não parece ser a melodia o ponto de discórdia:
Os 17 (dezessete, veja bem) não conseguiram reproduzir, sem deturpar - e isto porque não entenderam - aquele lindo samba que, não fora aquela malfadada “batida” de violão com que o acompanham e que tanto entusiasma José Mauro, seria, por certo, atribuível a J. Cascata ou Ataulfo Alves. E o Lúcio, quando o ouve como é, por um bandolim, dois violões e um cavaco, sente sádicos prazeres. É simples obter tal efeito: basta acompanhá-lo “à brasileira”... (apud
Segundo esse fragmento, a questão central incidiria na combinação entre a instrumentação e a estruturação rítmica do acompanhamento: bastaria um acompanhamento “à brasileira” para que “Chega de saudade” se revelasse um autêntico samba tradicional. Essa interpretação foi colocada em prática, no mesmo ano, no LP
Em geral, bastou ao bandolinista suprimir certas extensões dos acordes, como a sétima maior sobre a tônica, e as décimas terceiras maior e menor sobre a dominante, para reconverter o “moderno” em “tradicional”. Mas há um ponto a partir do qual essas pequenas alterações não foram suficientes para operar a reconversão
A afirmação do acorde de sol maior (G) na cabeça do compasso 57, preparada ao longo da segunda metade do terceiro segmento da seção (cc. 53-56), é seguida pela rearmonização dos cinco compassos subsequentes, até a estabilização sobre o
Mas a conversão do “moderno” em “tradicional”, que revelaria a verdadeira substância da composição, não opera sem deixar restos. Enquanto a substituição dos acordes Gm7 e F#m7 por Bb e D estabelece uma sequência de três acordes maiores separados por intervalos de terças, G - Bb - D, que é estranha ao repertório tradicional, há momentos em que o acorde introduzido na rearmonização entra em tensão com a melodia. O caso mais expressivo dessa tensão encontra-se no compasso 62 (e em suas repetições no
A força dessa tensão se revela em sua permanência. “Chega de saudade” voltaria a ser gravada por Jacob do Bandolim em seu projeto inicial para o LP
A interpretação daquele encontro entre Jacob e Jobim a partir das duas fontes que o consagraram - a narrativa de Paz e a carta do bandolinista - também encontra um “resto” significativo. Na carta, o elemento problemático é a “malfadada ‘batida’”, enquanto a narração da biógrafa aponta para a melodia da canção como sendo o objeto da disputa. E o outro lastro material desta última narrativa, ao lado da citada carta, é a própria partitura da melodia autografada por Jobim e dedicada a Jacob
A seção A da composição de Jobim está construída dentro dos padrões recorrentes no repertório “tradicional”, com quatro segmentos de oito compassos, cujas rimas se estabelecem entre o primeiro e o terceiro
Apesar de conservar a organização em torno de quatro segmentos de oito compassos, a segunda seção apresenta um terceiro segmento (cc. 49-56) que já não realiza a “tradicional” rima com o primeiro. Ao invés disso, ele estabelece a rima com o terceiro segmento da seção A (“Chega de saudade...”) transposto para a tonalidade de ré maior (“Dentro dos meus braços...”). Isso implica também uma diferença na construção do clímax, que já não coincide, como na seção A, com o ponto culminante da tessitura da melodia (c. 25): tal dissociação é indício de que as energias composicionais estão sendo canalizadas para outro momento da condução da forma. A retomada do terceiro segmento da primeira seção - que parece ser antecipada pela poesia logo no início da seção B (“Mas se ela voltar...”) - dá início ao movimento de transformação da forma tradicional da canção, que só na aparência se mantém a mesma. No início do quarto segmento (cc. 57-64) essa transformação se radicaliza, e essa radicalização se manifesta no curso do desenvolvimento melódico, sobretudo no tratamento das dissonâncias. Na primeira seção, onde predomina o uso de antecipações e retardos regularmente resolvidos por movimentos de graus conjuntos descendentes, o emprego de dissonâncias melódicas que dispensam preparação e resolução se limita à “tradicional” nona menor acrescentada à tríade da dominante principal. Esse proceder se mantém no início da seção seguinte, de maneira que, estilisticamente, o uso das dissonâncias mantém a composição dentro dos padrões recorrentes no repertório “tradicional”. Entretanto, a retomada do terceiro segmento da seção A na preparação para o clímax da seção B, e da própria composição, interrompe essa dinâmica, estabelecendo um grande contraste estilístico - em intensidade, não em extensão - no emprego das dissonâncias. A resolução sobre a subdominante (G), na passagem do compasso 56 para o 57, se realiza com a “emancipação” da dissonância de nona maior, que, construída como retardo da quinta do acorde D7, salta para a dissonância de sétima maior (fá#), a qual, por sua vez, também se encontra “emancipada”, saltando para a consonância de quinta.
A dissonância de nona maior revela seu caráter estrutural estabelecendo-se como nota pivô em torno da qual se sucede uma série de três arpejos. No segundo deles (c. 58), construído sobre o acorde de sol menor, “emancipa-se” também a sétima menor, contrariando, como já foi dito, um dos recursos mais recorrentes no repertório “tradicional”: o emprego da dissonância característica da função de subdominante, a sexta maior. É interessante notar que isso se dá não por um maneirismo, uma busca pela dissonância como busca pelo efeito do “difícil” que não traz maiores complicações, senão por ser fruto da própria coerência interna da melodia contrastando com a estrutura harmônica “tradicional”. Disso deriva também a “emancipação” da sétima menor sobre o acorde de F#m no compasso seguinte (c. 59).
A vocação modernizante dessa passagem foi sublinhada na poesia que, mantida em feições “tradicionais” até o início do segmento cadencial da seção B, lança mão de recurso “modernizante” (a paronomásia “colado assim/ calado assim”) para acompanhar a figuração melódica
Diante de tal expansão, a segunda metade do quarto segmento da seção B (cc. 61-64) trata de recompor o equilíbrio abalado pelo uso intenso das dissonâncias estabilizando a melodia em torno de repetições de arpejos da tríade de Si menor
De acordo com Walter Garcia, o estilo interpretativo de João Gilberto teria se estabelecido desde a gravação de “Chega de saudade” e “Bim bom” em 1958
Diagnósticos de crise em relação à música popular já vinham sendo produzidos desde, pelo menos, o início da década de 1920
Na história da “música culta” ocidental, a progressiva racionalização dos meios musicais, que ensejou a igualmente progressiva expansão do momento de subjetivação na relação com o material sonoro-musical, incide com especial ênfase, em relação às técnicas de composição, no emprego das dissonâncias. “Assim, considerando a interpretação adorniana de que a ‘dissonância’ é um suporte técnico-racional da ‘expressão’” (
Mas essa transformação tampouco se opera sem deixar “restos”, pelo menos para a reflexão. O início do terceiro segmento, que prepara a grande transformação no emprego das dissonâncias, dá-se no compasso de número 57, ou seja, num momento já bem adiantado da forma. E o vertiginoso desfile de dissonâncias dura apenas quatro compassos antes de iniciar sua estabilização. Como foi possível transformar toda a estrutura musical tradicional, que se desdobra por quase a totalidade da composição, em alguns poucos compassos do início do quarto segmento da segunda seção? Vale aqui uma comparação com o famoso
A retomada do terceiro segmento da seção A na seção B colocou duas opções ao compositor: reiterar a “tradição” e seguir a resolução da nota lá - quinta da dominante secundária D7 - sobre a fundamental do acorde da subdominante (Gm), ou desviar-se o mínimo possível na imitação daquele segmento e alcançar, na resolução sobre a nona, uma outra forma de expressão. É justamente numa fração de compasso que o mestre fez seu truque: a modificação de um intervalo, e a inversão dos que lhe seguiam. No sétimo compasso do terceiro segmento da seção A (c. 23), a nona menor do acorde de D7
A maestria do truque conta também com a expectativa em relação à forma. Retomar o terceiro segmento da primeira seção é uma maneira de preparar e intensificar a espera pelo clímax da composição, e o brilho reluzente da sua chegada ofusca a percepção do truque. Assim, como num passe de mágica, as energias composicionais tradicionais são transformadas em força modernizadora.
Entretanto, à semelhança do processo inflacionário no plano da modernização econômica
Tendo a nota fá como pivô, as tríades resultantes do movimento melódico nos compassos cadenciais da seção A expressam um claro direcionamento tonal. Criando uma engenhosa relação de semelhança e contraste, os compassos correspondentes na seção B apresentam uma figuração constituída em torno da tríade de si menor e articulada pela nota fá#, que se destaca, comparativamente, pela falta de direcionalidade da melodia nos compassos que sucedem o clímax. Essas notas-pivô (fá e fá#) também chamam a atenção para a simetria que se estabelece entre a seção A e os segmentos finais da seção B na condução da linha estrutural da melodia.
No primeiro caso, a ausência da nona nos compassos cadenciais é compensada pela introdução da sensível; mas, no nível estrutural, a linha de terça está completa, pois a nota mi aparece logo antes da cadência (c. 28). No segundo caso, tanto na superfície melódica quanto na linha estrutural, a nona está ausente, o que reforça a falta de direcionalidade tonal do segmento.
Há, finalmente, outro procedimento que intensifica o contraste entre as duas seções e explicita o seu sentido. Toda a seção A é permeada por uma voz interna que, saindo da tônica em movimento descendente para a quinta, é adornada pelas notas si e si bemol (
Por que esse esforço para emancipar uma dissonância que já era amplamente incorporada ao vocabulário tradicional? A resposta a essa pergunta é dada por um dos traços composicionais mais significativos de Jobim, pois se vincula à própria personalidade do compositor: trata-se do impulso conciliador, que o leva a completar a emancipação “modernizante” das dissonâncias no clímax com a emancipação “tradicionalizante” da sexta acrescentada
Esse esforço, entretanto, falha justamente no momento crucial para a realização de sua ambição, pois, como destaquei anteriormente, a reconstrução da sexta como consonância dá-se às custas do desenvolvimento melódico, sobretudo de sua direcionalidade tonal. Isso se revela na posição central do acorde de A7sus4 no
Nada é natural em Jobim. Em suas obras mais significativas, pelo menos, nem a composição cai como fruta madura (NESTROVSKY, 2004), nem o impulso melódico - ou de qualquer outro parâmetro isolado - se desdobra fluentemente às custas dos demais (
- Já não vamos tentar “vender” o aspecto do exótico, do café e do carnaval. Já não vamos recorrer aos temas típicos do subdesenvolvimento. Vamos passar da fase da “agricultura” para a fase da “indústria”. Vamos apresentar a nossa música popular com a convicção de que ela não só tem características próprias, como alto nível técnico. [...]. Acima de tudo, cada um de nós pensa no Brasil, muito acima de seus interesses e de suas conveniências. Eu, por exemplo, não tenho nenhum entusiasmo por avião e por temperaturas de dez graus abaixo de zero: sou da cadeira de vime e do pijama listrado. Mas acho que essa viagem vale o esforço. (JOBIM, em entrevista que antecede a famosa apresentação no Carnegie Hall em finais de 1962, apud
Em “Chega de saudade”, tensões acumuladas em diferentes níveis da vida social ganham forma - em outras palavras, são tematizadas - na medida em que se traduzem em problema estético-musical. Não foi casual que ela tenha se consagrado como “ponto de virada” na história da música popular no Brasil, apesar de toda aura mistificadora e mitificadora que em torno dela se formou. Trata-se de um momento ímpar em que se dá uma perfeita adequação entre o estágio de desenvolvimento de uma arte, o desenvolvimento do mercado de bens culturais e o desenvolvimento técnico de produção e disseminação desses bens, o desenvolvimento mais amplo das forças socioeconômicas, e o desenvolvimento da trajetória dos artistas
Uma modernização socioeconômica deficitária que produz um pequeno deslocamento entre o campo da canção popular e as determinações políticas, sociais e econômicas; em outras palavras, um pequeno ganho de autonomia. Essa é a condição que está na base do movimento de autorreflexividade da canção aqui discutido, e é dessa condição que “Chega de saudade” extrai sua significação histórica. Do ponto de vista do processo, foi a percepção da crise que estimulou e canalizou os potenciais criativos que tornaram a canção um objeto de especulação. Poder-se-ia até mesmo especular se, sem essa percepção e as condições materiais que a fizeram emergir, a música popular no Brasil - especificamente a canção - não teria se petrificado em certas fórmulas ideológico-identitárias, como ocorreu em outros contextos. Pois a autorreflexividade da canção (da qual a crise é um fator constitutivo) é justamente um dos elementos centrais que, posteriormente, garantiram certa autonomia à produção cancioneira, fazendo com que rótulos como bossa nova, MPB, tropicalismo etc. fossem capazes de expressar algo mais do que um mero processo de segmentação de mercado. Essa autonomia, entretanto, envolve tanto uma dimensão concreta, ligada ao desenvolvimento histórico da canção, quanto um teor ideológico, que dissimula seus vínculos com o desenvolvimento social mais amplo e a distancia dos problemas que esse desenvolvimento enfrenta - as contínuas mudanças na estruturação do mercado de bens musicais desde meados da década de 1970 e a migração dessa linhagem cancioneira do mercado para as instituições e as políticas públicas são aspectos ligados a esse fenômeno
Este artigo é resultado da reelaboração e da expansão de parte do quarto capítulo da tese de doutorado
Moreira comenta que, “[c]aso dependesse exclusivamente do DIP, a programação musical do rádio brasileiro na primeira metade da década de 1940 teria sido uma sucessão de músicas recreativas, folclóricas, de caráter cívico, educação rítmica e canto orfeônico. Em outras palavras, o rádio existiria apenas para legitimar aspectos da ideologia defendida pelo Estado Novo” (apud SAROLDI, 2004). Isso não ocorreu, em grande medida, pela maneira como o Estado Novo geriu suas relações com as emissoras de rádio. O caso da Rádio Nacional é, nesse sentido, exemplar: apesar de ter sido por ele encampada em 1940, a emissora manteve-se, em ampla medida, distante das determinações político-ideológicas do regime. A política levada a cabo por Gilberto de Andrade não somente reforçava a independência administrativa da emissora quanto garantia boa margem de liberdade à atuação dos músicos que ali trabalhavam (SAROLDI, 2004).
Conferir os estudos referenciais de Lorenzo Mammì (1992) e Walter Garcia (1999).
Essa crise será explicitamente tematizada e discutida a partir do tópico “O truque do mestre”.
Sobre as tensões no âmbito das relações de trabalho nos meios musicais, conferir Lima Rezende (2014).
A despeito dos embates entre o próprio Lúcio Rangel e Tom Jobim, o primeiro chegou a referir-se a Jobim, na contracapa do LP de Silvia Telles, como “um de nossos melhores compositores modernos”, demonstrando não somente a fluidez dos posicionamentos quanto a ambiguidade implícita na capacidade de consagração de um “moderno” por um “tradicionalista” (cf. POLETTO, 2004, p. 71-72 e 79).
Depuradas para fins analíticos, tipifiquei as posições conflitantes para explicitar o ponto central de divergência: “teremos uma conduta tradicionalista sempre que, reconhecendo no presente um estado de decadência, o agente direcione as suas ações para o resgate de práticas musicais pertencentes a um passado idealizado como repositório da ‘tradição’, e deprecie qualquer imbricação da música representante desse passado com procedimentos musicais que não lhe pertençam; em oposição, teremos uma conduta moderna sempre que, ao buscar se diferenciar das práticas musicais ‘massificadas’ ou ‘decadentes’ do presente, o agente defenda o emprego de procedimentos musicais considerados ‘modernos’ no trabalho com a música popular brasileira, podendo ou não utilizar procedimentos considerados ‘tradicionais’” (LIMA REZENDE, 2014, p. 134).
Em relação à trajetória de Jobim na primeira metade da década de 1950, Poletto comenta que ela pode ser encarada “como exemplar desta situação vivida pelos músicos, baseada no trânsito de posições entre a negação de um passado próximo em favor de uma atualização com as novas correntes de vanguarda ou, a negação dos influxos externos em nome de uma tradição musical estabelecida, dinâmicas essas perturbadas pela atuação no mercado musical, que confundia os vetores em nome de uma circulação comercial mais ampla” (POLETTO, 2004, p. 80). Sobre a trajetória profissional de Jacob do Bandolim, conferir Lima Rezende (2014). Ao caráter dessas trajetórias correspondiam diferentes tipos de personalidade: a fachada conciliatória de Jobim, que, em afinidade com uma trajetória profissional emergente, numa esfera de especialização - a de arranjador - recentemente, e numa sociedade em que a cordialidade era um elemento central das relações sociais como um todo, dissimulava o conflito direto em sutis ironias; e a sólida intransigência de Jacob que, mantida ao custo de uma carreira como escrivão de justiça, e assentada numa trajetória artística já consolidada, não evitava o embate em nome de certos princípios estético-ideológicos.
Esse aspecto artesanal da produção de Jobim se manifesta, por exemplo, na própria relação com a técnica, já que muitas de suas escolhas estéticas parecem estar condicionadas pela experiência com as técnicas de gravação e as experimentações nos estúdios (ZAN; NOBRE, 2013). Conferir também o já referido ensaio de Mammì (1992).
Poletto destaca a falta de univocidade de sentidos que caracteriza a confluência e o imbricamento de vetores e hierarquias no campo musical. Assim, a ambiguidade e a fluidez que marcavam o momento de ascensão da trajetória de Jobim são um sintoma “das peculiaridades de uma modernização econômica deficitária, que inviabiliza a criação de campos artísticos autônomos, regidos por instâncias próprias de avaliação e crítica cultural” (POLETTO, 2004, p. 82).
A figura 10 apresenta um esquema resumido e simplificado da análise de “Chega de Saudade” que desenvolvo a partir deste ponto.
Jacob do Bandolim foi, talvez, o artista mais consequente na realização dos ideais tradicionalistas, não pela negação radical dos elementos modernos
Com base no manuscrito, nota-se que a versão de 1963 foi a referência a partir da qual Radamés elaborou seu arranjo.
Para uma análise mais detalhada sobre o arranjo de Gnattali, acompanhada de uma discussão sobre os sentidos do projeto inicial do LP de 1967 e sua negação na realização de
A imagem do documento foi anexada ao final este artigo.
Reforça essa hipótese uma edição de 1958 da partitura de “Chega de saudade”, publicada pela Editora Musical Arapuã, na qual são visíveis várias correções na melodia feitas a lápis pelo próprio Jobim. O documento está disponível no
É preciso levar em consideração também tanto o fato recorrente de João Gilberto mudar as músicas que gravava quanto a possibilidade do próprio Jobim ter alterado a melodia depois dela ter sido trabalhada pelo intérprete.
A rima aqui destacada se refere especificamente à organização do discurso musical, não guardando relação com a versificação e a rima da poesia.
Notado por Augusto de Campos e destacado por Rocha Brito, o emprego desse recurso afina com a tendência verificada nas letras das canções bossa-novistas de valorizar a “individualidade sonora” das palavras frente a sua submissão ao sentido e à expressão de ideias (cf. BRITO, 1974, p. 38-39).
Trata-se de uma nova retomada da mesma figuração melódica dos compassos cadenciais da seção A, cujo sentido será discutido mais adiante.
Isso não implica dizer, segundo o próprio autor, que “nada ou que muito pouco se modificou no canto de João Gilberto até hoje. Sua estética estava definida com maturidade em 1958, mas desde então os recursos por ele utilizados vêm sendo alterados” (GARCIA, 2012, p. 259-60).
Aproveito para lembrar o leitor que, neste ensaio, me ocupo fundamentalmente do texto musical de “Chega de saudade”, de modo que as relações entre os parâmetros especificamente musicais e a poesia, bem como a realização dessa relação por parte dos diferentes intérpretes da composição, não são tomadas como objeto de análise. Espero que a leitura que ofereço da materialidade musical da canção justifique a pertinência desse procedimento. Vale ainda matizar a afirmação sobre a “mudez” pela qual o referido problema se expressa no texto musical. Toda a problemática aqui apresentada e desenvolvida partiu efetivamente da escuta atenta das versões de João Gilberto e Jacob do Bandolim, cotejada com a partitura. Suavizado pelo hábito de escuta, pela relação com a poesia, pelos diversos elementos que envolvem as
Sobre a formação do discurso de crise da música popular no Brasil, conferir a “Nota sobre os anos 20” da minha tese de doutorado (LIMA REZENDE, 2014).
Conferir, por exemplo, Venancio Filho (2013). Ainda que não discutida neste trabalho, a relação entre as diversas artes, cujo desenvolvimento também foi impulsionado pelo esforço modernizador, pode ser significativa para a compreensão da música popular. Uma vez que o campo da arte erudita não contava com as condições para um aprofundamento de sua autonomia, sua diferenciação em relação às expressões artísticas mais diretamente ligadas ao mercado, como a música popular, não se realizava de maneira tão acabada. Nesse sentido, problemas estéticos poderiam ser compartilhados entre as diversas especialidades, adquirindo formulações específicas em cada uma delas. Vale lembrar, por exemplo, que o próprio Tom Jobim estudou arquitetura e, mais tarde, em seu álbum
Não quero, com isso, dizer que Jobim tenha sido o primeiro a empregar dissonâncias emancipadas, nem que tenha sido quem as utilizou em maior quantidade, o que seria um completo disparate. Trata-se da maneira como ele as emprega, do lugar que ele lhes reserva, do sentido que elas adquirem na forma musical, e da maneira como essa forma se liga ao desenvolvimento social mais amplo, como se verá adiante.
O problema de fundo com o qual esse trabalho lidava era o mesmo que orienta as reflexões aqui apresentadas. A formulação que ele recebeu foi a seguinte: “queremos entender como o problema da modernização dos gêneros [de músicas] populares que se consolida como momento importante da experiência da música popular no Brasil a partir da década de 1950 - e mais especificamente, o modo como esse problema se desdobra em práticas autorreflexivas que incidem sobre a articulação interna dos elementos poéticos e estético-musicais - atinge a própria configuração formal das composições. A relação entre autorreflexão e forma se apresenta de maneira clara quando a análise de certas composições revela que estruturas formais da canção, que muitas vezes já estavam dadas de antemão e que eram incorporadas e reproduzidas de modo mais ou menos naturalizado, passam a ser objeto de especulação” (LIMA REZENDE; SANTOS, 2014, p. 104).
Segundo Rabelo, “[o] processo inflacionário no Brasil, na verdade, possuía raízes estruturais inerentes ao processo de desenvolvimento capitalista. Ao dar saltos importantes no processo de acumulação de capital, sem criar mecanismos adequados para seu financiamento, o capitalismo brasileiro resolve, como mostra Singer, o problema da captação e alocação de recursos via mecanismos que acabam por gerar inflação” (RABELO, 2003, p. 53). Formulado em 1958, o Plano de Estabilização Monetária é abandonado, pois exigiria “a paralisação dos principais projetos do Plano de Metas” (RABELO, 2003, p. 53).
No âmbito econômico também são visíveis os desequilíbrios implicados num processo modernizador abrupto que fez conviver as estruturas produtivas tradicionais com as novidades implementadas: “A economia cresce celeremente, a taxas médias de 7,9% ao ano, e seu parque industrial adquire feições mais maduras, com a forte participação do Estado e do capital estrangeiro. Os grandes oligopólios privados ou estatais definem, doravante, o perfil da economia capitalista brasileira. Tal trilha é percorrida com grandes desequilíbrios, estruturais e conjunturais. O desenvolvimentismo juscelinista transforma o Estado no
Esse traço da personalidade de Jobim encontra ressonância na própria estrutura produtiva da música popular daquele período, e, possivelmente, fora por ela nutrido. A falta de especialização e diferenciação das funções não somente impedia a emergência de estilos decididamente antagônicos, como, no plano das relações de trabalho, poderia favorecer condutas capazes de lidar com as diferentes demandas e disputas simbólicas que se imbricavam nesse meio pouco diferenciado. E é a evitação do confronto que parece estar na base do esforço conciliatório de Jobim. Veja-se, por exemplo, a maneira como ele escolhia lidar com as tensões que emergiam em suas relações com outros agentes do campo musical: “[a]contece que falava muito pouco com Lúcio [Rangel], pois este defendia, com relação à música, uma série de pontos de vista diferentes dos meus. Eu tinha medo que surgisse alguma controvérsia ou discussão entre nós, e por isso evitava falar com ele” (apud POLETTO, 2004, p. 71-72). A convergência entre estrutura produtiva e traço de personalidade se torna relevante na medida em que se objetiva em expressões estéticas altamente significativas, como é o caso de “Chega de saudade”. Pois, caso fosse apenas um artifício externo de adaptação às demandas profissionais, tal traço jamais teria produzido uma elaboração de problemas estético-ideológicos densa o suficiente para atingir o cerne do processo de modernização socioeconômico.
A relação entre a narrativa musical e a poesia segue uma dinâmica semelhante: ocultando a tensão constitutiva da obra num revestimento poético coloquial, cria-se a aparência de uma convergência espontânea das duas linguagens. Tal aparência é tão sedutora que, recorrentemente, acaba se impondo como o verdadeiro terreno para a investigação sobre a canção. Em Jobim, ela é o momento problemático da análise.
Ao ser indagado por Jards Macalé sobre “[q]ual seria sua música mais importante, que lhe permitiu sair de uma e entrar noutra”, Jobim respondeu: “Se bem entendo sua pergunta, a música do plá foi Chega de Saudade” (RINGEL, 1970, p. 30).
Jobim se referia a esse momento de reorientação das práticas musicais como algo consciente e intencionalmente buscado (conferir a entrevista dada a Zuza Homem de Mello em 1968, publicada em: Coelho; Caetano, 2011).
Mammì (1992, p. 64) se refere a esse momento de crise como uma suspensão “entre uma antiga sociabilidade, que se perdeu, e uma definição nova, mais racional e transparente, que não conseguiu se realizar”. Sobre o declínio das relações de trabalho “tradicionais” no âmbito da música popular, conferir Lima Rezende (2014, cap. 6).
Compare-se, por exemplo, a defesa que Jacob faz da composição de Jobim com o seguinte relato de Chico Buarque: “Para todas as pessoas da minha geração, ‘Chega de Saudade’, o tema que iniciou a bossa nova, composto por Vinicius e Jobim e cantada por João Gilberto, foi uma epifania, uma grande revelação. Posso lembrar perfeitamente o momento em que a escutei pela primeira vez, aos 15 anos, mas afirmo que todos os músicos de idade parecida com a minha poderiam lhe contar onde, como e em que momento a descobriram. Caetano Veloso, Gilberto Gil, Edu Lobo... Ela mudou nossas vidas [...]. Considerávamos que era o que se devia fazer, o poder daquela música era tão forte que marcou nossos caminhos (BUARQUE, 2005)” (BOLLOS, 2007 , p. 143). Apontando para a coexistência de forças “tradicionais” e “modernas” na materialidade musical da canção, assim como para o potencial reflexivo da poesia, Caetano Veloso vê em “Chega de saudade” uma composição cheia de “novidades que soavam como atavismos - ou experimentações que soavam como lembranças”. Entendia, assim, que ela continha em si os elementos decisivos da bossa nova, e, portanto, que ela ocupava o lugar de “canção-manifesto e [...] obra mestra do movimento: a nave-mãe” (VELOSO, 1997, p. 226-227).
Dialogo aqui com os textos referenciais de Mammì (1992) e Garcia (1999) anteriormente destacados.
A relação entre a problemática da modernização socioeconômica e a da modernização musical era tão evidente que, na mesma carta em que comenta “Chega de saudade”, Jacob do Bandolim responde à ascensão internacional da bossa nova relacionando-a, como fez Jobim, com problemas de ordem econômica: “[q]ue aliviem a nossa balança comercial, são meus sinceros votos” (apud PAZ, 1997, p. 168).