Evento: Perspectivas feministas na Amazônia indígena

2021-03-15

Perspectivas feministas na Amazônia Indígena

15 e 16 de Junho de 2021

Workshop Internacional Online, Centro de Estudos Ameríndios (CESTA-USP) organizado por Aline Regitano (alineregitano@usp.br), Chloe Nahum-Claudel (cnahumclaudel@gmail.com) e Marta Amoroso (mramoroso@usp.br)

Gênero foi por muito tempo negligenciado na literatura amazônica, periférico nas etnografias e frequentemente abordado pelos etnógrafos homens, seja como uma questão econômica da divisão sexual do trabalho, seja na chave estruturalista: natureza (mulher) / cultura (homem). A negligência analítica do gênero foi por vezes justificada pela essencialização de argumentos ontológicos de que gênero é um epifenômeno de divisões mais abrangentes entre humanos e não humanos ou de parentesco em um esquema no qual a afinidade masculina, metafísica e política engloba o feminino, o doméstico, mediado por substâncias e por consanguinidade.

Se, por um lado, a experiência das mulheres ameríndias foi invisibilizada em algumas dessas abordagens, mulheres antropólogas influenciadas pelo feminismo de segunda onda como Joanna Overing e Christine Hugh-Jones, trouxeram a análise de gênero para o primeiro plano dos estudos amazônicos desde o início, destacando o cotidiano e a intimidade como o coração da sociabilidade amazônica. Tanto Overing quanto Hugh-Jones se recusaram a opor o público e o doméstico e se concentraram na ritualização das atividades econômicas e na importação cosmológica de processos domésticos aparentemente banais e femininos.

Com base nesses e em outros estudos pioneiros da década de 1970 e também no trabalho de Marilyn Strathern sobre gênero relacional na Melanésia, as etnografias amazônicas com foco em gênero mais recentes têm centrado em suas análises temas como corporalidade, escatologia e renovação ritual. No entanto, se compararmos as tradições regionais da Amazônia e da Melanésia, é surpreendente notar que tópicos clássicos no estudo de gênero e parentesco (como casamento e noivado) que foram abordados através de lentes feministas na Melanésia bem antes do marco histórico de Marilyn Strathern, The Gender of the Gift, não tiveram tal tratamento na Amazônia. Assuntos como captura de noivas, casamento infantil ou sanções de estupro, que são frequentemente abordados nas etnografias amazônicas, tendem a ser tratados em um registro sociológico ou cosmológico holístico que evita emoções individuais, experiências ou conflitos interpessoais e tende a marginalizar a experiência das mulheres.

Na Melanésia, em contraste, a antropóloga queer Kenneth Read (uma das primeiras antropólogas nas terras altas de Papua-Nova Guiné) considerou o trauma emocional do casamento exogâmico e seus rituais violentos para meninas na década de 1950; enquanto na década de 1970, uma série de estudiosas debateram o chamado “antagonismo sexual” na região. Este foi o terreno fértil sobre o qual a teoria radical do gênero relacional e partível de Starthern foi construída. Longe de evitar a interseção de gênero e poder (como alguns críticos erroneamente assumiram), Strathern fez esforços para reformular temas de dominação e controle fora dos modelos universalistas de patriarcado e, ao fazer isso, ir além da crítica do androcentrismo na escrita e análise antropológica. Esses são aspectos do trabalho de Strathern que os estudos amazônicos ainda precisam explorar completamente. 

Aqui estão algumas das questões que surgem dessa comparação entre as tradições melanesia e amazônica. Quando o argumento de que uma análise de gênero é simplesmente menos relevante na Amazônia igualitária e orientada para o outro, aceita tacitamente o androcentrismo – isto é, a suposição frequentemente inconsciente de que a experiência masculina é normal ou primária e representa o todo? Como uma análise feminista poderia transformar nossa compreensão das políticas, carregadas de poder, das alianças ou religiões? O viés analítico e etnográfico é, sem dúvida, apenas parte da história. Por que será que tem sido difícil de entender gênero na Amazônia, como se tivesse se evitado a atenção etnográfica porque oferecia apenas fatos enganosamente comuns?

E de que novas perspectivas precisamos para nos afastar de uma insistência marxista na dominação masculina na vida econômica e política, ou uma ênfase marxista estrutural na ascensão da cultura (codificada pelo homem) sobre a natureza (codificada pela mulher)? E podemos ir além da tendência oposta, que é insistir na complementaridade e igualitarismo nas relações de gênero? A genialidade de Strathern foi centrar a interseção das relações de gênero e poder enquanto articulava uma crítica feminista do patriarcado e dos modelos antropológicos que o assumiam. Ainda há muito a ser extraído dessa abordagem. Nesse sentido, recebemos artigos que oferecem uma reflexão crítica sobre a história da análise de gênero nos estudos amazônicos e experimentos etnográficos com novos modelos de análise feminista.

Nosso segundo tema diz respeito ao cruzamento de análises de gênero e experiências coloniais. Embora os estudos amazônicos de pessoa, parentesco e corporalidade às vezes tenham centrado a análise de gênero, este trabalho ainda precisa ser feito para considerações da experiência colonial e neocolonial e há uma literatura contemporânea vibrante na intersecção de gênero e colonialismo com a qual dialogar, notavelmente da África, Melanésia e Oriente Médio.

Muitos estudos procuraram explicar, por uma veia feminista e decolonial,  a perda de status das mulheres como o efeito combinado dos modos de produção capitalistas que minam as economias coletivistas com base em uma divisão de gênero complementar do trabalho; e a imposição de valores patriarcais hegemônicos por meio de uma combinação de missionização e estruturas legais, burocráticas ou de governança que engendram o heteropatriarcado, bem como influências culturais (incluindo, por exemplo, a masculinidade das fronteiras coloniais, ou a difusão de imagens de violência sexual masculina na pornografia). As antropólogas também destacaram o papel da essencialização racista que sexualiza as mulheres colonizadas, ou pressupõe o machismo dos homens colonizados, na transformação das relações de gênero nas fronteiras coloniais.

O que podemos tirar dessas literaturas à medida que abordamos novas questões em torno (mas não se limitando a): construções de gênero nas redes sociais; biomedicalização e construções biomédicas do corpo (e violência biomédica); Pedagogia de gênero do cristianismo; escolaridade e participação nas relações de trabalho e uma miríade de outros contextos? Que modelos as pessoas e grupos amazônicos estão inventando nesses novos contextos, por meio de interações com plantas e animais; engajamento com destruição e crise ambiental; por meio de feminismos e transfeminismos indígenas; novas formas de organização política de mesmo sexo e de sexo oposto; inovações rituais ou neoxamanismos; cristianismos heterodoxos; a mobilização de novas formas de riqueza; ou formas familiares emergentes (por exemplo, a supressão da poligamia ou o aumento do fenômeno de mães solteiras)? Se a literatura feminista decolonial tem muito a nos oferecer enquanto estudiosas da Amazônia, que novas perspectivas poderíamos, em retorno, trazer para tais discussões?

No espírito de diálogo crítico, abertura e experimentação, convidamos pesquisadoras e pesquisadores de qualquer estágio da carreira acadêmica, ou pessoas que trabalham com povos amazônicos em capacidades não acadêmicas, para refletir sobre gênero e a escola feminista na Amazônia Indígena; seu passado, seu presente e futuro. Inspire-se com esta chamada, mas não se limite a ela.

Queremos que este workshop virtual de dois dias seja o início de algo: um evento criativo e de apoio para etnógrafas feministas e pesquisadoras de gênero que trabalham com comunidades indígenas amazônicas para compartilhar suas ambições, frustrações e esforços analíticos enquanto lutam com a história da antropologia amazônica e os desafios voltados aos grupos amazônicos hoje.

Sobre o evento:

O evento acontecerá de modo online nos dias 15 e 16 de Junho de 2021.

Artigos curtos (3.000 palavras) serão pré-circulados em 1 de junho. O que pode assumir a forma de análises etnográficas; formulação de questões e problemas encontrados durante a pesquisa; leituras feministas críticas de obras existentes na antropologia amazônica; ou qualquer outra coisa que esta chamada inspire. A ideia norteadora é que estamos reunindo e trabalhando coletivamente através de críticas, problemas e perplexidades, tanto quanto apresentamos e avaliamos abordagens e teorias existentes. Cada conjunto de artigos será comentado por uma debatedora (entre o grupo), que extrairá problemáticas compartilhadas do conjunto de artigos, levando a uma discussão aberta.

As participantes devem se sentir à vontade para escrever seus artigos em inglês, português, francês ou espanhol. São convidadas a intervir em qualquer uma destas línguas, mas preferencialmente em inglês e português.

Nossa ambição é de que este evento nos levará a:

  • uma rede de pesquisadoras e pesquisadores feministas e de gênero trabalhando na Amazônia Indígena.
  • um dossiê na revista Cadernos de Campo que mapeia os terrenos de pesquisadoras existentes e futuras.
  • uma bibliografia elaborada coletivamente de trabalhos de análise feminista da Amazônia.

Por favor, envie seu resumo de 150 palavras para Chloe Nahum-Claudel e Aline Regitano até 16 de abril de 2021. Se recebermos mais resumos do que podemos acomodar, uma decisão baseada no ajuste entre os artigos será tomada até 30 de abril.