Baseado em uma etnografia realizada no órgão governamental de defesa da concorrência do Brasil, o Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade), este artigo explica a necessidade de se identificar agentes concorrentes na análise empreendida pela autarquia e descreve como essa identificação foi realizada em uma recente aquisição empresarial no setor de educação superior privada. Essa prática de identificação, comum nos casos antitruste de “atos de concentração”, como fusões ou aquisições empresariais, tem se tornado mais complexa devido à maior financeirização da economia, pois diversas empresas estão interconectadas por meio de uma rede nem sempre explícita de relações de propriedade e/ou controle empresariais, que inclui pessoais físicas e jurídicas. O artigo descreve alguns procedimentos de investigação utilizados para visualizar e conceber um concorrente de mercado nesse novo contexto. Pretende-se, com essa descrição, demonstrar o modo como certas práticas governamentais de conhecimento – neste caso, relativas à regulação legal da concorrência – produzem agentes econômicos, indicando a existência de uma diversidade, nem sempre considerada na sociologia ou antropologia, de formas de agenciamento que perpassam e formatam a vida econômica.
Based on an ethnography undertaken at the Brazilian antitrust agency, the Administrative Council for Economic Defense (Cade), this article explains the agency’s need to identify competitive agents as part of its investigation into competition issues and describes the way this identification was undertaken in a recent corporate acquisition in the private higher education sector. This identification practice, common in antitrust cases related to “acts of concentration”, such as corporate mergers and acquisitions, is becoming more complex due to the increasing financialization of the economy, since several companies are interconnected through networks of corporate ownership and/or control that are not always explicit. This article describes some of the investigative procedures adopted in order to visualize and conceive a market competitor in this new context. Through this description, the author seeks to demonstrate how certain government knowledge practices – in this case those related to legal regulation of competition – produce economic agents, pointing to the existence of a diversity of forms of agencies that is not always taken into consideration in sociology or anthropology, but which nevertheless permeate and mold economic life..
O Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade), órgão administrativo e judicante vinculado ao Ministério da Justiça, é responsável pela chamada política de defesa da concorrência ou política antitruste. Essa política pública baseia-se em uma premissa central do liberalismo econômico que afirma que situações de maior concorrência nos mercados trazem maiores benefícios econômicos para consumidores e para as economias nacionais. A concorrência entre as empresas pela venda de produtos e serviços permitiria aos consumidores comprar produtos a preços menores e tornaria as empresas mais inovadoras e produtivas (
Cada caso do conselho, seja ele referente a uma concentração ou conduta, constitui um processo administrativo, que é instruído e, em seguida, julgado pelo órgão
Para decidir se aprovam ou não uma fusão, os profissionais do Cade precisam primeiramente saber quem são os participantes do mercado analisado – todas as empresas que nele concorrem, incluindo as próprias requerentes – e quanto cada um tem de participação no mercado, ou seja, quanto cada um responde em termos de receita ou oferta de algum produto ou serviço (conhecido como o
Baseado em uma pesquisa de campo na sede do Cade em Brasília, este artigo descreve a dificuldade enfrentada e as soluções apresentadas por funcionários do Cade quando os concorrentes de um mercado não são facilmente visualizados ou identificados na análise necessária à instrução de atos de concentração
Utilizando como material etnográfico os procedimentos de investigação de uma fusão no setor de educação superior privada realizados pelos profissionais do Cade, este trabalho descreve como se dá a identificação dessas entidades, ou seja, dos agentes que concorrem no mercado. Como fica claro a partir do caso apresentado neste artigo, o agente pode ser caracterizado como um “novelo” de relações de propriedade e controle empresarial, conforme denomina um conselheiro do Cade. Esse novelo ou “grupo econômico” inclui diferentes empresas, pessoas jurídicas, além de pessoas físicas que as conectam e as compõem. A descrição das práticas de identificação de concorrentes demonstra como órgãos que implementam políticas concorrenciais necessitam construir as entidades – neste caso, certo tipo de agenciamento econômico – sobre as quais o próprio governo poderá ser exercido. Essas entidades não são dadas de antemão e precisam ser definidas caso a caso. Este artigo se insere em um conjunto de trabalhos que argumentam que os regimes regulatórios ou de governo, de um lado, e os objetos ou sujeitos “econômicos”, de outro, são mutuamente constituídos por meio de práticas de conhecimento que envolvem distintos conceitos, teorias, artefatos e tipos profissionais (
Na próxima seção, explico como a visualização de um possível “problema concorrencial” por parte dos analistas do Cade exige a identificação precisa dos agentes que concorrem em um mercado, sendo que esses agentes não necessariamente coincidem com as “empresas”, as “firmas” ou as “pessoas jurídicas” que nele atuam. Na terceira seção, demonstro como o desenvolvimento do mercado financeiro tem dificultado essa identificação. Em seguida, apresento uma descrição dos procedimentos que foram realizados para identificar um concorrente na análise de uma fusão empresarial no ano de 2013. Concluo com algumas observações a respeito do modo como a sociologia e a antropologia têm se debruçado sobre o tema dos agentes ou agenciamentos econômicos.
O “xerife da concorrência”, como a imprensa denomina por vezes o Cade, é conhecido no Brasil pelo julgamento de fusões entre grandes empresas, como aquelas entre a Brahma e a Antarctica, a Gol e a Webjet ou a Sadia e a Perdigão. Mais recentemente, o órgão tem chamado a atenção pelas investigações de condutas empresariais ilícitas, principalmente cartéis de processos licitatórios, como o “cartel do metrô” de São Paulo ou aqueles mencionados na Operação Lava-Jato da Polícia Federal. A legislação concorrencial, entretanto, não restringe seu escopo apenas a certas empresas de tamanho suficientemente grande para serem largamente conhecidas do público. A lei sequer define um tipo específico de personalidade jurídica sobre a qual ela deve ser exercida. Conforme o artigo 31:
Esta Lei aplica-se às pessoas físicas ou jurídicas de direito público ou privado, bem como a quaisquer associações de entidades ou pessoas, constituídas de fato ou de direito, ainda que temporariamente, com ou sem personalidade jurídica, mesmo que exerçam atividade sob regime de monopólio legal (
O “sujeito da Lei Antitruste”, como o denomina a jurista Paula Forgioni, é “
[…] serão submetidos ao Cade pelas partes envolvidas na operação os atos de concentração econômica em que, cumulativamente: I – pelo menos um dos grupos envolvidos na operação tenha registrado, no último balanço, faturamento bruto anual ou volume de negócios total no País, no ano anterior à operação, equivalente ou superior a R$ 400.000.000,00 (quatrocentos milhões de reais); e II – pelo menos um outro grupo envolvido na operação tenha registrado, no último balanço, faturamento bruto anual ou volume de negócios total no País, no ano anterior à operação, equivalente ou superior a R$ 30.000.000,00 (trinta milhões de reais) (
Essa qualificação dos atos que devem ser notificados ao Cade implica, na prática, que apenas empresas relativamente grandes enviam pedidos de aprovação de atos de concentração. Por outro lado, no sistema econômico que caracteriza países industrializados, não são indivíduos, mas sim sociedades empresariais aquelas responsáveis pelas produção, distribuição e comercialização da maior parte dos produtos e dos serviços consumidos pela população. As infrações à ordem econômica, apontadas na introdução, são cometidas, portanto, por essas sociedades, que concorrem com outras nos mais diferentes mercados. A forma legal capaz de estruturar empresas que exercem tais condutas ou que possuem tamanha escala de faturamento é, na prática, aquela de uma pessoa jurídica.
Essa indefinição ou não especificação da personalidade jurídica do sujeito administrado pela legislação concorrencial não deve ser entendida como uma falha do legislador, mas sobretudo como uma característica da própria política antitruste, que baseia suas decisões em análises econômicas sobre o funcionamento dos mercados e das empresas. Nessas análises, as formas jurídicas nas quais as partes envolvidas em uma fusão se estruturam – seja na forma de sociedades anônimas, abertas ou fechadas, seja na forma de sociedades limitadas, pessoas físicas, entre outras – são menos relevantes que o modo como essas partes agem e se relacionam com outros participantes do mercado, ou seja, é a definição de quem concorre em um mercado, quem é o “agente econômico” específico, qualquer que seja sua personalidade jurídica, que importa na análise do órgão antitruste
Ao receber um requerimento de concentração empresarial enviado por duas pessoas jurídicas, o papel do Cade, como já dito, é verificar se essa união será prejudicial para outros concorrentes ou para os consumidores dos mercados afetados pela fusão. Esse prejuízo à concorrência tem como base o capítulo II, artigo 36, da legislação concorrencial, que especifica:
Constituem infração da ordem econômica, independentemente de culpa, os atos sob qualquer forma manifestados, que tenham por objeto ou que possam produzir os seguintes efeitos, ainda que não sejam alcançados: I – limitar, falsear ou de qualquer forma prejudicar a livre concorrência ou a livre-iniciativa; II – dominar mercado relevante de bens ou serviços; III – aumentar arbitrariamente os lucros; e IV – exercer de forma abusiva posição dominante. (
E logo em seguida:
§2o Presume-se posição dominante sempre que uma empresa ou grupo de empresas for capaz de alterar unilateral ou coordenadamente as condições de mercado ou quando controlar 20% (vinte por cento) ou mais do mercado relevante, podendo este percentual ser alterado pelo Cade para setores específicos da economia (
A legislação fornece, portanto, alguns requisitos ou indicativos para balizar a análise e a investigação antitruste referente a atos de concentração. Segundo o texto da lei, os atos que buscam “dominar um mercado” constituem “infrações à ordem econômica”. Contudo, a caracterização do “domínio” do mercado e da possibilidade de seu “abuso” por parte das requerentes faz uso de um critério de “participação” nos mercados afetados, os
Na prática, isso significa que, quando um requerimento de fusão é recebido pelos funcionários responsáveis pela instrução processual do Cade, se deve verificar qual a participação das empresas requerentes nos “mercados relevantes”, ou seja, nos mercados mais afetados pela fusão. A participação de cada concorrente é estimada pela quantidade de produtos que cada um vende no mercado ou pelo faturamento de cada um deles. Essas informações são trazidas pela própria requerente em sua petição inicial e são confirmadas por ofícios endereçados a todos os possíveis concorrentes que o órgão antitruste conseguiu identificar nos mercados afetados.
Porém, para se estimar a participação de cada concorrente em um mercado, é necessário, antes disso, definir previamente e precisamente quem são os agentes que concorrem nos mercados apontados. Cada um deve ser concebido como uma unidade econômica separada, que age de forma independente e concorre com os outros pela venda de cada uma das categorias de produtos mencionados; um agente ontologicamente equiparado, conforme a assunção da teoria econômica, a um indivíduo racional e interessado. Caso contrário, suas participações nos mercados não poderiam ser mensuradas nem muito menos somadas. Essa identificação dos agentes econômicos não costuma ser difícil, pois, na grande maioria dos processos instruídos pelo Cade, os responsáveis pela análise normalmente consideram que as pessoas jurídicas que enviaram o requerimento de concentração são também as entidades que concorrem entre si nos mercados analisados. As pessoas jurídicas quase sempre são tomadas como representando, na prática, diferentes agentes econômicos.
Contudo, a identificação de entidades econômicas concorrencialmente autônomas pode também ser bastante complexa. Com o desenvolvimento cada vez maior do mercado financeiro no Brasil, a equiparação entre certas pessoas jurídicas com certos agentes de um mercado tornou-se um problema, pois os próprios limites desses agentes ou, melhor dizendo, dos concorrentes de um mercado ultrapassam aqueles definidos pelas formas jurídicas adotadas pelas empresas requerentes ou pelas marcas empresariais conhecidas. Quando uma empresa A e B, atuantes em um mesmo mercado, são propriedade de um fundo de investimento C, como é possível saber se A e B são concorrentes no mercado, considerando que suas ações podem estar sendo coordenadas por meio de um mesmo corpo administrativo?
A dificuldade do órgão antitruste em definir quem e quantos são os concorrentes em um mercado específico é um problema relativamente recente no Brasil. Como vimos, na maior parte dos casos, as pessoas jurídicas que enviam requerimentos para unir-se com outras podem ser consideradas, para efeito de análise, como sendo os agentes que concorrem nos mercados. Essa consideração só é possível quando os proprietários e os controladores das empresas requerentes não possuem parcelas de outras ou, dito de outro modo, quando a propriedade das sociedades empresariais está nas mãos das mesmas pessoas físicas que as controlam administrativamente. Ainda hoje a maioria das empresas brasileiras tem como proprietários e administradores uma família, tornando simples a reunião de empresas, seus proprietários e administradores em uma única unidade econômica independente – um só concorrente.
Porém, o desenvolvimento do mercado de capitais e, principalmente, o crescimento dos fundos de investimento têm tornado mais complexa a visualização dos proprietários e controladores das empresas. O crescimento do mercado financeiro tem promovido a dispersão da propriedade, ao possibilitar a posse de títulos e ações empresariais por qualquer interessado que esteja disposto a adquiri-los. Se a propriedade de uma empresa e, consequentemente, sua administração podem ser distribuídas entre um grande número de pessoas físicas e/ou jurídicas, torna-se mais difícil saber onde estão as fronteiras entre uma empresa e outra, quais são seus limites. Cada vez mais as empresas estão relacionadas por meio de proprietários ou administradores em comum, o que confunde o trabalho de um órgão que precisa definir claramente, como exposto na seção anterior, os agentes que concorrem nos mercados, visando a obter uma estimativa de sua participação. Como precisar quem são os agentes autônomos e independentes de um mercado quando as pessoas jurídicas e físicas que têm a propriedade acionária e o controle administrativo de várias empresas estão relacionadas?
Na recente jurisprudência do órgão, esse problema tem sido mais frequente em casos em que as requerentes de um ato de concentração são propriedade de fundos de investimento, que também as controlam, gerando uma “sensível questão concorrencial”, segundo os funcionários do Cade. Caso um fundo possua ações e o controle administrativo de mais de uma empresa em um único mercado, ele poderia influenciá-las ao mesmo tempo, fazendo com que não concorressem entre si, pois isso seria prejudicial aos interesses do fundo. A questão enfrentada pelos analistas é como saber se a pessoa jurídica que enviou o requerimento de fusão concorre com as outras empresas do mesmo mercado quando um fundo de investimento possui ações tanto dela quanto de algumas das outras, supostamente suas concorrentes. Será que os investimentos de um fundo, quando divididos entre várias empresas de um único mercado, pode acabar tornando todas essas empresas parte de um mesmo grupo que agiria em comum acordo e orientação? Se este for o caso, todas essas empresas que receberam investimentos não poderiam ser consideradas concorrentes entre si nem agentes econômicos distintos, mas sim parte de um único agente ou grupo econômico.
Embora relativamente recentes no Brasil, problemas e questões de política pública decorrentes do desenvolvimento do mercado de capitais já eram comuns há muito tempo em países como os Estados Unidos. O próprio surgimento da política antitruste naquele país estava ligado ao combate a grandes empresas, muitas delas formando conglomerados atuantes em vários setores da economia. No final do século XIX, as
Entre os pensadores sociais que tinham interesse particular no fenômeno da separação entre propriedade e controle, produzida pela forma corporativa das empresas, pode-se mencionar Karl Marx e Marcel Mauss Para os dois autores, as corporações, por serem caracterizadas por formas coletivas de propriedade, prenunciavam uma socialização do capital por vir
Outros pensadores eram muito mais céticos quanto aos benefícios dessas novas estruturas empresariais. Em 1923, o economista institucionalista Thorstein Veblen, na sua última obra,
A separação entre os proprietários e os controladores das empresas também gerou grande interesse na sociologia organizacional a partir dos anos de 1980. Esses trabalhos, que acabaram sendo considerados fundantes da chamada “nova sociologia econômica”, procuraram explicar, por meio de variáveis institucionais, relacionais ou políticas, o modo como as organizações se comportam. Tendo em vista que a propriedade dessas organizações estava distribuída entre muitos acionistas, entre eles famílias, companhias de seguro, bancos, fundos de pensão e de investimento, e que sua administração poderia ser direcionada tanto por esses proprietários como por gerentes, conselheiros e diretores das empresas, pesquisadores tentavam determinar quais eram os fatores – relações pessoais (
Este artigo não oferece uma explicação adicional às abordagens sociológicas – ou econômicas (
Durante seis meses acompanhei o trabalho de investigação necessário à instrução de processos, realizado pelo gabinete de um dos conselheiros do Tribunal Administrativo de Defesa Econômica do Cade. O Tribunal, composto por seis conselheiros mais o presidente do órgão, tem como missão instruir e julgar os processos administrativos. Cada um dos gabinetes do terceiro andar da sede do Cade em Brasília costuma abrigar três ou quatro assessores e um ou dois estagiários que produzem ofícios, fazem pesquisas e redigem relatórios ou parte dos votos que o conselheiro leva a julgamento. Em uma manhã de novembro de 2012, uma assessora de outro gabinete entrou na sala em que eu e outros quatro funcionários estávamos e perguntou se alguém já havia utilizado as ferramentas de um website de nome MarketVisual. Como nenhum de nós havia ouvido falar desse website, ela nos explicou sua finalidade, mostrando, em uma folha impressa, a
Segundo a assessora, o website colecionava informações públicas de sociedades abertas no Brasil e no exterior, obrigatoriamente disponibilizadas conforme instrução da Comissão de Valores Mobiliários (CVM). O MarketVisual reúne informações relativas à estrutura societária, financeira e administrativa das empresas e as disponibiliza por meio de tabelas ou imagens na forma de organogramas ou redes
O processo pelo qual Camila era responsável envolvia a aquisição das sociedades Instituto Grande ABC de Educação e Ensino S/C Ltda. (IGABC) e Novatec Serviços Educacionais Ltda., ambas pertencentes ao Grupo Anchieta e localizadas na região do ABC paulista. O IGABC presta serviços na área de ensino superior e mantém a Faculdade Anchieta e a Novatec, que atuam na mesma área. Mantém também a Faculdade de Tecnologia Anchieta e o Colégio Anchieta. As duas sociedades estavam sendo adquiridas pela Anhanguera Educacional Ltda., que desenvolve, por sua vez, uma série de atividades de prestação de serviço de ensino superior no país, sendo, naquele ano, a “maior organização privada com fins lucrativos do setor de ensino profissional do Brasil e a maior empresa de capital aberto do setor de Educação em valor de mercado” (
Alguns dias depois de a assessora responsável pela instrução desse ato de concentração me apresentar e me introduzir ao software que tanto a interessava, conversei com ela para saber como tinha chegado na investigação ao nome de Ângela e por que essa “pessoa física” teria alguma relevância para a análise que, aparentemente, não parecia que fosse resultar no impedimento da fusão, como ela mesma me disse. Primeiramente, ela contou que havia descoberto algo que já havia sido uma fonte de preocupação entre alguns conselheiros do Cade durante julgamentos. Estes apontavam para uma crescente aquisição de participações societárias por parte de fundos de investimento em empresas que atuavam no mercado de educação superior privada brasileiro. Como relatado no voto do conselheiro-relator do processo instruído, o jurista Alessandro Octaviani, a formação de grandes grupos privados de educação no país é um processo “sem precedentes na história mundial” (
Segundo a reportagem “Duas concorrentes e um professor em comum”, publicada no jornal
Para a assessora, a questão “começa a se complicar” quando, de acordo com a reportagem, dois anos depois da venda parcial da Anhembi Morumbi, o Pátria foi responsável também pela abertura de capital da Anhanguera. Para isso, o Pátria criou um fundo específico, o Fundo de Educação para o Brasil (FEBR), que comprou 17% das ações da Anhanguera, sendo que a “família Rodrigues”, proprietária da Anhembi Morumbi, garantiu, por meio de uma negociação, 70% de participação nesse fundo. Mesmo com apenas 17% das ações, o FEBR, uma pessoa jurídica, tornou-se a acionista controladora da Anhanguera, segundo a reportagem. Camila descobrira, portanto, que o fundador da Universidade Anhembi Morumbi, Gabriel Rodrigues, que continuava influente nas decisões de sua empresa, era também um dos acionistas de um fundo que, por sua vez, tinha ações e controlava a Anhanguera.
Como a assessora explicou, a “questão Gabriel” gerava uma dificuldade prática para a análise do mercado de educação superior privada, no ABC e em todo o país, que exigia determinar a participação de mercado da requerente Anhanguera. Para Camila, mesmo que o caso dissesse respeito à aquisição de faculdades de uma terceira empresa – Anchieta – era necessário saber quanto a Anhanguera possuía de participação de mercado e qual era o tipo de relação entre ela e uma suposta grande concorrente, a Anhembi Morumbi. Caso a presença comum de Gabriel impusesse às duas empresas um comportamento tal que inviabilizasse a concorrência entre elas, a participação de mercado das duas empresas, Anhanguera e Anhembi Morumbi, teria que ser considerada em conjunto, pois “atuariam como um só agente no mercado”.
Além da pesquisa em jornais, revistas e sítios da internet, a assessora procurou por informações relevantes em registros das juntas comerciais do Distrito Federal, dos estados de São Paulo, Rio de Janeiro e Minas Gerais, que são acessíveis pelos seus respectivos sítios eletrônicos. Essas e outras informações colocaram em dúvida a declaração prestada pela requerente Anhanguera na petição inicial, na qual afirmava que nenhum membro da diretoria ou do conselho do grupo educacional exercia função de conselheiro ou de diretor em empresas atuantes no mesmo setor. Segundo constava da Ata da Reunião do Conselho de Administração da Anhanguera de 15 de setembro de 2010, documento enviado ao Cade pela requerente, Ângela Regina Rodrigues de Paula Freitas, filha de Gabriel Rodrigues, era membro do conselho de administração da empresa. A assessora encontrou, entretanto, um registro na Junta Comercial do Estado de São Paulo (Jucesp) que apontava Ângela também como diretora da ISCP, a sociedade mantenedora da Universidade Anhembi Morumbi/Laureate (
A assessora encontrou ainda divergências nos próprios documentos enviados pela requerente da concentração que confirmaram a “influência da família Rodrigues” e do fundo gerido pelo Pátria, o FEBR, no qual os familiares têm participações, na definição das políticas estratégicas e na gestão da Anhanguera. A requerente afirmava na petição inicial que não havia nenhum acordo entre seus acionistas ou cotistas que incluísse regras para a administração da empresa, tendo em vista que o FEBR tem apenas 17,24% da propriedade da Anhanguera. No regulamento da assembleia geral de cotistas, entretanto, enviada como resposta a um ofício produzido pela assessora, afirma-se que o fundo FEBR tem garantida a indicação de membros para o conselho de administração da empresa e a “titularidade das ações que compõem o bloco de controle” (
Segundo o voto do conselheiro-relator do processo, tendo como base a investigação realizada por Camila, pode-se identificar tanto um “novelo de relações (ou participações) societárias”, ou seja, um conjunto de relações de propriedade, como um “novelo de dirigentes”, um conjunto de relações de controle administrativo, que se estende entre a Anhanguera e a Anhembi Morumbi, envolvendo pessoas jurídicas, fundos de investimento que investem e administram essas empresas, e pessoas físicas, integrantes da “família Rodrigues”. Segundo o conselheiro-relator, a instrução do processo conseguiu revelar o “verdadeiro organizador central das decisões, o
O “núcleo organizador real”, mais uma denominação para o mesmo “arranjo”, reúne as duas empresas, os fundos de investimento que as controlam e as pessoas físicas, integrantes da família Rodrigues, que possuem parte da propriedade e o controle dos fundos. Para o relator, citando um voto anterior do conselheiro Carlos Ragazzo, esse núcleo pode ser qualificado como “grupo econômico”, conforme a denominação adotada no direito econômico, já que se pode reconhecer a existência de uma “orientação concorrencial central,, definida na cúpula do referido grupo, seja qual for sua forma de constituição, da qual se espera o cumprimento pelos demais integrantes” (
Se todas as entidades presentes nesse arranjo, pessoas físicas e jurídicas, podem ser consideradas “como se fossem uma” concorrente para fins da política de defesa da concorrência, devem ser somadas, segundo o conselheiro, “as participações e os recursos conexos dos grupos Anhanguera/Anhembi Morumbi Laureate/Pátria” (p. 1913), não apenas na instrução desse processo, mas sempre que houver a necessidade de se calcular o
Ao descrever seus procedimentos, o conselheiro afirmou que as participações acionárias de pessoas físicas, mesmo que minoritárias, as estratégias empresariais coincidentes e os corpos dirigentes cruzados entre empresas (a conhecida
[…] como sugere Mark Granovetter, aqueles que acreditam que a estrutura da empresa reside no seu organograma oficial ou nas estruturas societárias formais “não passam de bebês perdidos na floresta da sociologia”, pois a organização “formal” (e, em muitos casos, também a “informal”) da sociedade empresária não são suficientes para a análise
Dessa forma, aproximando a análise antitruste de certos estudos sociais das organizações, a análise realizada nesse caso conseguiu provar que um dos agentes econômicos do mercado, o requerente, possuía uma participação maior no mercado, tendo em vista que seu suposto concorrente, Anhembi Morumbi, era constitutivo de um mesmo arranjo organizacional. Essa definição do agente não resultou em um resultado diferente para a requerente Anhanguera, que teve sua aquisição aprovada pelo Cade. Os conselheiros entenderam que a concorrência nos mercados afetados na região do Grande ABC paulista não seria tão reduzida com a aquisição, mesmo que considerassem Anhanguera e sua suposta concorrente, Anhembi Morumbi, como parte do mesmo grupo. No entanto, as descobertas decorrentes da investigação, que enfatizaram a importância de uma análise detalhada de concentrações que envolvem fundos de investimento, construíram uma nova jurisprudência para casos no mercado de educação superior privada no Brasil.
Este artigo demonstrou como a política antitruste necessita, para ser implementada, conceber um certo tipo de agente econômico – o concorrente – tendo em vista estimar um grau de concorrência futuro para o mercado analisado por meio das participações desses agentes. Somente essa identificação permite aferir se a concentração empresarial em análise ocasionará um “dano” ou “prejuízo” à concorrência dos mercados. Como explicado, essa tarefa tem se tornado mais complexa, pois as empresas requerentes dos atos de concentração são cada vez mais propriedade de um grande número de sócios, pessoas físicas ou jurídicas, que podem ou não ter um controle administrativo sobre elas. Pode-se argumentar que essa dificuldade do órgão antitruste não é muito diferente daquela que cientistas sociais já enfrentaram ao tentar conceber determinadas formas de agências em contextos variados, em que a grande quantidade de relações torna qualquer singularidade ou unidade invisível.
Desde suas origens, a literatura antropológica vem apontando as diferentes formas de agências econômicas que não se limitam a singularidades visíveis para o observador que as analisa e, mais do que isso, se estendem para além do indivíduo, usualmente considerado a unidade e o agente por excelência no pensamento econômico ocidental. Marcel
Mesmo quando investigam a economia moderna, industrial ou capitalista, sociólogos e antropólogos também têm buscado refletir sobre as noções de agência, buscando oferecer uma crítica e um complemento para abordagens consideradas “subsocializadas”, tanto da ciência econômica como da sociologia. Por isso, não foi por acaso que o conselheiro citou em seu voto um dos artigos mais conhecidos do sociólogo Mark Granovetter, publicado em 1985, considerado fundante da chamada “nova sociologia econômica”, para justificar uma interpretação das agências econômicas da política da concorrência em termos relacionais. Este sociólogo empregou a noção de redes sociais para explicar que toda ação econômica é necessariamente imbricada (
Esses autores, e outros também – por exemplo,
A descrição de como os profissionais do Cade conceberam um agente concorrente do mercado, unindo as empresas Anhanguera e Anhembi Morumbi, ilustra como a política antitruste não está tão distante de perspectivas socioantropológicas que pensam o agente como uma rede híbrida composta de pessoas (jurídicas e físicas) e coisas (propriedade). No caso aqui observado, a identificação dos concorrentes passa também, como vimos, pela identificação de relações de propriedade e controle empresariais, que incluem também relações de parentesco (família Rodrigues), formando um “novelo” com objetivos e intenções singulares.
Se a análise concorrencial usa uma abordagem relacionalista, não é improvável que outras formas de governar a economia também tenham necessidade de produzir continuamente formas de agência econômica contextuais e específicas. Criticar o modo como alguns economistas ou certas políticas econômicas simplificam a realidade, utilizando, na prática, variações possíveis de “indivíduos maximizadores autointeressados”, não parece ser suficiente ou mesmo válido quando consideramos a diversidade de agências ou sujeitos econômicos potencialmente concebidos e construídos por meio de políticas públicas, teorias econômicas alternativas e outras práticas econômicas, eruditas ou ordinárias. Cabe aos cientistas sociais investigarem mais profundamente as diferentes formas de agências ou sujeitos econômicos, como o “concorrente” neste caso, que atravessam e formatam modos de pensar e agir economicamente nas sociedades modernas.
. No Brasil, uma nova lei de concorrência, Lei n. 12.529, de 30 de novembro de 2011, entrou em vigor em 30 de maio de 2012, substituindo a lei anterior (Lei n. 8.884 de 1994) e transferindo todo o procedimento de instrução processual para o Cade, anteriormente compartilhado com a extinta Secretaria de Direito Econômico do Ministério da Justiça e com a Secretaria de Acompanhamento Econômico do Ministério da Fazenda.
. Há uma grande variedade de condutas anticompetitivas. Essas condutas podem ser práticas “unilaterais”, quando se trata da ação de uma só empresa, ou “coordenadas”, quando duas ou mais empresas atuam em conjunto.
. A instrução processual é realizada por servidores públicos concursados e estagiários, estudantes de direito ou economia, que trabalham no Tribunal Administrativo ou na Superintendência-Geral do Cade, localizados no mesmo edifício na Asa Norte de Brasília. Este artigo trata exclusivamente da instrução e investigação ou análise de um “ato de concentração”, conforme foi realizada pelos funcionários do gabinete de um dos conselheiros do Tribunal.
. A pesquisa que embasa este artigo consistiu em uma etnografia feita entre março de 2012 e agosto de 2013 sobre a análise e o julgamento dos processos administrativos do Cade. O trabalho de campo foi realizado no gabinete de um dos conselheiros do Tribunal do Cade e em uma das coordenadorias de análise antitruste da Superintendência-Geral do órgão. A pesquisa resultou em uma tese de doutorado, defendida no Programa de Pós-graduação em Antropologia Social do Museu Nacional da Universidade Federal do Rio de Janeiro.
. Vale notar que se o direito se utiliza da noção de pessoa, seja ela física ou jurídica, concedendo a quem pode ser assim definido direitos e responsabilidades equivalentes, a teoria econômica faz uso da noção de “agente” para denominar qualquer entidade que atua em um determinado mercado, produzindo ou consumindo produtos e serviços, seja um “indivíduo” ou uma “firma” (categorias usuais da chamada microeconomia). O uso da noção de agente implica que a atenção da teoria econômica está precisamente voltada ao comportamento econômico das entidades, em especial ao modo pelo qual elas tomam decisões e fazem escolhas relativas ao consumo ou à produção.
. Não há um equivalente exato no direito brasileiro para a figura jurídica da “corporação” (
. Marx se referia às corporações inglesas da metade do século XIX, em geral instituídas pelo poder público, enquanto Mauss se referia às corporações norte-americanas privadas, em especial os trustes da virada do século XIX para o XX.
. O material empírico utilizado nesta seção resultou da observação de partes da investigação realizada durante a instrução do processo de n. 08012.0038886/2011-87, além de conversas e entrevistas com os responsáveis por esse trabalho. Utilizou-se também a versão pública dos autos do processo, cujo acesso foi feito pelo sítio eletrônico do Cade (
. O website MarketVisual é uma empresa norte-americana fundada em 2003 e baseada em Seattle, Estados Unidos, que oferece, pelo valor de US$ 19,95 mensais, um serviço de mapeamento e visualização de redes de relações entre pessoas físicas e jurídicas por meio da coleta de informações públicas de empresas abertas em diversos países. Como diz o próprio website da empresa que a controla, o MarketVisual é uma “ferramenta de pesquisa para profissionais legais, de risco e de
. Como consta no voto do conselheiro, o Grupo Estácio é controlado pelo fundo GP Investments; o Grupo Anhanguera, pelo banco e fundo Pátria; a Kroton, pelo fundo Advent Internationale; a Anhembi Morumbi Laureate Education, pelo fundo norte-americano KKR (Kohlberg Kravis Roberts). Apenas a Unip naquele momento não tinha um fundo de investimento como proprietário ou controlador. O conselheiro ainda enfatizou a dimensão desses investimentos afirmando que entre as “quinze maiores empresas educacionais do país, nove possuem um fundo ou banco de investimentos na sua estrutura de gestão e governança” (
. O conselheiro-relator cita em nota de rodapé o conhecido artigo do sociólogo Mark Granovetter, “Economic action and social structure: the problem of embeddedness” (
. “Nas economias e nos direitos que precederam os nossos, nunca se constatam, por assim dizer, simples trocas de bens, de riquezas e de produtos num mercado estabelecido entre os indivíduos. Em primeiro lugar, não são indivíduos, são coletividades que se obrigam mutuamente, trocam e contratam; as pessoas presentes nos contratos são pessoas morais: clãs, tribos, famílias, que se enfrentam e se opõem seja em grupos frente a frente num terreno, seja por intermédio de seus chefes, seja ainda dessas duas maneiras ao mesmo tempo” (