ENTREVISTA
Tateando o universo de criação das artistas Regina Chamlian e Helena Alexandrino
Por Ana Lúcia de Oliveira Brandão1
Helena Alexandrino e Regina Chamlian

Quando o assunto é Literatura Infantil e Juvenil de alta qualidade, a Arte Literária é um tatear intuitivo que se tece na relação com as palavras, das imagens com as palavras e desse campo intersemiótico da troca que promove o enriquecimento de ambas. Regina Chamlian e Helena Alexandrino mantêm uma dupla de criação há quase vinte anos para sorte das crianças brasileiras. Essa trajetória da dupla valeu a ambas diversas premiações como a de autor revelação por A risada do Saci (Editora Ática) pela Biblioteca Monteiro Lobato e o Prêmio Jabuti de melhor ilustração (1996). A hora da caipora (Editora Ática) recebeu o Altamente Recomendável da FNLIJ. Comadre Florzinha contra a Mula-sem-cabeça (Editora Ática) teve suas ilustrações selecionadas para a Mostra de Bolonha (1997) e A Cuca vem pegar (Editora Ática) recebeu o Selo White Ravens 1997 (Biblioteca Internacional para a Juventude de Munique – seção alemã do IBBY). Helena Alexandrino foi indicada em 1992 e 1998 ao Prêmio Hans Christian Andersen, o mais importante prêmio mundial dedicado à ilustração infantil. Vovô virou árvore (Edições SM) ganhou o Prêmio 30 melhores livros infantis do ano Crescer 2010.

Nessa entrevista, serão pontuados alguns dos muitos aspectos da trajetória da escrita de Regina Chamlian, destacando ricos momentos em que seu texto literário encontrou ressonância e personalidade nos traços e cores fluidas da aquarela poética de Helena Alexandrino.

Vamos inicialmente ao livro “O desgosto da lagosta” (Editora Ática, 1993). Esse poema narrativo conta em primeira pessoa do singular, em tom intimista de ritmo cadenciado, com muito humor e ironia, a trajetória de uma lagosta que é jogada de um lugar para outro, de baixo para cima, até desembocar no mar- verdadeiro horizonte infinito de possibilidades. Nesse livro “O desgosto da lagosta”, o leitor pode apreciar as idas e vindas entre texto e imagem, sendo que, em alguns momentos, a ilustração é quem conta segredos a serem desvendados. Quanto ao universo infantil, para o qual essa obra se destina, temos a percepção de que vocês, Regina e Helena, acreditam e muito nesse leitor observador, cuidadoso na leitura tanto do texto literário quanto da poética visual proposta pelo livro. Foi nessa realização que vocês formaram uma dupla de criação?

Regina Chamlian: Antes de fazer O desgosto da lagosta tínhamos realizado outros projetos juntas. O primeiro que fizemos em parceria mesmo foi O pintinho que nasceu quadrado, em 1980 (Editora Pioneira), cujos desenhos são até hoje inéditos, porque na época o editor não aceitou as ilustrações da Helena, eu não queria publicar sem os desenhos dela, mas ela fez absoluta questão que eu publicasse mesmo assim. Então, a dupla começou ali, só que foi uma dupla que teve que esperar. O que saiu pela editora Global, em 2007, teve o texto revisto e novas ilustrações, com exceção do desenho da própria personagem pintinho quadrado, que nasceu daquele jeito, criado pela Helena. E ela não viu problema que eu pedisse para o outro ilustrador desenhar o pintinho como ela o tinha inventado: um cubinho. O primeiro livro que de fato publicamos em parceria foi A raposa. Ele é uma obra de criação conjunta, desde as ideias iniciais até a participação concreta das duas linguagens, a verbal e a visual, na construção dos significados da obra. Foi nesse livro que percebemos as possibilidades artísticas do livro-ilustrado e acho que foi esse livro que estabeleceu a nossa dupla. Depois dele, veio O desgosto da lagosta.

Que bela revelação! Assim os estudiosos de Literatura Infantil ficam a par dos descompassos que acontecem entre o mercado editorial e o universo da criação. Como foi pensar na dupla "lagosta e desgosto"?

Regina: Segui a máxima carrolliana: preocupe-se com os sons, que os sentidos cuidarão de si mesmos. Na época, eu gostava muito de ouvir umas obras para piano do Chopin, do Debussy, do Satie e do John Cage. Aquele romantismo do Chopin, aquele exagero, os ritmos, a métrica, fui dialogando com essas músicas e acompanhava com surpresa o que era provocado pelo acaso das rimas. Não é à toa que a lagosta caiu dentro de um piano, numa de suas quedas. Nem me dei conta de início que estava compondo uma balada, que é um poema narrativo que tem aqueles refrões, e os ecos. E que tudo estava indo para o mar.

Helena Alexandrino: Quis que a lagosta tivesse bastante espaço para ‘voar’ neste livro, por isso, criei as ilustrações em páginas duplas, para que ela tivesse o horizonte aberto, sempre, o que poderia minimizar o seu desgosto.

Esse humor pleno de imprevisibilidade e absurdo recheia o texto como um todo desvelando um sentimento de inadequação e rejeição. Esses são, sem dúvida alguma, sentimentos que calam fundo a todo ser humano, em qualquer fase de vida, e arrisco dizer, que é uma questão sua que se reverbera no universo da Arte como um todo, porque é do artista ter sensibilidade e olhar únicos sobre a vida e as coisas e, portanto, esse sentimento que abarca um maior ainda de estranhamento lhe é muito conhecido e, muitas vezes, é motivo de angústia, de “desgosto” no dizer da lagosta. E essa questão, de forma diversa, já se manifestou na primeira versão de O pintinho que nasceu quadrado, não é mesmo?

Regina: Esse sentimento de estranhamento que você menciona, de se sentir estrangeiro, se sentir um outro, acho que está mesmo sempre presente no meu trabalho. Isso aparece n’O pintinho que nasceu quadrado, em Os cachorros vieram do espaço... também em O menino mais feio do mundo – aconteceu no São João (Ática, 2006), que trata a questão da beleza e da feiura, do bem e do mal, e dessa problemática de inadequação e rejeição, de bullying mesmo. Mas acho que, em todos eles, esse sentimento nunca está separado de um certo sentido do humor.

Seu trabalho apresenta uma veia humorística constante, inteligente e envolvente. Vocês poderiam nos contar um pouco sobre como funciona a dinâmica de trabalho da dupla? O processo criativo é solitário ou vocês trocam informações desde o início do projeto?

Regina: Podemos dizer que não há um modo fixo que seguimos para todos os livros, parece-nos mais que cada obra nasce de um jeito próprio, e a relação de trabalho varia também, por conta disso. Mas algo que a gente mantém em todos os livros é conversar antes sobre o projeto que queremos fazer, como a gente acha que deve ser a personalidade do livro novo, as associações que a gente faz, coisas que nem sempre a gente vai cumprir, claro, mas elas dão certo tom, certa direção, que é compartilhada.

Helena: Depois, na mesa de trabalho, as coisas podem mudar, isto é inevitável, ideias novas surgem, ou elas tomam outro rumo, fazem uma curva, ou geram outras ideias. Um livro é uma coisa viva, como uma planta.

Regina: E mesmo compartilhando as ideias gerais de um projeto, a gente gosta de fazer um certo mistério: nunca mostro o que estou escrevendo até ter uma primeira versão, a Helena esconde todos os leiautes.

Helena: É... porque mesmo trabalhando em parceria, e tendo consciência também de que fazemos parte de uma tradição artística e cultural, o processo criativo é solitário. A gente precisa dessa reclusão, dessa imersão, para encontrar os elementos do nosso próprio imaginário, da nossa própria poética, que é pessoal.

Regina, e você, quando imagina uma história já a põe no papel ou fica amadurecendo ideias no plano mental, na imaginação?

Regina: As experiências são diferentes a cada livro. Posso dizer que os dois modos ocorrem, pôr logo no papel ou ficar refletindo mais longamente. De um jeito ou de outro, parece que a convivência com um tema é necessária, deixar que aquilo brote no devido tempo.

Quando você revê seu processo de criação, considera que o pensamento visual se sobrepõe ao conceitual, dado que sua formação foi na área do Cinema?

Regina: Tenho sim uma grande paixão pela linguagem visual, que vem da pintura, que vem do cinema, mas também acho fascinantes a musicalidade das palavras ou a força intelectual que elas podem carregar. Acho que, na literatura, o pensamento visual, o pensamento ‘auditivo’ e o pensamento conceitual se complementam. O que pode acontecer é de um determinado livro enfatizar um desses aspectos, porque provavelmente foi pensado principalmente por algum deles em particular.

Vamos agora comentar um pouco sobre a obra Trio Tantã (Editora Paulinas, 1996). Trata a narrativa em 3ª pessoa do singular da história de três tigres, baseada em trava-línguas do tipo: “Trazei três pratos de trigo para três tigres comerem”. A trama centra-se na aventura de três tigres músicos que resolvem tocar e cantar como tenores em uma apresentação teatral. A brincadeira visual de “esconde-esconde” com o leitor é contínua, ora mostrando, ora escondendo o que acontece atrás das cortinas, que se seguram nas margens da ilustração. Conforme a confusão acontece e o espetáculo falha com as expectativas do público, as margens também deixam de ser simétricas e assumem a assimetria da bagunça e o final traz novo equilíbrio às ilustrações e margens. Notamos que essa brincadeira com as margens é recurso usado em livros para crianças pequenas, como é o caso dessa obra, que brinca com trava-línguas, com rimas inesperadas em “t” e notamos que isso se reflete nas ilustrações. Como foi a pesquisa de vocabulário para criar as rimas desta história? Você fez consultas ao Dicionário de rimas de Carlos Drummond de Andrade? A brincadeira que parte de um trava-línguas, acaba por criar outros, trazendo a todo momento desafios para quem lê essa história em voz alta, um desafio que sabemos de antemão as crianças adoram. Você pensou nessas questões enquanto escrevia ou mais uma vez a obra foi além do escritor?

Regina: Essas brincadeiras com as palavras, com a sonoridade delas e com o desafio de criar novos trava-línguas era mesmo a proposta do trabalho, que incluía também a existência de uma narrativa que parecesse não ter, mas que tivesse, sentido. Para realizar a pesquisa, você primeiro trabalha com o que tem, vai seguindo a sua própria proposta de escrever uma história na qual as palavras tenham bastante ‘t’, então aquilo vai acontecendo no papel, e depois sai para procurar o que não tem, aí entra o dicionário. E o ‘dicionário de rimas do Carlos Drummond de Andrade’ que você mencionou devia estar no inconsciente, é claro, mas não foi consultado especialmente para o Trio Tantã. Mas lembro de ter encontrado‘turumbamba’ no Aurélio. E depois de ter achado turumbamba, o teatro tinha que tombar. As palavras têm ímã.

E o teatro, a linguagem teatral foi uma inspiração para essa história e para as ilustrações? Ou teriam sido os desenhos animados?

Regina: O teatro mambembe, o teatro de saltimbancos, o circo, desenhos animados, sem dúvida, e o cinema pastelão. Sempre saía tudo ao contrário do que pretendiam as personagens dessas encenações: levavam ovos na cara, bolos, tortas cremosas, coisas explodiam e os deixavam cheios de fuligem e com os cabelos eriçados, um sem-fim de situações malogradas. Essas cenas faziam a alegria de minha infância porque, sempre dando tudo errado, dava certo.

Helena: Inventei aqueles ratos com nariz-bola de palhaço, porque tem essa ideia de que em teatro sempre tem rato. E rato tem ‘t’: é uma brincadeira da ilustração com o trava-língua. Quando menina, tive oportunidade de ver uma família circense que montava um cirquinho para as apresentações. As estruturas mal seguravam a lona. E tinha um palhaço que andava numa perna de pau, sempre a ponto de cair. Quando o teatro cai em Trio Tantã, as molduras, que comentavam visualmente o jogo verbal desde o começo do livro, despencam também por uma correspondência poética, seja com a história do livro, seja com essa expectativa infantil.

No O livro dos desgatos (Editora Paulinas), o humor continua presente. Encontramos treze criaturas fantásticas que surgiram da observação do cotidiano, nos deparamos com o uso do dicionário para criar neologismos divertidos, que me remeteram às “aprontações” com a linguagem criadas pela personagem Emília em Emília no país da gramática de Monteiro Lobato. Você pensou nisso?

Regina: Não, não pensei. Li Emília no país da gramática, claro, provavelmente teve um papel na minha formação como escritora. Mas a motivação para fazer este livro foi criar meus híbridos. O que me interessava era que estas treze criaturas, por serem híbridas e abrigarem em si mesmas a contradição ou a alteridade, de algum modo buscassem escapar do lugar-comum, da mesmice, do confinamento cultural e procurassem novos horizontes.

Qual a sua relação com o dicionário, você pode nos contar? O que é um dicionário para um escritor? O dicionário é uma inspiração na sua relação com as histórias?

Regina: O escritor vai ao dicionário para ver se a palavra que ele está usando diz exatamente o que ele quer expressar, ou ele vai passear pelo dicionário para se surpreender com os achados. Para mim, o dicionário é um companheiro do jogo literário. Em trabalhos como Trio Tantã e O livro dos desgatos, ele era consultado bastante, dos dois jeitos que acabei de falar. Há livros, no entanto, em que a proposta é bem outra, a narrativa se desenvolve num curso próprio, às vezes de um jeito ininterrupto e até misterioso, ninguém vai querer parar de ouvir as musas para consultar um dicionário, não é? Isso não quer dizer que o dicionário não possa ser ele mesmo a musa.

No livro “O livro dos desgatos”, o texto é uma brincadeira com as palavras, entre o literal e o poético, criam-se neologismos que recebem uma explicação depois, na forma de texto jornalístico satírico como é o caso da Bruxoteca, que inclusive apresenta um regulamento. Como o livro foi elaborado?

Regina: Tentei reunir partículas de palavras que não existiam juntas antes, e quando achava que o resultado me agradava, então inventava o universo dessa ‘criatura’. Algumas tentativas não deram em nada, e abandonei-as. A Bruxoteca me deu bastante trabalho, provavelmente pela natureza rebelde de uma de suas partes. Gostei de como a Helena desenhou os nomes das criaturas e conseguiu dar forma visual às palavras. Em Melopé, por exemplo, o M tem pernas e pés que pisam uma partitura musical. No Pseudocão, o P tem orelhas, focinho e rabo de cachorro.

Helena: Os personagens deste livro estão sempre inquietos, buscando o mar, uma janela aberta, um caminho para a aventura, pra contemplação. Ou para a alegria de sonhar e de se inventar. Tentei dar forma a essas fantasias, me inspirando na diagramação dos jornais, nas histórias em quadrinhos e nos almanaques antigos.

Agora vamos à Coleção Contos de espantar meninos, da editora Ática, que se destaca por sua abordagem original, reunindo personagens do rico imaginário brasileiro como saci, caipora, cuca, mula sem cabeça, travestidos em figuras do cotidiano infantil das grandes cidades. Como foi a pesquisa para a realização dessas histórias tão curiosas?

Regina: Posso dizer que, desde a minha infância, eu conhecia esses personagens mitológicos da cultura brasileira. Essa vivência já é pesquisa, para um autor. O desafio foi criar novas histórias para esses seres mitológicos tão conhecidos, ambientá-los no mundo urbano e contemporâneo, sem perder o vínculo com aquela experiência infantil, somada a uma pesquisa cuidadosa na vasta bibliografia existente sobre folclore brasileiro, que encontramos no Cascudo, em Lobato, e em outros autores.

Esse procedimento se refere à coleção como um todo. Mas cada livro exigiu também pesquisas adicionais, dessa vez relacionadas com o enredo, com a singularidade de cada história. Por exemplo, no livro Pescadores de Lobisomem, tem uma cena grande que se passa no cemitério, à meia-noite, então, fomos obrigadas a ir a esse locus horrendus pesquisar as árvores, a estatuária, as inscrições nos túmulos, mas nem mesmo em nome de uma pesquisa mais criteriosa pusemos lá os pés à meia-noite! Já quando fui compor a ambientação de A hora da caipora, que se passa na mata, fiz uma pesquisa específica sobre florestas brasileiras, sobre como se caça uma onça, como é a sensação de você estar numa floresta... e sobre outras coisas que estão dentro da história, como urubus, pimentas... para conhecer um pouco mais o universo sobre o qual eu queria escrever.

Helena: Pesquisei a história da arte brasileira, as gravuras, objetos e pinturas da arte popular, flora, fauna, arquitetura, padronagens, paisagens... Depois, busquei conciliar essa pesquisa com a criação de um projeto gráfico que tentasse dar conta do clima de mistério, medo e de humor presente em todos os livros desta coleção. Isso se concretizou na escolha do formato vertical, buscando criar tensão entre os campos verbal e visual, no jogo entre as ilustrações grandes coloridas e as pequenas vinhetas em branco-e-preto, no desenho das capitulares, nas distorções de perspectiva e nas variações dos ângulos das imagens. E as imagens, elas mesmas, nasceram ao longo de todo o processo, às vezes elas te surgem em lugares os mais inesperados, e você acaba aprendendo a acolhê-las.

Helena, você poderia nos contar como foi a concepção das imagens para a primeira história da coleção, o livro A risada do saci?

Helena: A própria história da cidade de São Paulo que põe, às vezes lado a lado, o muito velho e o mais contemporâneo, mostrando suas camadas, essa breve convivência de tempos, de formas, de imagens... isso provocou nossa imaginação. Além desse aspecto instigante da paisagem da cidade, procurei trazer para o livro algo das visões de artistas brasileiros, como Tarsila do Amaral e Almeida Júnior, cores, formas, luminosidade... Por exemplo, para aquela cena em que a bruxa, a ‘veia-de-má-qualidade’, rouba a carapuça do saci e o obriga a fazer todo o serviço da casa enquanto ela vai dormir, me inspirei no nome e no tapete da pintura ‘O descanso do modelo’, obra de 1885, do Almeida Júnior.

Regina: A gente saiu na rua fotografando, conversando, olhando para as passagens secretas que a cidade tem para as histórias escondidas, que, pode acreditar, a cidade está cheia e só esperando que a gente as pegue pela ponta, e vá puxando... pela carapuça. Foi a Helena que descobriu uma casa numa grande avenida de São Paulo, uma casa muito velha, mal se mantendo em pé, e que tinha até uma árvore crescendo em seu telhado! E foi esta casa, com aquele quintal enorme e cheio de plantas e mato, que detonou a criação desta história. Logo depois, saiu uma reportagem na Folha de São Paulo comentando que aquela era a última casa da rua, e que seus dois moradores, um casal de irmãos bem velhinhos, não quiseram vendê-la de jeito nenhum e ficaram morando ali, um tanto isolados, um tanto vivendo num outro tempo. Quando acontece uma coisa desse tipo, a gente tem certeza que encontrou algo meio numinoso mesmo.

Helena: Já para fazer a Comadre Florzinha contra a mula-sem-cabeça, minha pesquisa de imagens buscou trazer vivências de minha própria infância. As férias passadas no interior de São Paulo, a vegetação, as flores, as frutas, as cores, a luz... A menina Lili é um “autorretrato”. Passei a infância de “sainha” xadrez e chinelinho de dedo, correndo, xeretando, catando flores e colecionando pedras.

Por falar em infância, as crianças também adoram sentir um “friozinho na barriga”, sensação essa que é cultivada na fala do ogro em A Cuca vem pegar: “ Eu estou sentindo um cheirinho de criança crua nessa escada...Julinho encolheu-se atrás de um vaso, morto de medo. O ogro subia as escadas fungando...” ou momentos de riso hilário como na visão da Cabra-Cabriola dando um telefonema de um orelhão na esquina, em O papo da cabra-cabriola. Parece que essa coleção se dedica a esse prazer/medo que elas tanto cultivam em suas leituras. Como é mesclar humor com suspense em um texto mais longo?

Regina: Acho que o humor e o suspense/terror formam um bom par na construção dramática porque eles são contrapontos, exercem algum tipo de conflito, têm uma dinâmica de oposição. Parece que um precisa do outro, porque essas coisas, na vida, os elementos mais assustadores ou até trágicos, e os cômicos, estão sempre se alternando. E a ficção, nesse tipo de livro, trabalha nesse campo de contraste de forças. Tanto é que já vi pessoas usando uma categoria híbrida para se referir às histórias da Contos de Espantar Meninos: contos de ‘terrir’. Adorei! Agora, quanto a essa questão do tamanho de um texto, embora as narrativas desta coleção sejam, de fato, maiores do que trabalhos anteriores, procurei mantê-las curtas o suficiente, tentando respeitar as melhores características de um conto, como densidade, intensidade e precisão. Já num trabalho bem mais longo como Gigantes também nascem pequenos (edições SM, 2006), por exemplo, essa questão do tamanho se impôs de outro modo e minha preocupação principal, neste caso, foi buscar não diluir a trama e, ao mesmo, tempo conseguir aprofundar os personagens, sem perder o suspense do livro.

Essa coleção absorve uma ampla temática da cultura brasileira, envolvendo aspectos da culinária, as personagens do folclore em tramas inusitadas, o choque cultural entre o imaginário do campo e cidade, referências históricas, homenagens a grandes artistas etc. Seria tudo isso um tributo à cultura brasileira voltada à infância?

Regina: É, sim, um tributo à literatura infantil brasileira e à cultura brasileira como um todo, da qual a literatura infantil é parte das mais importantes. Desde o princípio, queríamos que a coleção Contos de Espantar Meninos fosse ambientada em cenários brasileiros e que refletisse ao máximo possível a cultura brasileira. Houve um grande trabalho de pesquisa pessoal, meu e da Helena, e depois as pesquisas adicionais, bibliográfica, de minha parte, e iconográfica, pela Helena. Então, escritores, poetas, pintores e músicos como Monteiro Lobato, Oswald de Andrade, Mário de Andrade, Chiquinha Gonzaga, Câmara Cascudo, Guimarães Rosa, Raul Bopp, Manuel Bandeira, Cícero Dias, Tarsila do Amaral, Almeida Júnior, Villa-Lobos... Tom Jobim... nos inspiraram o tempo todo. Como não homenagear a obra deles? Além disso, a gente conversou muito com pessoas diversas sobre esses mitos do folclore brasileiro, incluindo pessoas da própria família, e todas elas nos trouxeram uma grande contribuição. Aí você percebe o quanto esses mitos estão vivos!

Helena: Quisemos recuperar algo da magia de alguns momentos de nossa própria infância. É também um tributo às histórias contadas pelos nossos pais, avós, àquela fantasia e alegria. Nos dedicamos muito a esse projeto, com um investimento estético muito intenso mesmo, uma mistura de pesquisa, poesia e paixão.

Até agora falamos de aspectos da criação e produção do texto verbal e da poética visual e da riqueza que podem coexistir nessas relações. E todo esse esforço criativo se dirige a um leitor, certo? Como é a recepção do público ao trabalho de vocês?

Regina: A gente acaba conhecendo algumas coisas quando algum mediador de leitura conta como as crianças reagiram a um determinado livro ou quando visitamos uma escola e elas próprias nos contam, mas tem uma história que tanto eu como a Helena gostamos muito. Um diretor de arte nos contou que ele levou A risada do saci para a filha, e que a menina lia o livro toda noite antes de dormir. A certa hora, é claro, os pais apagavam as luzes do quarto. Mas ela era uma menina que tinha uma lanterna ao lado da cama e, segundo o pai, ela esperava um pouquinho e, clique, acendia a lanterna só para poder ler mais um pedacinho da história e olhar a ilustração mais uma vez. Ficamos muito emocionadas ao saber dessa história, e muito gratas também, porque esta cena preenche algumas de nossas fantasias e expectativas quanto ao que desejamos obter com o trabalho, no que diz respeito a essa recepção da criança. A gente sempre tomou isso como uma linda repercussão.

Para terminar a nossa entrevista, eu vou pedir para cada uma de vocês escolher uma obra que se relacione de algum modo com o trabalho de vocês.

Helena: Pode ser as Reinações de Narizinho, do Lobato? Aquele que tem o Reino das Águas Claras e a Emília engole a pílula falante?

Regina: Um filme dos primeiros tempos do cinema: Viagem à lua, do Georges Méliès. Revi outro dia no YouTube. Dez minutos e pouquinho de birutice e poesia.

Pois é, quando a Arte caminha pelo horizonte do provável, é claro que a criação só pode ser uma bela extensão dessa experiência vivida. Desejo a vocês que as musas continuem a acompanhá-las nesse horizonte cultivado com tanto afinco e cuidado.