TECIDOS DO IMAGINÁRIO
Entrevista com os irmãos Grimm
Ricardo Ramos Filho1

Ser repórter da Literartes não é um trabalho fácil. Nem sempre a pauta facilita muito a vida do jornalista. Quando me incumbiram de entrevistar os irmãos Grimm, aproveitando o interesse despertado pelas comemorações do duplo centenário do lançamento dos Contos da Criança e do Lar (Kinder und Hausmärchen), com tiragem de 900 exemplares, fiquei um pouco perdido e sem saber o que fazer. Como iria falar com Jacob e Wilhelm Grimm?

Optei por uma solução mais científica. Afastei de cara o pó de pirlimpimpim, pois sou alérgico. Sempre tomo cuidado com substâncias estranhas, principalmente quando há necessidade de aspirá-las. A direção da redação propôs-me mágica, mas eu nunca fui de acreditar muito em bruxarias. Minha sorte foi ter lido Viagem à aurora do mundo, do Érico Veríssimo, e ter ficado muito amigo do Prof. Fabricius. Por meio de contato telefônico, acertei alguns detalhes e rapidamente aterrizei na Vila do Destino, em pleno laboratório. Estavam todos lá quando cheguei: Calamar, Jó, Aristobulus, Colibri, Magnólia e até mesmo o Dagoberto. Receberam-me com a simpatia de sempre. Tomamos as providências necessárias e, ao som de Clair de Lune, de Debussy, entrei na máquina do tempo. Em um piscar de olhos estava em uma sala em Hanau, no estado de Hessen. Como havia tomado o cuidado de fantasiar-me, conforme ditava a moda da época, e preferi levar meu caderninho de notas, e não o gravador, deixei de provocar susto aos irmãos quando eles entraram na sala. Estranharam um pouco o meu alemão, com palavras novas e ainda não usadas, mas conseguimos nos comunicar bem. Após as apresentações de praxe, quando, procurando ser agradável, informei ao Jacob que éramos quase gêmeos, já que também nasci em 4 de janeiro, passamos à entrevista que aqui reproduzo. Não sem antes Wilhelm comentar que era um ano e um mês mais novo do que o irmão, já que Jacob nascera em 1785 e ele em 24 de fevereiro de 1786.

Os senhores são pesquisadores, participam do círculo intelectual de Heidelberg, são filólogos, folcloristas, estudiosos da mitologia germânica e da história do Direito alemão. Como fizeram para recolher todas as histórias que constam do livro que acabaram de publicar?

Jacob: Fomos diretamente à fonte. As lendas ou sagas germânicas ficaram conservadas na tradição oral... Wilhelm: A memória popular é uma coisa extraordinária, encontramos as antigas narrativas quando fomos conversar com as pessoas do campo...

Jacob: A fantasia, o fantástico, o mítico, estava tudo lá!

Não podemos deixar de tocar nesse assunto, mas consta em alguns tablóides mais sensacionalistas que a camponesa Katherina Wieckmann e sua memória prodigiosa ajudou muito vocês. Até que ponto isso é verdade?

Wilhelm: Não há o que esconder. Realmente, ela nos forneceu muitos relatos importantes, ela lembrava de muita coisa, sua colaboração foi fundamental para o nosso trabalho.

Jacob: Somos muito gratos a ela.

Desde o início, vocês tinham ideia do que iriam encontrar?

Jacob: Não. No começo, tínhamos dois objetivos básicos. Queríamos levantar os elementos linguísticos para fundamentação dos estudos filológicos da língua alemã...

Wilhelm: E tínhamos também a intenção de fixar os textos do folclore literário germânico, expressão autêntica do espírito da raça.

Jacob: Pois é, desde que lemos os manuscritos medievais do Nibelungenlied, a epopéia primitiva dos germânicos, que foram publicados em 1782 por C. H. Müller, ficamos interessados em valorizar esse passado recuado, essencial para a verdade da nossa raça.

Wilhelm: Há também uma intenção política, meio que de reação à invasão napoleônica...

Jacob: Nossa obra, pensamos, se insere dentro de um espírito nacionalista antifrancês e antiliberal que tenta anular a europeização da Alemanha.

Mas nos parece que os senhores ultrapassaram em muito essa intenção inicial. Há notícia do interesse em se traduzir a obra que escreveram no mundo todo, provavelmente outros povos farão levantamentos semelhantes. Vocês têm noção da importância do trabalho que fizeram?

Jacob: Talvez sejamos mesmo modernos...

Wilhelm: Estamos perfeitamente integrados dentro das forças renovadoras de nossa época...

Jacob: Se por um lado cultivamos as tradições populares, por outro, temos também uma preocupação, que também é nova, com a criança.

Wilhelm: Por isso, suavizamos o rigor doutrinal e levamos em conta as exigências da mentalidade infantil.

Jacob: Se tudo isso é importante, então também somos.

Nas cerca de duas dezenas de narrativas que você fizeram, não há propriamente contos de fadas. Por quê?

Wilhelm: Preferimos trabalhar com contos de encantamento. Nossas histórias apresentam o elemento mágico e sobrenatural integrados naturalmente nas situações apresentadas.

Jacob: Trazemos também algumas fábulas e lendas ligadas ao princípio dos tempos ou da comunidade, e, nas quais, o mágico ou o fantástico aparecem como “milagre” ligado a alguma divindade.

Wilhelm: E temos também contos de enigma ou de mistério e contos jocosos.

A estrutura narrativa predominante parece ser simples...

Jacob: Sim. Há apenas um núcleo dramático do qual dependem todos os episódios que compõe a intriga.

Wilhelm: “O Ganso de Ouro”, por exemplo, tem como núcleo dramático a necessidade de fazer rir a princesa e assim ganhá-la como esposa, conforme promessa do rei.

Jacob: É em função desse núcleo que os demais episódios se justificam.

O grande poeta Ezra Pound define a boa literatura como sendo a novidade que permanece novidade...

Jacob: Quem?

Wilhelm: Nunca ouvi falar!

É um escritor americano que ainda irá fazer muito sucesso...

Jacob: A definição dele de literatura é muito boa.

Wilhelm: Também acho...

Dentro desse conceito, vocês têm consciência de que são autores de uma obra-prima da Literatura Infantil Mundial?

Jacob: Temos consciência de que construímos uma obra nova, sob este aspecto somos novidade.

Wilhelm: Quanto a permanecermos só o tempo dirá.

Um grito trespassou agudamente o meu sonho. A música cessou de repente. Tombei no vácuo. Foi uma queda dolorosa. Que tinha acontecido?

De pé junto ao órgão, Colibri apontava para a máquina que agora se achava envolvida em fumaça. Agarrei minhas anotações. Aristobulus estava em silêncio. O misterioso livro que tanto me intrigavaa se achava agora abandonado a seu lado. Aproximei-me. Ia desvendar um mistério. Tomei do volume, abrio-o com trêmulo cuidado e à luz do incêndio, li o título: Reinações de Narizinho, Monteiro Lobato.

Corri para a redação da Literartes, a matéria estava atrasada.

Referências

COELHO, Nelly Novaes. Panorama histórico da literatura infantil/juvenil. São Paulo: Ed. Amarilys, 2010.

POUND, Ezra. ABC da literatura. São Paulo: Ed. Cultrix, 2006.

VERÍSSIMO, Erico. Viagem à aurora do mundo. Porto Alegre: Ed. Globo, 1960.