O olhar polêmico do narrador no filme Rio
José Nicolau Gregorin Filho1
Resumo
O texto propõe um debate sobre a configuração e o percurso do herói na animação Rio, escrito por Carlos Saldanha e Earl R. Jones, dirigido pelo primeiro. Pretende-se começar a discutir a supremacia dos EUA e desvendar algumas das diversas possibilidades de entender esse herói-narrador. Observa-se que a voz do narrador fala de um centro hegemônico produtor de entretenimento direcionado a dois destinatários: o próprio espaço em que se produz o entretenimento, bem como outros espaços periféricos e também consumidores (muitas vezes, alheiros a um olhar mais crítico) dessa forma de dominação em massa que é o cinema produzido pelos Estados Unidos da América do Norte.
Abstract
This paper proposes a discussion on the journey of the hero in the animation Rio, written by Carlos Saldanha and Earl R. Jones, directed by the first. It is intended to begin discussing the supremacy of the U.S. and unravel some of the various possibilities to understand this hero-narrator. It is observed that the voice of the narrator speaks of a hegemonic center producer of entertainment directed to two recipients: the very space that produces entertainment, as well as other peripheral spaces as well as consumers that mass form of domination which is the film produced by the United States of America.
PALAVRAS-CHAVE: Rio, herói, narrador
KEYWORDS: Rio, hero, narrator
Trailer do filme Rio

A fim de que se inicie um debate sobre a configuração e o percurso do herói na animação Rio, de Carlos Saldanha e Earl R. Jones, dirigida pelo primeiro, é importante que se delimite o ponto de vista da construção da narrativa e o que se entende por herói.

Com referência à própria delimitação do termo herói que aqui será utilizado:

A postulação teórica do conceito de herói relaciona-se directamente com uma concepção antropocêntrica da narrativa: trata-se de considerar que a narrativa existe e desenvolve-se em função de uma figura central, protagonista qualificado que por essa condição se destaca das restantes figuras que povoam a história. Esta e outras categorias que a estruturam são, pois, organizadas em função do herói, cuja intervenção na acção, posicionamento no espaço e conexões com o tempo contribuem para revelar a sua centralidade indiscutível (REIS; LOPES, 2007, p.193).

Entendido dessa maneira e configurado nessa postura de superioridade perante as outras personagens da narrativa, é que se pretende começar a discutir o significado dessa suposta supremacia e desvendar as diversas possibilidades de entender esse herói-narrador.

Observa-se que a voz do narrador fala ao seu interlocutor de um centro hegemônico produtor de entretenimento direcionado a dois destinatários: o próprio espaço em que se produz o entretenimento, bem como outros espaços periféricos e também consumidores (muitas vezes alheiros a um olhar mais crítico) dessa forma de dominação em massa que é o cinema produzido pelos Estados Unidos da América do Norte.

A fim de que se verifique o percurso desse herói, é importante a observação de dois espaços percorridos por Blue, herói dessa narrativa. Tome-se como importante ponto de conflito os dois espaços em que a narrativa se desenrola, resumidos no quadro.

O jogo de oposições descrito no quadro já se percebe na abertura do filme, cujas cenas exibem um estereótipo do Brasil: o cenário do Rio de Janeiro visto do morro.

Nessa cena, o espaço urbano se apaga perante a exuberância da natureza. Esse fato se comprova mais adiante na narrativa, na cena em que personagem principal retorna ao país e seus condutores utilizam-se de um jeep para enfrentar a selva/cidade.

Importante ainda é perceber que esse cenário de abertura do filme não retrata a cidade do Rio de Janeiro propriamente dita, mas a selva, o interior do Brasil. Então, o filme não fala apenas da cidade do Rio de Janeiro, mas do Brasil e, em última análise, da Amazônia e de todas as reservas naturais do país. Desse modo, a cidade do Rio de Janeiro é focalizada do ponto de vista do interior brasileiro, de cima da Serra, de dentro da selva e com os olhos do estrangeiro imperialista.

Nessa exuberância em que o herói nasce, há um fator importante para ser analisado: o determinismo. Na caracterização da liberdade, figurativizada pelo samba, até no momento do nascimento (sair do ovo) se faz dançando e cantando o samba, sem trabalho e sem que se mostrem individualidades, subjetividades, pois todos são iguais e vivem para o divertimento, com características inatas para o lazer em meio a uma natureza que se mostra convidativa e fabulosa, perfeita para o ócio.

Tomam-se os atores desse espaço tropical como frutos de uma natureza exótica e esses se mostram tão exuberantes quanto ela ou mesmo como parte integrante de um espaço mitológico, sem diferenciação com a rica vegetação que se descortina. Assim, seria a repetição da “visão do paraíso”, relatada pelos colonizadores na época de sua chegada ao território brasileiro.

Quando o espaço é o território dos Estados Unidos da América do Norte, mudança essa ocasionada pela própria imposição de deslocamento do herói (roubo), há uma placa indicando a fronteira do estado de Minessota, placa essa em que se nota com a figura de um alce. Mas é no veículo que conduz um animal da fauna brasileira que está escrito “animais exóticos”. Então, o exotismo é visto apenas de um ponto de vista, ponto esse do narrador preconceituoso e avesso às diferenças.

O herói passa, então, por um processo de aculturação, “civilizado” pela sua doadora de competência, sua proprietária estadunidense. Fato esse que se percebe por meio de cenas como: escovar os dentes, usar torradeira, andar de skate e saber pilotar um carro de polícia Sua adequação ao espaço primeiramente estrangeiro se comprova quando ele diz, textualmente:

“- Isso que é vida!”, saboreando cookies e bebidas típicas da cultura fast food estadunidense, ainda protegido num espaço fechado.

Há, então, uma delimitação do novo espaço para o herói após seu deslocamento do Brasil para os Estados Unidos: a interioridade de uma sociedade institucionalizada em um universo estritamente marcado pela cultura. Nesse ponto da narrativa, aves negras jogam futebol na rua e têm uma maneira de se comunicar típica de uma parcela da sociedade excluída daquele país.

É o primeiro momento em que o mundo exterior passa a significar ameaça ao herói, instante em que surge uma personagem atrapalhada, usando um cachecol verde e amarelo. Tão inadequado àquela cultura como o herói Blue no início de seu processo de aculturação. Neste ponto da narrativa, Blue não reconhece sua nacionalidade, pois rejeita a personagem que diz da necessidade de levá-lo para o Rio e, para cumprir outra ação de herói, salvar a sua espécie.

Depois de um conflito, sua dona resolve levá-lo, deixando implícita a imagem ideológica norte-americana de promover a democracia, liberdade e preservação da vida em culturas menos favorecidas.

Trazidos para o Brasil, todos se assustam quando são imersos no carnaval do Rio de Janeiro. É o herói, já híbrido, voltando e não se reconhecendo mais como pertencente àquele grupo social, já que aparecem dois outros pássaros, mostrando a malandragem: tampa de lata de cerveja na cabeça.

Na reserva, Blue conhece aquela que será o seu objeto-valor, uma arara fêmea, essa também bastante estereotipada como figura de apelo sexual, esperta, matreira e com personalidade dominadora, com o objetivo de afastá-lo da sua cultura absolutamente ingênua. Quando é roubado na própria reserva por outro antagonista, a cena mostra que o vigia, com aparência viril, era na realidade um “gay”. Outro estereótipo, mais um preconceito veiculado num filme destinado às crianças. Mas quem executa o roubo é um menino típico do Brasil, um afro-descendente.

A personagem diz que era mais seguro no seu outro lar, pois ele não tem competência para viver no submundo, não consegue interagir com a marginalidade dos atores do novo espaço, com uma ética diversa daquela aprendida.

Nova fuga e retorno ao habitat natural, mas o herói não o reconhece. É recepcionado por mais preconceitos, agora preconceito contra mulher e contra a família brasileira, pois a personagem “tucana” mostra-se muito sensual, maquilada. Há ainda mais estereótipos: uma quadrilha de saguis. Mais um deslocamento do herói, mais preconceitos. O menino que o havia roubado aponta a existência de diversos códigos de ética no Brasil, pois mostra as leis de trânsito “paralelas” que podem ser utilizadas (cena da moto rodando pela favela).

Em todo o desenrolar da narrativa, a personagem precisa conviver com o universo da marginalidade para se destacar. Fato que fica evidente na boate, onde se fala sobre higiene, enquanto a letra da música é: “Eu quero festa, eu quero samba!” Blue é uma arara que não sabe voar, não tem competência para esse deslocamento e diz que seu lugar não é o Brasil, que odeia samba, bem como rejeita outras manifestações culturais.

No final, na luta decisiva com seus antagonistas, Blue ganha pela sua inteligência, habilidades de engenharia e, acima de tudo, bondade e ingenuidade, essas características bem marcadas nos heróis “americanos”. Ele aprende a voar para salvar o amor de sua vida.

Assim, pode-se citar novamente o dicionário de narratologia, já mencionado anteriormente, pois:

Entre as personagens, como no desenrolar dessas funções, reafirma tacitamente a condição de supremacia do herói (sintomaticamente designado como tal por Propp), nos planos ético e psicológico; a atribuição ao herói da derradeira função (casamento) é indissociável de uma perspectiva triunfalista (ligada aos sentidos da posse, autoafirmação, etc.) do acidentado percurso que o conduz ao desenlace (REIS; LOPES, 2007, p. 133).

Esse desenlace, ou a sansão positiva que se dá ao herói-narrador tem como cena a subida pelo voo das duas personagens, a salvação que ele faz de um animal tipicamente brasileiro. Veio aqui para isso e, volta-se à dualidade primeira de espaços quando se percebe a música da última cena: “Rio é prazer, beleza e samba/ O sonho está vivo no Rio”.

Esse é o final da aventura de um herói que, iniciando o percurso narrativo por um motivo alheio à sua vontade, sofre um processo de aculturação que o faz sentir superior aos seus iguais, pela supremacia da sociedade na qual é imerso. Volta para cumprir o seu papel, um papel espelhado pelas duas personagens humanas que travam a mesma batalha cultural num segundo plano da narrativa.

Assim, segundo Campbell (2007):

Um herói vindo do mundo cotidiano se aventura numa região de prodígios sobrenaturais; ali encontra fabulosas forças e obtém uma vitória decisiva; o herói retorna de sua misteriosa aventura com o poder de trazer benefícios aos seus semelhantes (CAMPBELL, 2007, p. 36).

Momento de retomar a questão do narrador, pois, em muito o narrador e o herói se confundem nessa narrativa de animação. Sendo o filme concebido por um brasileiro, por que tamanho senso comum na identificação do território nacional e de seu povo? Diz-se senso comum porque as imagens que são construídas no filme são paráfrases de outras imagens já produzidas em território estadunidense e que foram capazes de mostrar ao mundo imagens tão estereotipadas como as de Carmem Miranda e Zé Carioca.

Esse herói saído de uma terra civilizada e disposto a se aventurar numa selva prodigiosa com o propósito de salvar seus semelhantes seria a narrativa da trajetória do próprio narrador? Pois, se trata de um imigrante brasileiro disposto a vencer desafios pessoais e profissionais na terra de prodígios: a os Estados Unidos da América com sua gigante indústria cinematográfica e seu poderio tecnológico? O salvamento dos semelhantes seria a inserção de uma personagem estereotipada do brasileiro que sai do país e volta para salvar o seu povo da corrupção? As respostas a essas questões, ainda que colocadas de maneira breve, são de fundamental importância para o início de um debate mais amplo na área de literatura para crianças e jovens, pois apontam algumas marcas da dominação ideológica veiculada em textos com o inocente rótulo de entretenimento.

Referências

CAMPBELL, Josef. O herói de mil faces. São Paulo: Cultrix/Pensamento, 2007.

PROPP, Vladimir I. Morfologia do conto maravilhoso. Rio de Janeiro: Ed. Forense Universitária, 1984.

GREGORIN FILHO, José Nicolau. Figurativização e imaginário cultural. Tese de Doutoramento. UNESP; Araraquara, 2002.

REIS, Carlos; LOPES, Ana Cristina M. Dicionário de Narratologia. Coimbra: Almedina, 2007

RIO. Direção: Carlos Saldanha. Produção: Bruce Anderson John C. Donkin. Roteiro: Don Rhymer, Joshua Sternin, Jeffrey Ventimilia, Sam Harper, Carlos Saldanha, Earl Richey Jones, Todd Jones. Fotografia: Renato Falcão. EUA: Blue Sky Studios / Twentieth Century Fox Animation, 2011.