Volume 1
Edição nº 12
2012
Seção:
DOSSIÊ ESPETÁCULO
Artigo 5
Luiz Fernando Ramos
Mistura de teatros. "Orfeu Mestiço: Uma Hip-hópera Brasileira", do Núcleo Bartolomeu de Depoimentos, combina diversas teatralidades para revisitar a história política do Brasil durante os anos 60 e consolidar o estilo criado pelo grupo ao longo da última década.
Fruto de três anos de investigação em torno das raízes formadoras do povo brasileiro, o espetáculo reapresenta o mito grego de Orfeu não como mistério, mas como suporte para uma discussão sobre o desaparecimento de presos políticos na ditadura.
Essa opção condiciona a dramaturgia, em versos, e a bela encenação de Cláudia Schapira, propiciando tanto virtudes como problemas.
POESIA E IMAGINAÇÃOA trama é tecida sem linearidade, como um relógio que vagasse para frente e para trás ao sabor de um ponteiro movido pela poesia e pela imaginação.
O eixo em torno de que orbitam diversos tempos e situações é a história de Orfeu, um juiz do Supremo Tribunal Federal que viu na juventude seu amor, Eurídice, uma professora engajada em métodos revolucionários, sumir nos porões do regime militar.
A mobilidade da narrativa, conduzida pela atriz e MC (mestre de cerimônias, na tradição do hip-hop) Roberta Estrela D'Alva, que pontua todas as transições com sua presença arrebatadora, permite, além das idas e vindas, superpor diversas camadas de enunciação.
EXCELÊNCIAÉ uma estratégia por vezes desviante, mas que quase sempre impacta.
A direção musical de Eugênio Lima e as coreografias de Luaa Gabanini, ambos em cena – ele como o Orfeu maduro, ela se desdobrando com talento em diversos papéis –, ao lado da sublime cenografia de Daniela Thomas – em diálogo com a tradição do grupo e com a precariedade de seu espaço – e do extraordinário trabalho de vídeo de Tatiana Lohmann, alcançam o patamar da excelência.
Por outro lado, a tentação dos autores da montagem de tornar os personagens heróis imaculados (e de eles próprios se heroicizarem) instaura uma solenidade e implica rodeios retóricos que beiram o barroquismo.
A profusão de elipses, se evita o didatismo, faz com que o que é narrado se torne prolixo e com que a poética cênica se dilua.
O Núcleo Bartolomeu se mostra maduro e senhor de uma linguagem própria.
Nesse seu mais ambicioso e bem realizado espetáculo, que se insere na corrente que vem inventando um modo brasileiro de fazer musicais, confirma tendência de outros grupos de sua geração de prospectar o passado à cata de perguntas para o futuro.
As utopias que resgatam de velhos baús, se reluzem, também lhes pesam e os atravancam como fantasmagorias paralisantes.
Mas o "Orfeu" que montam, híbrido de lírico e de épico, de ópera e de festa de terreiro, fala por si.[1]
Luiz Fernando Ramos é crítico teatral e professor do Departamento de Artes Cênicas e do Programa de Pós-Graduação em Artes Cências da Escola de Comunicação e Artes da Universidade de São Paulo(ECA-USP).