Tecnologias e Literatura para crianças
Profª. Dra. Maria Auxiliadora Baseio1
Profª. Dra. Maria Zilda da Cunha 2
Resumo
Considerando-se a invenção da fotografia um dado paradigmático na história da linguagem, colocam-se sob mira marcos da evolução e das interfaces criadas entre as linguagens e as novas mídias de informação e comunicação. A partir daí, abordam-se algumas relações que se estabelecem entre os meios produtores de linguagem e a literatura contemporânea para crianças e jovens, por meio de procedimentos analíticos que levam em conta suas analogias e afinidades.
Abstract
Given the invention of photography as a paradigmatic marker in the history of language, this work aims to analyze its evolution, taking into consideration the interfaces between the languages and the new technological media of information and communication. It addresses some of the relationships established between this media and the contemporary literature for children.
PALAVRAS-CHAVE: literatura infantil; linguagem; novas tecnologias
KEYWORDS: literature for children; language; new technologies
Introdução

Este artigo pretende abordar a Literatura Infantil e Juvenil em face de alguns dos desafios impostos pela contemporaneidade. Vale lembrar, em primeira instância, que se trata de uma área polêmica, com uma teoria palimpséstica, posto que exibe traços de várias linhas teóricas recentes e anteriores, bem como discursos de diversas áreas vizinhas; ao fundir tempos e imaginários, encerra memória de histórias e antigas formas de expressão e reflexão.

A literatura, com frequência, é relacionada a um meio produtor de linguagem venerável – a escritura – muitas vezes, visto como mais nobre diante de outros. A literatura infantil e juvenil, como gênero literário, no entanto, tem se tornado um lócus de orquestração de múltiplas linguagens, de sistemas narrativos e de formas de escritura. Assim, diante da heterogeneidade de seu material expressivo, torna-se capaz de matizar uma combinação rica de possibilidades semânticas e sintáticas e alta densidade de informações, o que, constantemente, escapa a olhares mais distraídos.

Enquanto a literatura infantil e juvenil mantém a especificidade de sua gênese na oralidade e na escritura, surpreende a cada momento, com o seu enovelar nas artes visuais, como a pintura, a fotografia, o cinema, entre outras, o que vai demandar - aos que se dedicam aos estudos da produção literária para crianças e jovens - uma mirada nas relações que historicamente se estabelecem entre esses meios produtores de linguagem.

Portanto, é no seio dessa complexidade que buscamos alguns princípios para a discussão que ora se faz.

Em primeiro lugar, importa esclarecer que a perspectiva que assumimos é fundamentada em princípios semióticos, derivados de uma teoria que busca relacionar e confrontar linguagens verbais e não-verbais. Isso nos parece fundamental, uma vez que, desde sempre, a força da linguagem literária residiu na sua realização entre o verbal e o não-verbal. Tal perspectiva reconhece, ainda, os diálogos que a literatura estabelece com outras artes, outros saberes e com as demais formas de representação. Por considerar a literatura fenômeno inalienável da cultura, da sociedade e da história, compreende sua estreita relação com o contexto em que se situa. Desse modo, entende que, mesmo apresentando leis próprias, essa arte cria vasos comunicantes com as linguagens por meio das quais esse contexto se fala, tais como a da revista, da fotografia, do jornal, do cinema, da TV, da Hipermídia.

Nessa ordem de ideias, produzir literatura seria correlacionar diferentes sistemas semióticos, o que, inevitavelmente, provoca uma dinâmica ininterrupta de modificações, na qual as artes tentam se rearticular na realidade mutável da linguagem. Esse processo vem ganhando força há muito e eclode, sem dúvida, na revolução eletrônica digital do final do último século. É inegável que as artes em geral, a literatura e a literatura infantil e juvenil engendram-se nesse movimento, promovendo e sofrendo transformações.

Vale ponderar, no entanto, que, se em todas as artes há fortes abalos, não é possível colocar sob suspeita o fato de que é nas gerações mais novas que a revolução é mais intensa, posto que são os novos que lidam e lideram os processos de transformações nas linguagens e nos recentes suportes tecnológicos nas quais elas se produzem. Isso tem fortes implicações no engendrar dos sistemas literários. As perguntas mais simples seriam: quem são, no mundo contemporâneo, os autores? Os leitores?As linguagens? Os suportes? As formas de diálogos que se processam? As formas e estruturas narrativas? Que mensagens circulam em múltiplos labirintos textuais?

O mundo contemporâneo e os meios de produção de linguagem

Vivemos em um mundo de sínteses óticas, realidades virtuais e muitas outras derivações e consequências de uma fantástica revolução tecnológica e de linguagens na qual nos engendramos. Muitas vezes, sequer nos apercebemos de sua dimensão e não nos damos conta da participação efetiva que exercemos na atualização dessa nova era.

Usufruímos de resultados empreendidos pelas interfaces criadas entre a Arte, a Ciência e a Tecnologia que, cada vez mais, providenciam mídias de informação e comunicação e multiplicam, em dimensões incalculáveis, a mistura de signos, códigos e linguagens, a ponto de fazer emergir uma nova ecologia cognitiva. Como seres viventes, não podemos nos descuidar das consequências dessas céleres transformações. E dentre elas, no universo da literatura infantil, não podemos desconsiderar, entre outras, as seguintes mudanças:

O livro não é apenas composto de linguagem verbal escrita, nem é a única fonte de cultura, informação e lazer. Emergência de um novo leitor — imersivo e interativo.

Criação de um patamar de leitura — à semelhança de um mapa de navegação, com links múltiplos. É, evidentemente, com a invenção da fotografia, que a hegemonia da cultura das letras recebeu o grande golpe. A perda de exclusividade do livro como meio de produção e transmissão da cultura, desde então, foi progressiva e irreversível. Se a imprensa mecânica trouxe a produção em massa de livros, trouxe, também, a explosão do jornal e revistas - meios híbridos entre a linguagem impressa, a linguagem diagramática e a fotográfica - cultura que cresce ainda mais com o desenvolvimento do cinema — poderosa extensão da fotografia.

Esses meios industriais-mecânicos de produção de linguagem e de comunicação foram precursores da grande revolução eletroeletrônica e seu grande poder de difusão: rádio e televisão e posterior multiplicação de dispositivos como: fotocopiadoras, videocassetes etc. É no final do último século que a hibridização permitida pela digitalização e pela linguagem hipermidiática, com seus processos de comunicação inteiramente novos e interativos, inaugura uma nova Era e uma nova linguagem — a hipermídia — que consiste de informação digital, dados eletromagnéticos transcodificados numericamente num espaço a n dimensões — suporte físico, de caráter eletrônico, que origina um espaço de representação ontologicamente infinito.

A hipermídia, do ponto de vista da linguagem e da comunicação, define-se como o acesso simultâneo a determinados textos, imagens e sons, com a utilização de telas eletrônicas. Providencia uma hibridização das linguagens, códigos e mídias e provoca uma mistura de sentidos receptores — uma vez que o leitor interage com ela, cooperando na sua realização. Ligando essa síntese de linguagens, a hipermídia pressupõe um desenho estrutural para a inserção interativa do leitor imersivo. Ao escolher um percurso, entre muitas possibilidades, o receptor estabelece sua co-participação na produção das mensagens.

Com base nesses dados, é possível compreender, como assevera Santaella (1998), que a invenção da fotografia é um dado paradigmático na história da linguagem. Torna-se possível, também, a partir daí, estabelecer três estágios (pré-foto; foto; pós-foto3) como marcos da evolução e das interfaces criadas entre as linguagens e as novas mídias de informação e comunicação, no bojo dos quais se engendram importantes aspectos relacionados aos modos de expressão humana. Entre outros, salientamos alguns desses aspectos, que nos parecem importantes às reflexões aqui presentes.

A foto, como sabemos, trouxe o registro do visível por captura e conexão, algo ainda impossível antes da invenção da fotografia, quando apenas se tinha a figuração do visível. Atualmente, na era da revolução digital – pós-foto – quase prescindindo do referente, a imagem pode ocorrer por meio de sínteses numéricas, são processos de virtualização criando objetos, temos a visualização do “modelizável”, a imagem é criação.

A relação com o mundo altera-se evidentemente: se, antes da foto, tínhamos a metáfora evocativa, sugerida pela aparência, a foto traz a emanação do corpo, do objeto em seu duplo – a metonímia. Atualmente, nesta era pós-foto, tem-se a simulação, a virtualização, o objeto é criação de sínteses numéricas.

Os meios de produção alteram-se historicamente, as expressões dos sentimentos, dos pensamentos, das reflexões humanas eram realizadas por meio de instrumentos que funcionavam como extensão do corpo, da mão; a foto, por sua vez, dispõe de próteses óticas. Esses dispositivos, hoje, concorrem com as derivações de números e píxeis, as imagens podem ser frutos de processos info-numéricos.

É inegável que os papeis do agente e do receptor também se alteram. O olhar do sujeito antes responsável pela captura, pela busca de informação a ser enviada ao cérebro, com a foto cede a função ao olho da câmara. Esta olha, colaborando com a função do sujeito que irá assumir um ponto de vista. As novas tecnologias digitais transformam o sujeito, este se tornou ubíquo, seu olhar é um olhar de todos e de ninguém.

Os processos de recepção, antes mais contemplativos, passam a requerer, por parte do leitor/ espectador/ recebedor maior observação, a busca de reconhecimento e de identificação com o objeto fotografado. Já com os processos de digitalização, impõe-se um espaço interativo, de imersão e navegação.

Os processos de transmissão das informações e mensagens também se transformam. Se antes eram mais artesanais, auráticos, únicos e irreprodutíveis, com a foto passam a ser duplicados, fotocopiados, reproduzidos em pequena ou grande escala, desencadeiam a comunicação em massa. Com os processos de digitalização, disponibiliza-se todo e qualquer sinal, informação, mensagem em redes interplanetárias.

Os aspectos aqui brevemente referidos, de fato, modificam nosso olhar sobre o mundo.

Se levarmos em consideração a vocação mimética do homem, teremos, grosso modo, algumas formas de captura e de representação e expressão humana do mundo:

A Pintura — arte mimética — como ponto de partida - que, na sua cumplicidade com a abstração, enreda-se na escrita.

A Fotografia — que traz a consciência do duplo, uma consciência maliciosa.

O Cinema — que traz para a tela a ilusão do movimento.

A TV — que se desenvolve no hibridismo, foco, movimento, simultaneidade; registro e manipulação, imagens referenciais e se estabelece na vocação realista.

A Holografia — como registro luminoso tridimensional de um objeto, conservando as características de profundidade, luz, tridimensionalidade volumétrica, objeto feito de luz, — transpira magia, surge com o advento de uma fonte de quase pura luz/ raio laser (coerência e interferência) — um objeto de luz — vocação mimética, mas também crítica à reprodução subverte a mimese — traz maior consciência de linguagem.

O Computador — com seus desafios aos usuários — instala-se como mídia semiótica.

A Internet — tendo a tela do computador como suporte — atravessa espaço e tempo, inaugurando a linguagem hegemônica do século XXI.

Os meios de produção de linguagem e o livro de literatura para crianças

Um número expressivo de obras contemporâneas de literatura infantil poderia ser alvo de nossa atenção, objeto de nossas análises, posto que, em seus modos construtivos, reverberam índices dos paradigmas por nós apontados: pré-foto (pintura) / foto (fotografia e cinema) / pós-foto (computador e hipermídia). Para os limites deste artigo nos ateremos em apenas algumas. São elas:

1. O menino mais bonito do mundo Melhoramentos/1982. Obra de Ziraldo, que traz um interessante diálogo com a pintura.

O livro estabelece vários níveis de intertextualidade, do não-verbal já na origem autoral; do verbal com o não-verbal, da obra com a narrativa bíblica e com a pintura.

Óleos de Sami Mattar e desenhos da menina Apoema, aliados à estilização de uma tela de Botticelli, realizam um interessante diálogo intersemiótico. Já a capa do livro convida o leitor a penetrar a obra pela "visão". O ver do menino movimenta a narrativa, uma narrativa sucessiva dada pelas estações do ano. Temos a figuração do mundo no olhar do menino, do homem e do pintor. As relações estabelecidas são de equivalência, olhar do menino (a cada página) equivale ao do homem, o que imprime um ritmo especial à narrativa, à medida que cria organizações paralelísticas e simultaneidade de visões, permitindo representar qualidades dos acontecimentos. Encontramos, ao mesmo tempo, a equivalência no olhar do artista, ou do pintor, aqueles que tentaram captar qualidades do acontecimento e representá-las por meio de signos: imagem, diagramas e metáforas. É o olhar do leitor que atualiza esses interpretantes.

No plano da estória, o narrador não concentra a voz, pois há uma polifonia: brisa da manhã, sol, árvores, flores, água do mar e a própria voz da personagem. À narrativa imprime-se um movimento de evolução, que se faz sentir no texto verbal e na imagem, como uma obra em criação, da qual emanam qualidades do acontecimento.

O ponto de vista altera-se. Quando criança, há traços primitivos, cores primárias, presença de muita luz, a ideologia não desenhada, estereótipos quase miméticos - um modo expressionista. Quando adulto, alteram-se o traçado, o colorido, a luz, a ideologia; aparecem sombras; os estereótipos criam outra situação discursiva com um locutor marcado pelo tempo e revelador dessa transformação, por meio do processo de percepção/cognição.

O homem, outrora menino, tem outro contexto, com nova sequência verbal, marcado pelo outono, que delimita outro ponto de vista. A ilustração é novamente o elemento diversificador com a invasão das sombras e a falta de luz.

Há um jogo expressionismo / impressionismo que pluraliza o texto, hiperboliza o verbal e promove a dialética entre modo e tempo. Engendra-se um texto polifônico e poético em que a imagem tece sentidos com o verbo.

Das páginas 17 a 25, a imagem é figurativa, intenta reproduzir o visível. Está presente a perspectiva central, regras de proporção. Traz formas visíveis do mundo exterior, cumprindo o preceito da configuração realista. Os recursos estéticos do tratamento das cores e das formas concorrem magistralmente para a apreensão e expressão da realidade. Na instância do figurativo, as imagens no livro deslocam-se para o nível da representação.

A obra pede o consórcio da visão, mas é a experiência do olhar e o articular de uma mente interpretadora que engendram as conexões intelectivas, fazendo surgir a metáfora - a metáfora da criação. A metáfora aparece como resultante do ato de recepção, de leitura, das relações que o leitor estabelece, da familiaridade com a linguagem analógica. Lê-la é como desvendar o subtexto que a metáfora vela e que vai sendo produzido à medida da leitura.

Nas páginas que fecham a obra, uma página em branco na qual o verbo dá nome ao homem/menino traz o endereçamento ao texto bíblico; na outra, a elegância de uma figura feminina que surge em sua nudez dialoga com a obra renascentista de Sandro Botticelli, O nascimento de Vênus.

Há a justaposição de códigos: mítico, pictórico e verbal, no diálogo entre linguagens, a representação aparece como ilustração e possibilita, por meio de um rastreamento interpretante, perceber a forma fecunda de renovação: do olhar primeiro, da força do verbo, do diálogo inacabado.

2. Retratos de Roseana K. Murray - Miguilim/1998. A obra estabelece um interessante diálogo com a fotografia.

A começar pelo formato horizontal, o livro mimetiza antigos álbuns de família. Logo na capa, há dois retângulos que simulam uma moldura de porta-retrato. Ao manusearmos o livro, tocamos páginas intercaladas com papéis de seda, rememorando os antigos álbuns de retrato. Se nestes, tais folhas cumpriam a função de evitar que as películas grudassem umas nas outras, naquele, o papel de seda faz parte de um ritual de passagem para que, como leitores, possamos re-visitar um mundo outrora nosso e que já não nos pertence mais. O efeito da opacidade do papel remete à impressão que se tem ao se deparar com algo cuja identificação não é tão prontamente processada pela memória.

Como álbum, o livro não traz as páginas numeradas, fato que aponta para a não-linearidade da obra. Há uma narração implícita, que se tece de cotidianos flagrados em instantes fotográficos e referendados por descrições inusitadas de personagens retratados. O verbal assume a poeticidade do dito e do inaudito, ao mesmo tempo em que, em alguns pontos, ele para a fim de prosear com a imagem.

A fusão do presente com o passado faz-se com a foto da família inteira e o post-scriptum, que radicalmente subverte o já esperado, reflete-se em multifacetados sentidos.

As fotos – metonímias por excelência, em tessitura metafórica, com verbo (re)criam personagens, estabelecendo intercâmbios intertextuais com a memória da humanidade.

3 - A bela borboleta, de Ziraldo. Com um interessante diálogo com a linguagem cinematográfica, esta obra, na época de sua publicação, renova planos da ilustração do livro de literatura para crianças.

De natureza híbrida em um misto de verbo e imagem, esta obra traz a linguagem técnica do cinema. O corte cinematográfico e a combinação dos fotogramas imprimem movimento à narrativa.

A montagem cinematográfica interfere no ato narrativo: os conectores linguísticos que garantem a sintaxe e o fio da narrativa são substituídos por outros no encadeamento dos fotogramas.

O narrador reduz a fala e fica em proeminência a linguagem imagética, imprimindo mais movimento para traduzir os pontos de vista. O foco narrativo ao nível do chão da página, em movimento para cima, oferece maior abertura e dá destaque ao Gato de Botas - aquele que anuncia, que faz a convocação. Plano geral e o primeiro plano-close alternam-se, provocando movimento de distanciamento e proximidade do objeto narrado.

No plano da história, são introduzidos heróis de vários contos, que são refuncionalizados. Deslocados de seu posto de origem e desreferencializados, passam a ser uma multiplicidade de heróis que convivem na história. Desfazendo para refazer, multiplicam-se as vozes. Assume o texto um caráter paródico.

O livro reverbera o artesanal do passado, transforma-o e revitaliza-o por meio de um recurso tecnológico do presente.

4 - Cibermãe. Obra de Alexandre Jardin. Moderna/2002. Este livro traz, para o universo da narrativa, o computador, essa mídia semiótica que desafia seus usuários.

O computador, como máquina física de extensão de nosso cérebro, constitui um objeto material que dá corpo ao meio semiótico e, por conseguinte, ao signo. Essa é uma das formas pelas quais se faz possível abordar a obra Cibermãe. Reunindo Ciência e Ficção, Cibermãe concentra e articula intertextualmente diversas linguagens, inserindo o leitor em uma rede de signos. Um texto que promove uma percepção sinestésica, desperta sensações múltiplas ao acionar o cruzamento dos sentidos à intervenção do intelecto.

Vale notar que a mais recente Bela Adormecida ganha, nesta obra, os efeitos visuais e tecnológicos da era digital, dormindo, agora, em um arquivo, possivelmente dentro de uma torre eletrônica. A princesa, aqui, transfigura-se virtualmente em mãe - matriz da vida.

As crianças, no contexto da história, são obrigadas a passar por uma grande perda, um obstáculo que as mobiliza para a busca. Como mídia semiótica, Cibermãe desafia o olhar atento do receptor e requer a mobilização de um repertório cultural bastante enriquecido. O texto concentra, além da linguagem verbal, a grafo-tipográfica, a fotográfica, a cinematográfica, a pictórica e a digital. Por isso, precisa ser lido de forma intertextual e intersemiótica, em uma dialética de renovação. Em vários momentos, intratextualizam-se as imagens surreais de Salvador Dali e o 'nonsense' de Lewis Carroll, com Alice no país das maravilhas.

Um dos aspectos mais inusitados é a revitalização do herói — a máquina — neste caso, uma máquina que simula e desafia a inteligência humana, mesmo que artificialmente. No texto de Alexandre Jardin, o herói tem um nome: Ulisses. Percebe-se, portanto, uma personificação da máquina, estabelecendo-se um laço entre o antigo e o novo. Isso ocorre não só no plano do conteúdo, mas também no plano da forma.

Há imagens da Bela Adormecida que ficam rememoradas dentro da cadeia virtual de Alexandre Jardin: o sono, o beijo, o despertar. Vale ressaltar que o sono (semelhante às antigas versões) aparece associado à morte, pois é usada a expressão "ajoelhado diante daquele sarcófago eletrônico". Interessando-se pelo futuro da humanidade e de nossas sociedades, como é comum nos textos de ficção científica, Cibermãe acena para uma formação humanística no leitor.

Seguramente, a explosão de imagens, cores, formas, aparatos virtuais, intertextos diversos, de um lado, podem tirar o leitor de dentro de si; de outro, também podem convidar a percepção para a busca de sentidos, contribuindo para um real encontro, ao tecer com os múltiplos fios, a rede de seu autoconhecimento, retirando do caos uma nova ordem.

Nesta extraordinária aventura dentro do computador, vive-se a jornada ao centro do eu. Com Alexandre Jardin, fica comprovada a possibilidade de um final feliz entre os dois elementos aparentemente tão díspares: Ciência e Arte. Em um mergulho em labirintos virtuais, o coração da máquina é o centro do mundo, ponto de comunicação entre o divino e o humano, marcado visualmente pela imagem de um círculo coincidentemente no centro do livro (nas páginas 31 e 33), repetindo-se na capa. O arquétipo cíclico, similar à roca das antigas versões, repete-se nesta imagem que se assemelha a uma roda ou a um olho gigante do qual irradia luz. O redondo ou o círculo é um símbolo feminino que representa e, ao mesmo tempo, reitera a figura arquetípica da grande mãe, além de metaforizar a Infoera. Em sua forma ígnea e emanando luz, o olho pode aparecer na imagem mencionada como um equivalente simbólico do Sol. De todos os órgãos dos sentidos, o olho é o único que permite uma percepção com um caráter de integralidade.

5 - História para dormir mais cedo. Obra de Angela Lago.4

Tendo a tela do computador como suporte, essa lengalenga infantil, inaugurando a linguagem da hipermídia, atravessa tempo e espaço em redes interplanetárias. Em um espaço negro, pontos de luz surgem. Em seguida, a lua também passa a compartilhar o espaço, assim como a assinatura de Angela Lago e vários trocadilhos visuais. Um papagaio que dorme recostado na meia lua, ao acordar, sugere algumas possibilidades de o internauta partilhar alguns momentos de um jogo virtual.

Clicando em 'HISTÓRIA', palavra que a ave falante repete por muitas vezes, a história tem início - uma narrativa com estrutura linear e, ao mesmo tempo, interativa. As personagens - mulher, menino, menina e cachorro - são figuras sintéticas com animação - que se faz no ritmo da lengalenga. Suas ações dependem do cursor, do mouse do internauta e do movimento interno ao programa de computação.

O verbal — oral e escrito -, apesar de sua dominância simbólica, adquire a função de ícone de navegação. O som manifesto na linguagem oral permite atestar, nas inflexões da voz, o caráter de linguagem híbrida. Temos em sincronia som, verbo e imagem.

De um equilíbrio inicial, a narrativa evolui para um conflito em que as vozes vão se sobrepondo em camadas diversas - algo que vai evidenciando o limite do aparato humano e revelando um recurso possível da mídia tecnológica. São falas simultâneas que criam planos sonoros, em uma montagem por sobreposição de vozes, com seus timbres diferenciados - fazendo com que a esfera do som deixe de ser apenas percebida no tempo, ao longo da duração, linearmente, para engendrar um espaço acústico e mental - o que estaria na base de composição dos experimentos poéticos de 'text-sound'.

A simultaneidade do momento do conflito contrasta lindamente com o desenvolver tranquilo da lengalenga e a proposta da História para dormir mais cedo.

Considerações Finais

Compreendemos que a literatura para crianças, na atualidade, tem se revelado como um caudaloso rio para o qual confluem múltiplas possibilidades de linguagens e diferentes sistemas narrativos. A essa rica e desafiadora paisagem, na qual se adensam signos de diferentes gêneses, cabe um olhar atento dos novos pesquisadores.

Ao matizar diferentes códigos e linguagens, oriundos dos diversos lugares da expressão humana, como a pintura, a fotografia, o cinema, entre outras, a literatura que se volta para crianças contemporaneamente necessita ser analisada em sua complexidade. Por ser fenômeno de linguagem, essa nova forma como se configura necessita ser vislumbrada pelo prisma da história, da cultura, do seu contexto de produção, em que se inserem autores, leitores, suportes, códigos e linguagens.

Assim, analisar essa literatura implica interpretar diferentes sistemas semióticos que se entre tramam. Arte, Ciência e Tecnologia gestam essa nova ecologia cognitiva que reclama ser compreendida, considerando que emerge, nesse cenário, uma nova forma de livro, um novo tipo de leitor e uma nova maneira de se processar a leitura.

Observamos que os três estágios (pré-foto; foto; pós-foto), considerados marcos da evolução e das interfaces criadas entre as linguagens e as novas mídias, tornam nítida a dinâmica das transformações a que assistimos. Da figuração do visível, passando pelo seu registro, até a virtualização do “modelizável”, transforma-se a relação que se cria com o mundo, modificam-se as expressões do sentir, do pensar, do querer humano – instâncias que precisam ser iluminadas com novas investigações, sobretudo as manifestações que diretamente envolvem a formação dos homens – a literatura para crianças.

Constatamos que as novas gerações vivenciam essa mudança paradigmática de uma maneira bastante intensa – eis o motivo pelo qual não podemos nos distanciar dos questionamentos e dos estudos que envolvem as consequências dessas tão rápidas transformações.

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