TECIDOS DO IMAGINÁRIO
LER-SE(R)
Márcio Adriano Moraes1

Antes, quando meus olhos só viam letras, aprendi geografia, história, matemática, química, física, biologia e a traçar boas linhas com nossa língua portuguesa. Depois, quando comecei a ver as imagens literárias, a realidade exata das disciplinas curriculares passou a ter sentido. E a vida, então, deixou de ser um tédio byroniano e passou a ser um jogo, o jogo do contente. E hoje, posso sonhar noites de verão e ver primaveras e outonos. Continuo, como profissional das ciências biológicas e humanas, a percorrer átrios e ventrículos; porém, sempre quando me mostram o desenho de um chapéu, digo, com convicção: é apenas uma jiboia que engoliu um elefante.

E, assim, deixando a semente que cada livro traz consigo penetrar no terreno fértil da minha imaginação, descobri que sou eternamente responsável por tudo aquilo que cativo e amo. E dessa forma, os ciúmes que sentia de minha senhora de olhos dissimulados se tornaram memórias póstumas. E quando visitei o país das maravilhas, percebi que por mais fundo que pareça o buraco em que caio constantemente, jamais viajarei ao centro da terra. E do solo sempre me reerguerei, pois sempre há mãos que nos levantam nesta primavera chamada vida.

Não posso, bem sei, dar uma volta ao mundo em oitenta dias. Mas afirmo, com toda certeza, que nesta pequena lira dos meus vinte anos, já vi lugares infernais e celestiais, e que este nosso planeta é mesmo uma divina comédia. E dele, sempre rio e sempre choro. Sobre esta esfera, quando menino de engenho, aprendi logo na inocência de minha orfandade que todos têm a sua hora e sua vez, todos têm a sua hora de estrela. E que não adiantaria eu atrasar o tempo cinco minutos só para satisfazer o meu instinto de mulato sexuado em um cortiço qualquer. Deveria, sim, olhar no espelho e ver o menino que lá está brincando com Alice. Mas o reflexo só me permite enxergar o monstro que sou, ainda que me orgulhe do status de médico; porém incapaz de salvar almas. Na minha casa verde, repleta de mistérios, pacientes de lunetas mágicas vêm em busca de cura. Na verdade, a única coisa de que precisam nestas suas vidas secas são de ondas de alegria, ondas de amor, ondas que preencham os sertões de seus corações.

Não sou um homem que calcula, estou mais para um grande mentecapto. Não posso dar aos meus pacientes um cérebro, nem coragem, nem coração. Queria mesmo poder enxergar por trás dos vidros um mundo maravilhoso e mágico como o de Oz, mas os paraísos os quais posso alcançar são todos artificiais.

Saudade da aurora da minha vida, dos tempos em que era caçador de pipas, que acreditava em ilhas de tesouros, em ilhas perdidas. Recordações do burrinho pedrês e do meu pé de laranja lima. Bom tempo, boitempo.

Hoje, após flutuar nas espumas das letras e de ouvir, verdadeiramente, o recado do morro, que nesta odisseia simboliza Deus, caminho retamente nos traçados tortos da minha imaginação. E não mais leio as letras das páginas que diariamente folheio, pois nada significam. Aprendi o segredo: “é preciso ver com o coração, o essencial é invisível aos olhos”. Não há mais a necessidade de escrever nenhum ensaio sobre a cegueira, pois mesmo na escuridão é possível ver e admirar a ilusão. Leio, agora, as vidas das páginas que diariamente folheio.

E depois de abraçar os relevos, as vegetações; depois de gritar “liberdade ainda que tardia”; após traçar ângulos retos nesta minha geometria torta; enquanto via íons, prótons neutros e elétrons; descobri na fisiologia de meu ser que a literatura é indispensável. E que não há como padecer de solidão se há um amigo repleto de páginas e letras.

Então, que fique aqui decretado para sempre: não quero ser mais um artista da fome humana, mas, sim, um artista da verossimilhança. Quero ser como os livros, um caminho para o saber, ser uma história sem fim, ser tão... veredas.