[SUBMISSÕES PRORROGADAS] Chamada para o n° 36 - Irrupção e reação (Raça, gênero, sexualidade e classe na teoria literária brasileira contemporânea)

2023-01-31

O objetivo deste número é reunir trabalhos que busquem entender melhor as implicações para a teoria e a crítica literárias de algumas mudanças ocorridas nas universidades nas últimas décadas. Interessam, nesse sentido, tanto o estudo da natureza de demandas dirigidas à instituição universitária e suas práticas acadêmicas – incluindo reivindicações de reparação histórica, de valorização de nomes, textos e epistemologias marginalizados e de transformação, ampliação ou destruição do cânone – quanto a análise das respostas a essas reivindicações, que variam da assimilação e incorporação a tentativas de negação e neutralização. Ainda que o foco principal seja o estudo da literatura no Brasil, imaginamos que sejam possíveis comparações produtivas com outros contextos.

 

Exemplos desses esforços são as reivindicações de diferentes tipos, vindas de movimentos sociais ou resultando de uma nova distribuição de forças no ambiente universitário, sobretudo desde a implementação de cotas raciais nas universidades públicas brasileiras, que colocaram em questão consensos antigos a respeito do arquivo e da utilidade de conceitos e teorias valorizados pela tradição nacional. Ao serem dirigidos à academia e suas tradições hegemônicas, esses gestos críticos encontraram reações de diferentes tipos, que abrangem desde a modificação de algumas estruturas e práticas institucionais até reações conservadoras e lamentos ressentidos, como os encontrados com frequência em estruturas argumentativas que se repetem em falas e textos variados. Em outro nível, também se multiplicam casos mais extremos, como os de manifestações recentes em muros de universidades, na USP, UNIFESP e UEMG, nas quais aparecem referências explícitas ao incômodo gerado por mudanças na ocupação dos espaços universitários.

 

Assim, o número pretende dialogar com produções críticas recentes que têm buscado contribuir para a “des-senhorização da universidade” (BORGES; BERNARDINO-COSTA, 2022) e da cultura local, empenho que se nota também em pesquisas dedicadas a estudos sobre branquitude, antinegritude, heteronormatividade, lgbtqipa+fobia e misoginia (AHMED, 2022; BENTO, 2022; MANNE, 2016, 2018; MIRANDA, 2019; PRECIADO, 2022; SCHUCMAN, 2014; VILLIERS, 2012).


O motivo de alguns desses gestos críticos estarem menos presentes nos estudos literários do que em outras áreas é outra questão que pode ser interessante examinar. Por que, afinal, parece haver na teoria literária brasileira uma resistência especial ao reconhecimento da produtividade de se pensar, por exemplo, através de categorias como literatura branca e cisheteronormativa? Se, em outras áreas do conhecimento, também elas tradicionalmente baseadas em economias de extração e captação, são nítidos movimentos reflexivos de autocrítica, e se até de “Geologia branca” se fala (YUSOFF, 2018), por que há tanta oposição à nomeação de uma crítica literária branca e patriarcal? Qual a relação entre essa resistência na área e a persistente devoção a termos como humano, humanização, grandes obras, clássicos, imanência, valor, Ocidente e literatura nacional? Como novas formas de ressentimento e melancolia branca e cisheteronormativa se manifestam, concreta e teoricamente, em textos, congressos, processos seletivos, concursos públicos, currículos, salas de aula e pareceres anônimos?

 

Também interessa a este número compreender melhor a relação entre a adoção precoce por certa crítica literária, a partir dos anos 1990, de termos como politicamente correto, cancelamento, moda e identitarismo, utilizados sempre em tom de denúncia, e uma ansiedade social que passamos a associar a uma cultura política reacionária que pelo menos no Brasil ganharia maior visibilidade e poder a partir dos anos 2010, levando nos dois casos a esforços por preservar poder e privilégios e a tentativas de reinstituir a centralidade de um arquivo etnocêntrico e patriarcal. Alguns momentos importantes dessa história, que pode ser produtivo revisitar, incluem as leituras celebratórias e monumentalizantes do Modernismo, por ocasião de seu centenário, e o debate sobre o racismo de Monteiro Lobato, episódio em que a identificação de elementos e estruturas racistas na obra do autor gerou réplicas defensivas e ressentidas de importantes instituições ligadas ao estudo da literatura, processo que interessa por ter demonstrado a convergência entre práticas institucionais e a história da consolidação de determinados conceitos e teorias. Interessa, sobretudo, entender como as tensões glosadas aqui ganham forma como disputas teóricas, como as que ocorrem em torno de conceitos como lugar de fala, identidade e escrevivência ou em debates sobre noções de autoria, recepção e critérios de valor (PEREIRA, 2022; EVARISTO, 2008).

 

Inversamente, que tipo de movimento se tornaria possível, no pensamento e em práticas materiais, caso nos permitíssemos pensar com rigor as relações entre escravidão, racismo, patriarcado, heteronormatividade, cânone e teoria literária? Quais formas de releitura da tradição e intervenções no arquivo e na sociabilidade racista e patriarcal de que ele depende poderiam emergir dessas operações?  E qual a particularidade da contribuição que a teoria literária e o estudo de questões de estética podem dar a discussões recentes em torno a esses temas, como as que vêm ocorrendo em movimentos sociais e culturais e em disciplinas como a Antropologia, a Filosofia, a Sociologia, a História, a Educação e a Psicologia? Indo além das acusações de estrangeirismo e das alegações de que o pensamento negro radical, a crítica feminista e a teoria queer seriam apenas mais uma moda, como podemos pensar criticamente a relação complexa entre esses movimentos, o mercado e o capital? Quais são as tensões internas a esses questionamentos? Considerando, ainda, a particularidade da inserção do Brasil no capitalismo globalizado, a dimensão e violência de suas fraturas sociais e suas peculiaridades demográficas, é mais limitada no Brasil a adesão a noções neoliberais de inclusão, em comparação com aquilo que se observa em outros países? Essas particularidades levam a diálogos possíveis entre correntes críticas que pensam as categorias de raça, gênero, sexualidade e classe, incluindo alianças com vertentes da crítica marxista? Em resumo, o número busca reflexões que procurem compreender a complexidade tanto dos movimentos de irrupção quanto dos desejos de conservação, desejo por vezes tocado pelo ressentimento.

 

Nessa linha, a chamada para o número 36 da Criação & Crítica aceitará trabalhos que dialoguem com os seguintes temas:

 

  • tensões dentro da crítica literária, tendo em mente discussões que envolvam categorias como gênero, raça, sexualidade e classe;
  • relações entre novas formas de pensar a crítica literária e movimentos recentes na Antropologia, na Sociologia, na Filosofia, na teoria queer, no pensamento crítico negro, no feminismo, etc.;
  • propostas que, indo além da releitura do arquivo, buscam novas formas de se pensar o exercício crítico, como se nota em livros como Viver uma vida feminista (2022) de Sara Ahmed, Perder a mãe (2021) e Vidas rebeldes (2022) de Saidiya Hartman e Afropessimismo (2021) de Frank B. Wilderson III;
  • leituras de produções marginalizadas pela crítica hegemônica;
  • análises dos cursos de Letras, em especial no campo de estudo e pesquisa sobre Literatura: grades curriculares, referências canônicas, formas de ingresso, composição dos corpos discente e docente, etc.

Submissões: A revista aceita artigos acadêmicos escritos em português, francês, espanhol e inglês, bem como resenhas, entrevistas, traduções e exercícios de estilo (textos na fronteira entre o crítico e o literário). Para consultar as seções da revista e as Diretrizes para autores, acessem: https://www.revistas.usp.br/criacaoecritica/about/submissions

Fim do prazo para recebimento dos trabalhos: 30/05/2023

Editores convidados:
Ariadne C. dos Santos (USP)
Fabio P. Saldanha (USP)
Marcos Natali (USP)

Referências

Elencamos abaixo tanto referências utilizadas para a construção da chamada deste dossiê quanto textos que ensaiam movimentos semelhantes ao que propomos. Não constituem bibliografia obrigatória, mas uma seleção de exemplos de diálogos possíveis.

AHMED, Sara. Viver uma vida feminista. Trad. Jamille Pinheiro Dias, Sheyla Miranda e Mariana Ruggieri. São Paulo: Ubu Editora, 2022.

BENTO, Cida. O pacto da branquitude. São Paulo: Companhia das Letras, 2022.

BORGES, Antonádia; BERNARDINO-COSTA, Joaze. “Des-senhorizar a Universidade: 10 anos da Lei 12.711, ação afirmativa e outras experiências” (Chamada de Dossiê). Disponível em <http://revista-mana.org/dossie/>.

BROWN, Wendy. Nas ruínas do neoliberalismo: a ascensão da política antidemocrática no ocidente. Trad. Mario A. Marino e Eduardo Altheman Santos. São Paulo: Politeia, 2019.

BUTLER, Judith. “Em perigo/perigoso: racismo esquemático e paranoia branca”. Trad. Fabiana A. Jardim, Jacqueline Moraes Teixeira, Sebastião Rinaldi. Educação e Pesquisa, v. 46, p. 1-9, 2020.

CARDOSO, Lourenço C. “A branquitude acadêmica, a invisibilização da produção científica negra, a autoproteção branca, o pesquisador branco e o objetivo-fim”. Educação, v. 47, n. 1, p. 1-24, 2022.

COLEBROOK, Claire. “Slavery and the Trumpocene: It's Not the End of the World”. Oxford Literary Review, 41 (1), 2019, p.40-50.

DUARTE, Eduardo de Assis (org.). Literatura e afrodescendência no Brasil: antologia crítica. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2011.

EVARISTO, Conceição. “Escrevivências da Afro-brasilidade: História e Memória”. Releitura, n. 23. Belo Horizonte: Fundação Municipal de Cultura, 2008.

GUERREIRO RAMOS, Alberto. “Patologia social do ‘branco’ brasileiro”. Introdução crítica à sociologia brasileira. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 1957.

HARTMAN, Saidyia. Perder a mãe – uma jornada pela rota atlântica da escravidão. Trad. José Luiz Pereira da Costa. Rio de Janeiro: Bazar do Tempo, 2021.

__________. Vidas rebeldes, belos experimentos: histórias íntimas de meninas negras desordeiras, mulheres encrenqueiras e queers radicais. Trad. floresta. São Paulo: Fósforo, 2022.

HOOKS, bell. Ensinando a transgredir: a educação como prática da liberdade. Trad. Marcelo Brandão Cipolla. São Paulo: Martins Fontes, 2013.

_______. “Negra e mulher: Reflexões sobre a pós-graduação”. Erguer a voz: pensar como feminista, pensar como negra. Trad. Cátia Bocaiuva Maringolo. São Paulo: Elefante, 2019.

MANNE, Kate. "Humanism: a critique". Social Theory and Practice, v. 42, n. 2, p. 389-415, 2016.

_______. "Melancholy Whiteness (or, Shame-Faced in Shadows)". Philosophy and Phenomenological Research, v. 96, n. 1, p. 233-242, 2018.

MBEMBE, Achille. Políticas da inimizade. Trad. Sebastião Nascimento. São Paulo: n-1 edições, 2020.

MIRANDA, Fernanda R. Silêncios prEscritos: estudos de romances de autoras negras brasileiras (1859-2006). Rio de Janeiro: Malê, 2019.

POVINELLI, Elizabeth A. Geontologies: A requiem to late liberalism. Durham: Duke University Press, 2016.

PEREIRA, Edimilson de Almeida. Entre Orfe(x)u e Exunouveau: análise de uma estética de base afrodiaspórica na literatura brasileira. São Paulo: Fósforo, 2022.

PRECIADO, Paul B. Eu sou o monstro que vos fala: relatório para uma academia de psicanalistas. Trad. Carla Rodrigues. São Paulo: Zahar, 2022.

SCHUCMAN, L. V. Entre o encardido, o branco e o branquíssimo: branquitude, hierarquia e poder na cidade de São Paulo. São Paulo: Annablume, 2014.

SILVA, Denise F. da. “À brasileira: racialidade e escrita de um desejo destrutivo”. Revista Estudos Feministas, v. 14, n. 1, p. 61-83, 2006.

VILLIERS, Nicholas de. Opacity and the closet: queer tactics in Foucault, Barthes, and Warhol. Minneapolis: University of Minnesota Press, 2012.

WILDERSON III, Frank B. Afropessimismo. Trad. Rogério Galindo e Rosiane C. de Freitas. São Paulo: Todavia, 2021.

YUSOFF, Katherine. A Billion Black Anthropocenes or None. Minneapolis: University of Minnesota Press, 2018.