RESENHA
Sobre o olhar de Martin Scorsese para Hugo Cabret.
Ana Lúcia de Oliveira Brandão (USP)
A INVENÇÃO de Hugo Cabret (The Invention of Hugo Cabret), direção de Martin Scorsese, 2011.

A invenção de Hugo Cabret, filme com direção de Martin Scorsese, a partir da obra homônima escrita por Brian Selznick e com roteiro escrito por John Logan. Atores principais: Asa Butterfield (Hugo), Chloe Moritzs (Isabele), Jude Law (pai de Hugo), Sacha Baron Cohen (o inspetor da estação), Bem Kingsly ( Georges Mèliés); em 3D. Se o livro começa com vinte e três desenhos do autor, para mostrar ao leitor como era uma estação de trem dos anos 30 em Paris, o filme o faz com um voo rasante do alto da estação, passa pela via principal em que os passageiros esperam o trem, mergulhando o espectador no universo diário de Hugo Cabret.

Hugo assiste à vida do alto da torre do relógio da estação. Nesse dia, ele está parado no quatro olhando a dona do café sendo paquerada pelo homem gordinho, mas que não consegue chegar perto dela porque seu cachorro o morde. O inspetor caminha com sua perna esquerda em ferros e com seu dobermann. O cachorro o ajuda a inspecionar melhor e a retirar da estação, sempre que se faz necessário, os maus elementos, principalmente meninos órfãos que ele envia para orfanatos, sendo que ele mesmo é um órfão. Hugo então volta seu olhar para a loja de brinquedos de corda. Um close nos olhos do dono da loja de brinquedos reflete o relógio da estação e, por trás do número “4”, vemos o corpo e rosto de Hugo. O dono se faz adormecido e deixa um ratinho de corda sobre a mesa. Ele sabe que Hugo é um ladrãozinho que vira e mexe retira peças de corda de sua loja. Pois, mais uma vez, ele fisga Hugo. Ele rapidamente desce as escadas que levam à torre do relógio, passa pela passagem da ventilação e vai até a loja. Assim que toca no ratinho, o homem segura sua mão, ameaça chamar o inspetor e o faz esvaziar os bolsos de seu casaco.

O que tem nos bolsos de Hugo? Porcas, roldanas e outras tralhas saem de um dos bolsos. Do outro, o caderno de anotações de seu pai quando estudava o autômato, visando consertá-lo. Um autômato dos mais sofisticados que aparecera no museu em que trabalhava. O pai dividia seu dia entre sua oficina de consertar relógios e o museu. Sua especialidade é consertar mecanismos de corda. E Hugo observa o pai a todo momento. Assim que o dono da loja olha o caderno com indicações de conserto e um flip card com o rosto do autômato, ele imediatamente se sente infeliz e afirma para si mesmo: -Fantasmas. Toma o caderno do garoto e ameaça queimá-lo. Hugo chora de desespero. Esse caderno, um relógio de bolso e o autômato são tudo o que ficou da herança e lembrança material de seu pai.

Trailer do filme A Invenção de Hugo Cabret

Bom, aí por meio de um flash-back, conhecemos o dia em que o pai de Hugo morre em um incêndio havido no museu e o dia em que o tio Claude Cabret, um alcoólatra que vive em um apartamento na estação de trem, perto da torre do relógio, o leva para morar com ele. O livro esmiúça bem mais essa relação entre Claude e Hugo. Já o filme opta por se concentrar na trama que envolve a amizade que surge entre Hugo e a menina Isabele e a cruel relação que o dono da loja de brinquedos estabelece com ele. Ao encontrar novamente o dono da loja de brinquedos, Hugo recebe o livro queimado e chora de tristeza. O homem lhe propõe que ele conserte objetos como forma de pagar seus pequenos furtos, ao que ele atende incontinenti. Hugo chora e depara-se com Isabele, assim que sai da loja, Isabele é sobrinha adotada do homem, que lhe conta que o caderno está em casa, não havia sido queimado e que aquele tinha sido mais um dos truques do tio. E complementa dizendo que o tio ficara muito atormentado com aquele caderno. Isabele que vive com os tios idosos volta sua atenção para o universo dos livros – de Peter Pan até David Copperfield, livros da loja de livros raros do Sr. Labeche. Ela é muito ilustrada, cita poemas e tudo, mas a vida, a aventura a chama e seduz. E Hugo traz para ela essa oportunidade de desvendar um mistério e ela encontra aí seu propósito de vida. Hugo leva Isabele para assistir seu primeiro filme na vida. (Curiosamente o roteirista tirou da história, o lanterninha do cinema que é amigo de Hugo no livro). Enfim, Isabele agradece tamanha audácia e aventura proporcionada por Hugo. Eles assistem ao filme, mas são postos para fora bem na metade. Correm feito loucos pela rua e essa experiência vivenciada juntos os une.

Pouco a pouco, os dois órfãos tornam-se mais chegados, apesar de Hugo continuar com sua missão de ser “invisível aos outros na estação” e manter os relógios funcionando. O filme mostra ao espectador os labirintos da estação, tão conhecidos pelo menino Hugo. E mais, o universo da estação com o inspetor, a florista, o café, o restaurante, onde tocam um grupo de músicos ao vivo e o público dança ao som da música, os compradores de livros do Sr. Labiche, os passageiros que vão e vem pela estação viajando e chegando. Todos esses elementos criam uma atmosfera que lembra muito os filmes mudos, esses mesmos filmes assistidos por Hugo e seu pai, quando vivo. Hugo acompanha a vida dos outros como um espectador acompanha os filmes mudos.

A convivência com Isabele o leva a perceber que ele teve uma herança deixada pelo pai: consertar relógios e mecanismos de corda de brinquedos, caixas de música, etc. Hugo mostra à Isabele o autômato. E rapidamente os dois conseguem fazer o autômato desenhar a cena do filme “Uma viagem à Lua”, de 1902 de Georges Mèliét. (No livro, muitos acontecimentos ocorrem antes). Enfim, de posse do desenho, os dois procuram a Biblioteca Nacional do Cinema, segundo andar, a prateleira do alto, onde se encontram os livros com a História do Cinema. Mais uma vez, é o Sr. Labiche, o homem dos livros raros, “que acha que todo livro precisa ir para um bom lar”, como conta Isabele a Hugo, que lhes passa tão preciosa informação. Lá eles encontram e desvendam a vida profissional de Gèorges Mèliés e dão de cara com o estudioso que escreveu o livro, o professor René Talbert. Discutem com Talbert que afirma ter Mèliés falecido durante a Primeira Guerra Mundial. Afirmam os dois meninos que ele está vivo. Portanto, em um piscar de olhos, o livro torna-se vivo e o professor os leva para sua sala na biblioteca, onde mantém um pequeno acervo com os figurinos dos filmes, cartazes e um único filme, uma cópia que sobrevivera de “Uma viagem à Lua”. Isabele e Hugo mal podem acreditar em tão portentoso mistério que estão prestes a desvendar. Os dois resolvem levar Talbert para passar o filme na casa dos Mèliès, à título de surpresa e envolvimento. Há um mal-estar com a chegada de Talbert, mas ele apela para a vaidade da sra Mèliés e de sua importância como atriz do cinema mudo e por fim, ela aceita assistir ao filme enquanto o marido descansa no quarto.

Ao final da exibição, todos descobrem que Géorges também assistira ao filme e se emocionara. O filme os relembrou dos bons tempos vividos e não somente das agruras. O mistério finalmente se desfaz e os destinos de Hugo e a família Mèliés se reúnem, um novo lar espera Hugo Cabret para acolhê-lo. O erro histórico da falta de memória e respeito ao criador do Cinema Mudo se desfaz e o filme torna-se uma homenagem mágica do diretor Martin Scorsese ao cinema mudo e também ao universo dos livros e das bibliotecas como detentores da memória dessas histórias que dão sentido à Humanidade. O filme trabalha com o ponto de vista do plongé (do alto para o baixo), do olhar da câmara (travelling) do ponto de vista de um menino de doze anos, Hugo sobre a estação de trem. Se Mèliès dissera ao menino Talbort, quando esse visitou o set de filmagem, que o cinema é a arte de fazer as pessoas sonharem acordadas, vai ser Talbort que trará de volta o sentido de vida (“propósito de vida”, no dizer de Hugo) para esse artista magoado pelo esquecimento de seu trabalho, consequência das mazelas causadas pela Primeira Guerra Mundial, a ponto de terem derretido seus filmes para fazerem saltos de sapato em fábricas de calçados femininos. Com a atitude positiva do velho mágico e a insistência de Hugo, que aguenta firme toda a hostilidade demonstrada pelo homem, fazendo-o lidar com essa mágoa tão profunda de forma intuitiva e por vezes ingênua, ambos reencontram a alegria de viver, o que abre a oportunidade única de Mèliés retomar seu papel na História do Cinema.

Os travelings, a imagem que dá início ao filme em que se compara o funcionamento de uma cidade como Paris com a complexidade de um mecanismo dos relógios de corda, momento em que Hugo observa para Isabele que “ cada peça tem seu lugar e sua função”, as fusões entre a chegada dos trens e os trens que passam na tela 3D “criando um efeito de realidade” a ponto de fazer as pessoas afastarem seus corpos nas suas poltronas, tão crível é o efeito da saída do trem na tela, faz-nos depreender que o sistema 3D foi perfeito para homenagear o efeito que o cinema provocou nos espectadores lá nos primórdios do cinema. As corridas de Hugo e por vezes, de Isabele se desvencilhando do inspetor da estação nos remetem a todo momento aos primeiros filmes do cinema mudo, que se baseavam em perseguições sem fim. O conserto do autômato realizado por Hugo, com a ajuda da chave em forma de coração de Isabele, nos remete a confiança que o universo da técnica trazia ao ser humano, onde roldanas punham e põem em funcionamento os desenhos de Mèliès, marcam o tempo, e o tempo marca a vida das pessoas, como acontece aqui nesse filme. E mais, o caráter onírico presente nos filmes também está presente nessa obra-prima. Basta lembrar que no auge da solidão de Hugo e de sua angústia, ele tem um pesadelo no qual ele olha uma chave, desce entre os trilhos para pegá-la, momento em que lê “Cabret e filho” e o trem se desgoverna para evitar atropelá-lo, atravessa a estação de ponta a ponta e sai do outro lado descarrilhando-se no alto da estação até o baixo da rua. No dia em que ele resolve pegar o autômato para mostrar à Mèliés, o inspetor corre atrás dele, o autômato voa e cai no meio dos trilhos e o homem o segura e retira dos trilhos, enquanto Hugo segura o autômato e o trem se aproxima. Esse é o ápice de uma bela fusão entre o universo onírico e a realidade, com pitadas de premonição.

Outra cena impressionante ocorre quando Hugo e Isabele assistem à um filme mudo. Nele, um homem se esconde fora de um prédio e se agarra aos ponteiros de um relógio de fora. Dali a pouco, Hugo e Isabele são postos para fora do cinema. Na cena em que o inspetor percebe que os relógios da estação continuam a funcionar, que Claude morrera e que portanto, Hugo mora sozinho na estação, ele o persegue torre acima. E Hugo só se salva dessa terrível situação porque há uma porta de vidro que dá para fora no relógio da estação. Ele passa pela porta e se pendura no ponteiro com a finalidade de esconder-se do inspetor, atitude que dá certo no caso dele. Então, não resta dúvida que ficção e realidade se encontram em vários momentos do filme e na realidade o final feliz também é fruto dessa ficção vivenciada por Hugo e o pai (os relógios, o autômato, os livros os filmes), esse lastro cultural que os uniu e que ressurge na forma de abrir o horizonte de vida de Hugo para uma nova vida afetiva e familiar a ser compartilhada com os Mèliés.

Resta-nos refletir sobre o mundo de hoje e do quanto a sociedade tem desvalorizado a formação humanística das pessoas em prol da formação tecnicista e tecnológica e do quanto a “perda da razão de viver” vem junto com essa pobre e insidiosa postura diante da vida. O próprio filme personifica essa questão na figura do inspetor, um homem sem expressão própria, sem qualquer repertório simbólico.. Ele só sabe dar três tipos de sorriso e não conhece um poema sequer, nem mesmo o de Christina Rosseti, que Isabele declama para ele. Sua conversa com a florista que ele deseja conquistar é patética por isso. E essa pobreza de espírito se choca frente à riqueza do universo de Mèliés e sua família. Vale apontar ainda, a riqueza dessa relação de amor e cumplicidade na vivência cultural desse casal, que o filme revela como muito especial e cheia de respeito e admiração mútuas.

Um filme imperdível em 3D, recurso muito bem utilizado nesse filme, que nos dá a sensação de realidade. Sentimo-nos presentes na plateia dos filmes mudos com suas sereias, mágicos, magos e deuses, que refletem um momento ingênuo da História da Humanidade e que por isso mesmo faz desse filme uma experiência que, como os trens, atravessa mais de um século de História do cinema, realizada com inteligência e sensibilidade. E claro sentimos Hugo bafejando em nossos pescoços e participamos com ele de suas correrias e necessidade de sobrevivência. Uma experiência deliciosa.