Volume 1
Edição nº 11
2011
Seção:
DOSSIÊ ESPETÁCULO
Artigo 4

Os malditos e a arquitetura de gestos: um olhar para o Terpsí

Luciane Moreau Coccaro


Como é sentir-se banido? Que valor tem o maldito em nossa cultura? Como é retratada nos corpos a idéia de desvio? A clausura nos remete a que imagens e espaços? Estes questionamentos mobilizaram a escrita deste breve comentário, que aborda a escolha do tema – outsiders – e alguns dos aspectos referentes à dramaturgia do corpo, experimentada na obra Ditos e Malditos: Desejos da Clausura. O espetáculo tem como inspiração textos e imagens dos seguintes artistas: Marcel Duchamp, Allan Poe, Augusto dos Anjos, Caio Fernando Abreu, Alfred Jarry e Samuel Beckett, artistas que viveram à margem da sociedade em suas respectivas épocas. A pesquisa coordenada por Carlota Albuquerque gerou um trabalho coreográfico significativo no contexto da dança gaúcha, cujo tema é o outsider. Becker (1963) pensou este termo associado aos comportamentos sociais patológicos considerados desviantes, portanto, fora do sistema reconhecível e legitimado socialmente. Elias e Scotson (2000) enfocam os outsiders em contraposição aos estabelecidos. Esta oposição pode ser útil na abordagem do tema outsider por Carlota Albuquerque, que acolhe o artista desviante. Trata-se de uma interessante escolha, tendo em vista que, na nossa sociedade de consumo, o recorrente é enaltecer quem está estabelecido porque detém um determinado poder.

Segundo Bourdieu (1989) uma espécie de poder é um capital, ele determina nossa posição num espaço social. Considerar o corpo como capital simbólico significa que através dele se pode ocupar uma posição social de prestígio e de reconhecimento. O espetáculo ao abordar o tema do outsider instaura um olhar sobre a alteridade, no qual este outro, corpo banido, enclausurado e apartado da sociedade, é considerado um capital construído pela diferença e pelo estranhamento. O espetáculo ressalta nossa vulnerabilidade à classificação dos outros. Em muitas cenas, as figuras e personagens são vigiados, rotulados, classificados, o que nos instiga a pensar sobre a dificuldade de ser aceito e de se enquadrar socialmente, sobre o quanto estamos suscetíveis ao olhar discriminatório e acusador dos outros.

O corpo é matriz de significados o que reforça a influência da cultura no corpo (Víctora, 1995). Esse pensamento se aproxima da noção de corpo mídia de Katz (2001) que pressupõe um corpo relacional, sujeito às informações do mundo via contaminação. Essas visões podem ser comparadas com a de Gil (1997), de corpo permutador de códigos, ou seja, para este autor o corpo não fala, ele faz falar sobre a cultura. A encenação de Ditos e Malditos, ao nos mostrar a clausura dos artistas desviantes, nos provoca uma reflexão sobre os estigmas e as distinções sociais inscritas nos corpos.

Desde a criação do grupo em 1987, o trabalho da diretora está centrado na vida cotidiana como matéria prima da criação artística. Este enfoque pode ser analisado a partir da concepção de corpo de Mauss (2003), nas dimensões física, psíquica e social, que desconstrói a idéia de uma natureza do corpo. Seu pressuposto é o de que nada é natural, todo o mínimo gesto e postura são construídos socialmente. A direção de Carlota Albuquerque desloca o foco sobre as capacidades e habilidades do corpo dançante para a noção do corpo do artista sendo o suporte da arte. Neste tipo de trabalho, o corpo é ao mesmo tempo matéria prima e elemento do processo artístico. (MATESCO, 2009).

A presença dos corpos dos bailarinos do Terpsí se constrói neste princípio paradoxal de que, embora a vida cotidiana seja o material inspirador para a coreógrafa, o que vemos em cena são imagens impressionantes e nada naturais ou cotidianas. O que causa uma profusão de sensações num desfile de figuras e tipos esquisitos. É comovente ver tanta vida em estado alterado, tanta estranheza e inadequação das personagens ao dividirem conosco seus conflitos.

Sabemos que não há modelos absolutos de uso do corpo na dança contemporânea. Por outro lado, se compreendemos o corpo do bailarino como sendo um campo de ação, as técnicas de dança podem ser vistas como ações no corpo. Louppe, em relação à técnica, propõe a noção de corpos híbridos na dança contemporânea, ou seja, corpos aparelhados, desaparelhados e hiperaparelhados. Nesse enfoque, que consideramos pertinente para abordar o espetáculo, as técnicas podem ser consideradas também um capital. (Louppe apud LIMA, 2003).

Na coreografia coordenada por Carlota Albuquerque percebemos a criação de espaços, ambientes e atmosferas, numa arquitetura de gestos. Uma abordagem de composição coreográfica, que foca na pesquisa do espaço como um ponto de partida para as experimentações com os corpos e os objetos, a luz e o cenário, a voz e a música. O espaço em Ditos e Malditos é percebido pelas presenças das disposições de sentido e ressonância. O espaço é esboçado por impulsos e dinâmicas energéticas presentes nos corpos e vozes dos bailarinos, que acabam criando uma lógica corporal específica (LEHMANN apud MOSTAÇO, 2008: 79).

Esta lógica corporal específica está presente nos integrantes do grupo. Dois bailarinos da companhia - Edson Ferraz e Gelson Faria – são oriundos do universo da dança hip hop, porém após o treinamento com Carlota Albuquerque estes corpos se transformaram plasticamente. Raul Voges, que é um bailarino de formação clássica e que está trabalhando na Cia Terpsí, desde 2007, vem nos últimos espetáculos do grupo sofisticando o uso de sua voz, apresentando um trabalho de ator que nos surpreende. A bailarina Ângela Spiazzi, desde 1987 pode ser considerada a bailarina emblemática do grupo, participou de todas as montagens e adquiriu uma presença cênica e um rigor no trabalho corporal impressionantes. A desenvoltura entre as linguagens do teatro e da dança é visível também em Suzana Schoellkopf, que também está no grupo desde seu início. Gabriela Peixoto, no Terpsí desde 1998, é uma excelente bailarina com forte presença em cena. A mais recente descoberta do grupo, Francine Pressi pode ser destacada como exemplo do trabalho tecnicamente híbrido. A experiência de diversas montagens do grupo inscreveu nos corpos dos bailarinos marcas de um grupo hiperaparelhado, na medida em que o grupo vem pesquisando diferentes técnicas de dança. O processo de trabalho diário e aprofundado permite que os corpos se transformem de acordo com a exigência de cada personagem.

Na direção de Carlota Albuquerque identifico o ato criador em parceria com seus intérpretes colaboradores na busca de estados corpóreos[1]. Preferimos adotar o termo estados corpóreos , para enfocar o corpo em situação de performance num descontínuo fluxo de energias, imagens e emoções. Um estado transitório de presença colocando em jogo a criação de uma dramaturgia do corpo. Numa presença cênica na qual cada bailarino se comporta como performer em função da cena que se estabelece a partir de um jogo. Durante a referida montagem foram realizados diversos laboratórios para a experimentação da relação entre os corpos e as demais linguagens.

Do ponto de vista da dramaturgia do corpo, o movimento, a música, o figurino, a luz ou qualquer outro componente faz parte da construção da expressão ou significação do movimento (NUNES, 2006). A dramaturgia do corpo se refere à tensão entre os corpos, entre os volumes, as disposições no espaço, os ritmos, as escolhas dos momentos, os métodos, entre outros fatores. Deste ângulo, a composição coreográfica e a dramaturgia do corpo são consideradas sinônimos.

No espetáculo em foco, a dramaturgia do corpo é resultado de um trabalho que permanece em constante processo de criação entre a coreógrafa e seus intérpretes colaboradores. Trata-se de uma cena sempre cambiável, pois a cada dia de espetáculo pode acontecer pequenas alterações, o que denota um alto grau de performatividade na sua estrutura. A diretora enfatiza a interação com os intérpretes a respeito das possibilidades de mudanças nas cenas:

Como rotina diária, jogamos com a idéia de alterar cenas ou partituras já construídas, para criar o que denominamos novos conflitos e assim deixar a obra mais viva. Estas alterações eram sempre provocadas ora porque o espaço cênico interferia no olhar da cena, ora porque o intérprete sem perceber às vezes alterava algum gesto que acionava em mim o desejo de melhorar a obra. Ele, o intérprete, muitas vezes na sua atuação criava novos conflitos, que não haviam surgido anteriormente e que para obra apresentavam-se como algo bem mais interessante (Carlota Albuquerque, 2011)[2]

Segundo o coreógrafo pós-moderno Merce Cunningham, uma coreografia é um work in process, algo que vai sendo descoberto ao ser feito (GIL, 2004). Renato Cohen (2006), por sua vez, investiga este tipo de abordagem como sendo a criação work in progress. A criação aberta ao processo de mudança estabelece nos corpos dos intérpretes uma disponibilidade de trânsito de estados corpóreos, compondo uma cena relacional. Este foco na relação encontra eco no pensamento de Deleuze (1992) sobre a trama que as imagens nos propõem. Para ele uma imagem nunca está só, mas estabelece relações com outras imagens; mentais, pictóricas, virtuais e emocionais.

Percebemos na pesquisa do Terpsí o desenvolvimento de uma escritura contemporânea de arte concebida pelas sonoridades, paisagens visuais, passagens e intensidades performatizadas (COHEN, 2006). Neste espetáculo, a articulação da dramaturgia dos estados corpóreos e da relação das obras literárias com os demais elementos cênicos pode ser considerada como escritura (FLUSSER apud MACHADO 2010). Através de uma abordagem de Dança Teatral aliada a uma criação coreográfica de espaços, ambiências e atmosferas, instaura-se no palco uma construção dramatúrgica que podemos denominar de arquitetura de gestos. Carlota Albuquerque é uma encenadora que cria um espaço de presenças a partir do trânsito dos estados corpóreos de seus interessantes intérpretes colaboradores. O espetáculo Ditos e Malditos: Desejos da Clausura é um mergulho na atmosfera dos outsiders, um olhar generoso aos artistas incompreendidos.


Luciane Moreau Coccaro Professora Assistente dos Cursos de Dança da UFRJ. Mestre em Antropologia Social/UFRGS. Bailarina do Terpsí de 1990 a 1993.


Notas
  1. Estados corpóreos é o nome de um espetáculo criado por mim em 2008, no qual cada cena tinha como princípio uma mudança de um estado a outro em cena. A inspiração veio do estudo das três energias de Arthur LESSAC – potence, radiance e buoyance (LESSAC,1981). Energia da lama, de choques elétricos e da água, respectivamente. Nessa obra, a partir do enfoque das três modalidades de energia corporal, transitei por sete estados de presença cênica. A reflexão sobre essa experiência resultou em uma concepção de corpo como estado corpóreo: corpo num trânsito de energias e intenções de movimento. ^

  2. Entrevista realizada em 19 de setembro de 2011.^

Referências Bibliográficas

Data de Recebimento:
15 de outubro de 2011
Data de Aceite:
30 de novembro de 2011
Data de Publicação:
25 de dezembro de 2011