pluralPlural - Revista de Ciências SociaisPlural - Revista de Ciências Sociais2176-80992176-8099Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo10.11606/issn.2176-8099.pcso.2018.153626EntrevistaO espectro criminal: entre sombras e imagens. Uma entrevista com Jean Comaroff e John ComaroffRocaAndreaaUSPDoutoranda do Programa de Pós-Graduação em Sociologia da USP e bolsista FAPESP (2015/9686-5).28122021Jul-Dec2018252182192Este é um artigo publicado em acesso aberto sob uma licença Creative Commons
Jean e John Comaroff talvez sejam o casal mais célebre na antropologia contemporânea. Formados na década de 1960, na Universidade de Cape Town, África do Sul, chegaram na Inglaterra para se doutorar em Antropologia Social na London School of Economics. Depois de uma longa e destacada carreira no Departamento de Antropologia da Universidade de Chicago, em 2012 ambos foram convidados para integrar o Departamento de Estudos Africanos e Afro-Americanos e de Antropologia da Universidade de Harvard - onde hoje são professores.
No decorrer de suas trajetórias, Jean e John Comaroff têm explorado a relação entre capitalismo, modernidade e colonialismo, focando em várias questões, desde religiões e rituais até legislações, crimes, democracia e problemas urbanos, tendo como lócus privilegiado de pesquisa e teorização a África do Sul. Nesse sentido, o ponto de inflexão foi o livro Ethnography and the Historical Imagination, publicado em 1992 e tido como um clássico da antropologia - infelizmente, ainda sem tradução para o português.
Pesquisadores brasileiros têm demonstrado interesse por seu trabalho, sobretudo pelos livros Law and Disorder in the Postcolony (2006), Ethnicity, Inc (2009) e Theory from the South: or, how Euro-America is evolving toward Africa (2012). Isso se expressa por meio das publicações de resenhas e traduções de capítulos, além de um par de entrevistas em revistas acadêmicas nacionais. Tal atração, aliás, têm sido recíproca: Jean Comaroff visitou o Brasil, em 2011, a convite do Instituto Contemporâneo de Projetos e Pesquisa do Rio de Janeiro; dois anos mais tarde, foi palestrante convidada pela Universidade de São Paulo e pelo 37º Encontro Anual da Anpocs, em Caxambu. Em 2016, John Comaroff ganhou destaque na imprensa nacional ao comentar sobre a situação jurídica e política da ex-presidente Dilma Rousseff e do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva1, na perspectiva do conceito de lawfare2.
A entrevista a seguir foi realizada em 12 de julho de 2018, durante o seminário Theory from the South: Interrogating the Global dis/order, organizado pelo Institute for Critical Social Inquiry (ICSI) do The New School for Social Research, de Nova York, que este ano convidou os professores Comaroff para trabalhar com um grupo de pós-graduandos e jovens professores, oriundos de países como Palestina, Estados Unidos, Chile, Turquia, Egito e Brasil. Nesse contexto, o convite da Plural foi no intuito de conversar sobre o livro The Truth About Crime: Sovereignty, Knowledge, Social Order, publicado em 2016 pela The University Chicago Press.
Revista PluralDizem que não se pode julgar o livro pela capa. Mas gostaria que vocês falassem um pouco sobre a ilustração da capa de The Truth About Crime. A imagem me parece instigante. Nela, há duas figuras semi-humanas: uma vestida de laranja, como um prisioneiro, com a boca e os olhos costurados, sem voz e sem olhar; a outra, mais ao fundo e içada, está vestida de preto, com o rosto encapuzado e os olhos acesos, vigilantes. Vocês se lembram porque escolheram essa imagem tão enigmática para o livro e como ela se conecta com os temas que vocês analisam na obra?
Jean Comaroff Sim, claro que lembramos. Estávamos há bastante tempo buscando uma pintura ou ilustração, porque é muito difícil saber como ilustrar um livro debruçado em um tema como o crime. É muito fácil usar imagens vandálicas ou muito explícitas. Por outro lado, nós queríamos trabalhar com a obra de alguém que fosse do lugar sobre o qual estávamos escrevendo, ou seja, da África do Sul. A obra é do artista plástico contemporâneo Mawande Ka Zenzile. Ele vem de Eastern Cape, um tipo de colônia interna da África do Sul, uma zona muito pobre, fonte de trabalho migrante e, é importante dizer, muito importante na história da luta anti-colonial do país. É desse local que provém a linhagem de Nelson Mandela e do Congresso Nacional Africano (ANC) - não de Jacob Zuma3, mas da primeira geração de ativistas.
Em uma galeria, vimos o trabalho de Ka Zenzile. Ele faz um trabalho verdadeiramente fascinante; utiliza-se de esterco de vaca, por exemplo, que em Eastern Cape é utilizado na construção de moradias, bem como de outros materiais locais, como terra e argila - algo realmente interessante. Ele também faz uso de materiais “africanos”, mas seu trabalho é, ao mesmo tempo, muito modernista e cosmopolita. É essa a sua sensibilidade. Foi após essa exposição4 que procuramos mais sobre o artista na internet e achamos essa pintura (The mythology of rape, 2014). Para nós, trata-se do espectro criminal. O que nos interessava era o prisioneiro - que, como você notou, está vestido de cor laranja e na prisão -, mas também a ideia que passa de cada homem africano criminalizado. Por detrás do suposto “criminoso” paira uma outra figura enigmática, que é um tipo de presença fantasmagórica da lei; mas não no sentido legal. Sobre isso falamos no livro: como o crime paira na invisibilidade, oscilando entre o visto e o não visto, nessa fronteira impossível - que, eu sei, vocês conhecem muito bem no Brasil, da dificuldade de definir o que é corrupção e quem é corrupto, por exemplo, ou então da dificuldade de definir o que é a causa e o que é a consequência. Então, a imagem refere a essa presença ameaçadora que nós chamamos de súcubo.
John Comaroff A imagem é também uma imagem sobre o indecidível5. Ou seja, você não tem certeza de quem é o ameaçado e quem ameaça, se essa ameaça é real ou é invenção da imaginação. Essa é a sua qualidade; é por isso que nós amamos a ideia do súcubo: as coisas que você não conhece, mas que estão “espectralmente” por aí - e que de alguma maneira assombram. E assombram porque você não pode atribuir a essa figura uma definição: É branco? É preto? É homem? É mulher? É criminoso? É legal? E é precisamente sobre isso que trata toda a obsessão atual com o crime. Pense, por exemplo, no Brasil. Lula é culpável de algum crime ou não? Provavelmente não, certo? No entanto, o poder o criminaliza usando da própria máquina do poder. Em 2017, passei uma tarde muito interessante com a ex-presidente Dilma Rousseff, ela estava falando sobre o golpe parlamentar que a derrubou. Então, eu lhe perguntei: você acredita que seus oponentes políticos pensam que você é uma criminosa? Ela respondeu: “Não. Mas esse não é o objetivo. O golpe não precisa de um criminoso; ele necessita de uma figura criminalizável”. Em certo sentido, isso captura a perspectiva como um todo. Você não sabe quem é a figura criminalizável: Dilma, enquanto essa figura, pode ser afirmada como culpável em benefício de uma ordem e de um interesse particulares.
Jean Comaroff Em The Truth About Crime, um dos assuntos que nos interessava fazia referência à figura do súcubo e do espetro criminal no contexto da transição na África do Sul: quando tivemos a nova constituição, a cidadania inclusiva, a comissão de verdade e reconciliação, também tivemos a AIDS e a onda criminal nas cidades. Nós estávamos muito interessados nesta questão: do que se trata essa onda criminal? Como se sabe que se trata de uma onda criminal de fato? Eu reconheci o fato imediatamente. Pois, ao ler Vigiar e Punir, de Michel Foucault, nota-se algo interessante: com o nascimento da cidade moderna, as diferentes classes sociais encontram-se no mesmo espaço, sendo que a aristocracia teve que estar ombro a ombro com o povo pela primeira vez. Logo depois, houve uma onda criminal - contudo, não há como saber se houve mais criminalidade ou não. A percepção, porém, era que o crime era maior. Há um sentimento de não conhecer mais o seu vizinho, de sentir-se ameaçado a todo instante, de que as estruturas hierárquicas não estão mais funcionando como antes e de que a ameaça está em todos os lugares. Não se sabe, entretanto, de onde provém, e por isso não se pode controlá-la.
Assim, voltando à capa do livro: quem é que leva o capuz no rosto? Durante os anos do apartheid da África do Sul houve de fato muita violência e muita desconfiança; mas era sempre uma violência política. Era política justamente porque conhecia-se bem o inimigo; ainda havia uma distinção entre branco/negro. Após a transição, passou-se a não reconhecer mais essas linhas de distinção entre amigo/inimigo; era como se a política tivesse sido dissolvida em um mundo de liberdade para todos em prol de interesses individuais juntamente da sensação de que o crime ameaçava a todos e em todos os lugares. Tudo isso era similar ao que observávamos ao sul de Chicago e cada vez mais na Inglaterra.
Revista PluralAqui na América do Sul, temos por exemplo o caso da transição chilena: depois da ditadura de Augusto Pinochet e as reformas neoliberais, nos primeiros anos da transição na década de 1990, o crime colocou-se como a grande preocupação da população: uma alta taxa de insegurança subjetiva versus uma baixa taxa de criminalidade, paradoxo que permanece até hoje nas principais cidades do país.
Jean Comaroff Provavelmente, esse imaginário respondia a uma outra coisa, certo? Na África do Sul, nem dá para saber exatamente porque, no decorrer do apartheid, não se contabilizava a violência de negros contra negros. Só havia interesse nos crimes de ataque ao Estado e perpetrados por negros contra brancos - era o terror. E, se as pessoas se matavam entre si nas comunidades negras, não era de interesse, não se contabilizava. Todavia, pelo que sabemos - e isso fica claro no livro -, as taxas de criminalidade estavam caindo no decorrer da década de 1990; mas a percepção, o medo abstrato, aumentava. O crime, de certo modo, se transformou na lente, na perspectiva, a partir da qual se podia dar conta da ordem, da desordem, do conhecimento, da ausência de conhecimento - e assim por diante. Tudo resultava nesta figura: o criminoso. E, politicamente, ninguém discordava da convicção do aumento do crime; se alguém discordava, esse alguém era tido como corrupto ou criminoso, ou seja, culpável de algum modo. Enfim, foi em Theory from the South (2012) que começamos a perceber tudo isto. É por isso que dizemos que os dois livros estão relacionados.
John Comaroff Creio que toda essa história de certo modo já estava antecipada em um livro que escrevemos antes, o Law and Disorder in the Postcolony (2006), uma vez que na introdução dessa coletânea de artigos já tratávamos desses assuntos.
Revista PluralRealmente. Relendo a introdução de Law and Disorder in the Postcolony, aparecem várias ideias que vocês recuperaram em The Truth About Crime. Há 10 anos, vocês já estavam discutindo a metafísica da desordem, a dialética entre legal e ilegal, a coincidência entre a democratização do mundo pós-colonial e o aumento do crime. Inclusive, percebe-se que o grande mote de Theory From the South é o de como algumas “anomalias” tidas como características da África, ou da América Latina, como a corrupção, o crime organizado, etc., também são constitutivas de países do dito “primeiro mundo”.
John Comaroff Claro. Pensemos o seguinte: hoje a CNN revelou que Donald Trump reconheceu ter recebido malas com dinheiro de representantes de governos estrangeiros6. Agora, imagine que os Estados Unidos têm acusado a todo instante lideranças africanas de fazer o mesmo há muito tempo, taxando-as de criminosas. Os advogados de Trump não negam o fato de que ele recebeu o dinheiro, simplesmente dizem: “Não é crime porque ele não está dando nada em troca por esse dinheiro”. É crime e ele é o presidente: na lei americana, você tem que declarar cada presente que você recebe. Mas ele não declarou e o estado de Maryland agora está cogitando processá-lo criminalmente. O fato é que eles não estão negando o episódio; só contornam a lei de alguma forma, dizendo que se tratou de um simples “presente”. É óbvio que ele vai conseguir sair disso porque o poder prevalece nesses assuntos.
Jean Comaroff Na África do Sul, voltando à questão da transição e da indecibilidade do legal e ilegal, na época da transição do apartheid, e isto é interessante, os presos políticos foram anistiados, como se sabe. Entretanto, o que chama atenção era como os presos comuns também acreditavam que deveriam ter sido perdoados por seus crimes, porque eles diziam que a lei era ilegítima e que eles eram também presos políticos. O argumento era: quando nós rompemos a lei, estávamos resistindo ao sistema. E há uma história de longa data na África do Sul acerca da chamada “bandidagem social”; não no sentido de dar aos pobres, mas no sentido de que a lei, por sua origem colonial, é tida como ilegítima. Discute-se a legitimidade da lei e, portanto, de sua quebra. Roubar os ricos, por exemplo, não é entendido como uma falta, mas como ato de resistência à dominação e ao sistema colonial.
Revista PluralOutro elemento muito interessante em The Truth About Crime é a diversidade de materiais que mobilizadas no livro, desde estatísticas criminais, filmes sul-africanos, até séries de televisão, como The Wire, Breaking Bad e CSI. Isso não me parece muito frequente na sociologia, ou seja, reunir materiais tão ecléticos para elaborar um argumento.
John Comaroff Mas é isso o que a antropologia faz hoje: analisar as coisas mais estranhas que nós considerarmos óbvias e que usualmente não colocamos dentro da mesma categoria. Isso, creio, foi algo que Michel Foucault nos ensinou: procurem por coisas que parecem não ter relação entre si à primeira vista, coisas que não parecem ser “pares conceituais”, mas quando devidamente analisadas acabam resultando em coisas relacionáveis. A partir disso há algo interessante a ser aprendido. É assim que a melhor construção - e destruição - de categorias acontece.
Jean Comaroff Nós também começamos a trabalhar lado a lado com imagens, para verificar como o crime era entendido no imaginário social, ou seja, como a justiça informal e as suas representações acabavam por se consolidar no imaginário das pessoas. No livro, há muitas referências a filmes e séries. Com respeito à literatura, na Colômbia atualmente há um novo estilo de ficção criminal, composto por escritores como Laura Restrepo, além de eventos importantes como o festival Medellín Negro.
Revista PluralSeria o que vocês chamam de neo noir ou noir bravo?
Jean Comaroff Sim, isso mesmo. Realmente, quando se olha para boa parte da mídia e para o que as pessoas assistem no Netflix o tempo todo, vê-se tais histórias sobre crime e criminalidade, pois elas se transformaram em alegorias da vida. Além disso, temos esses casos judiciais que se transformam em dramas teatrais para o público geral, para as pessoas comuns, como o caso icônico de Oscar Pistorius, o atleta paraolímpico sul-africano Reeva Steenkampesse que assassinou sua namorada em 2013 - caso que nós analisamos no livro, inclusive. As pessoas ficaram obcecadas com esse drama: o julgamento foi transmitido ao vivo e o caso se situou entre o forense e o oracular. Na realidade, chamou a atenção do público porque parecia figurar alguma coisa, o sentimento de um homem branco ameaçado, um homem branco que perdeu o seu poder e que, de alguma forma, desviou o crime para outrem, um intruso negro - o intruso criminal -, que supostamente teria invadido a sua casa.
Revista PluralEsse clichê da violência urbana, do negro sempre pronto a atacar brancos indefesos, o corpo negro, sem nome, sem rosto, como vocês descrevem…
John Comaroff É disso que se trata a capa do livro! O súcubo que é percebido enquanto ameaçador. O intruso negro que nunca esteve aí e que não teve a possibilidade de estar aí - aliás, tratava-se de um condomínio fechado de luxo de Pretoria, e o disparo foi através da porta do banheiro: ele sabia que era ela quem estava lá. Não há dúvidas de sua culpabilidade, e por quê? Por todas as alegações que ela estava tendo um caso com outro famoso herói esportivo sul-africano. O ocorrido foi violência de gênero, e houve muita atenção da mídia e dos jornalistas. O julgamento foi transmitido integralmente ao vivo, da sala do júri. Todos assistiram ao julgamento e à quantidade enorme de comentários que emergiram, incluindo, provavelmente, o debate mais elaborado sobre violência de gênero na África do Sul. Por que isso está acontecendo? Afinal de contas, era um casal branco. Ela era uma das grandes modelos sul-africanas. Ele, um dos grandes heróis olímpicos. E ao fim e ao cabo, tudo se resumia a uma história de ciúmes e de exigências sexuais sobre ela. No fim, tudo se tratou de mais uma história de nossas inseguranças, como comentou Jean. Então, a questão do homem competindo com outro homem mediante violência sobre uma mulher. Isso foi um escândalo nacional.
Jean Comaroff Também há um deslocamento da narrativa do homem branco; o colonizador branco agora é colocado de lado e recupera-se, nesse contexto, certa forma de raiva…
John Comaroff Por outro lado, nas séries televisivas, também aparece o assunto da desconfiança na vida cotidiana, da fenomenologia do medo que se coloca na própria incapacidade de poder traçar um limite entre quem é cidadão “de bem” e quem é inimigo. Esse é o grande assunto que está por trás das séries de televisão mais assistidas na atualidade, como por exemplo The Americans. A série trata de dois espiões soviéticos nos EUA, sendo que a grande problemática da narrativa é que eles são vizinhos dos cidadãos mais comuns. Seus filhos vão à escola, participa daquela rede de sociabilidade, de eventos, aniversários, e quando se descobre que eles são o inimigo violento, não há ninguém que os personifique propriamente: apenas um casal, uma mulher linda e um homem lindo, jovens que vivem na porta do lado de tua casa.
Jean Comaroff Sabe, essa é a questão chave que nós estamos discutindo aqui, que o crime nas cidades já não é algo épico sobre o qual você estabelece uma linha da qual você se afasta claramente. O assunto é que (e nós dizemos muito isto no livro), ao observar os grandes shows televisivos - como Os Sopranos ou Breaking Bad, que têm se transformado em alegorias da nação - o ponto sobre essas pessoas é que eles não são simplesmente más. Elas são heróis que lutam com problemas muito humanos. Na metade do século XX, a história norte-americana épica foi a peça de teatro. Como “A morte de um caixeiro-viajante”, de Arthur Miller: é um típico homem americano que está tentando ser um pequeno empreendedor e que nunca terá sucesso com o chamado Sonho Americano. Agora, a figura da vez é Tony Soprano. Tem-se apostado bastante neste assunto da família e do crime nos subúrbios. Além disso, eles são bons católicos. Ele tenta ser um bom pai de família, é um homem de família, vai ao psiquiatra, mas no caminho mata alguém pelas costas! Então, nessa perspectiva, ele é como qualquer pessoa que eu conheço - dizia o diretor de HBO -, exceto por ser o grande chefão de Nova Jersey.
Creio que haja alguma coisa acontecendo que envolva o terror doméstico, o que, de certo modo, tem muito a ver com o fim da Guerra Fria: antes, havia uma clara bipolaridade entre as áreas de confiança e de desconfiança. Agora, todas essas coisas estão se projetando dentro das fronteiras. Ao mesmo tempo, no caso da África do Sul, fica a pergunta: quem é o colonizador e que não é? Quem está no “lado certo” da luta? Quem está no lado do “demônio colonizador”? Quem é o dissidente político e quem é o vândalo, o saqueador, o oportunista violento? Vejamos por exemplo o caso de Cyril Ramaphosa, o novo prisioneiro político com o qual agora estamos todos fascinados porque parece ser uma grande liderança. Entretanto, como se sabe, ele é um grande capitalista e está provavelmente envolvido no caso de Marikana - o massacre de 2012, em Rustenburg, quando mais de 30 mineiros em greve foram mortos pela polícia7.
John Comaroff Provavelmente, ele deu a ordem.
Jean Comaroff Porque ele estava ali. Então, paira novamente esse ambiente de indecibilidade, e é isso o que o noir captura: é tudo a mesma coisa. Por agora estivemos na Inglaterra e o assunto lá é: como você sabe que a sua filha não vai ser afetada por um processo de radicalização no mundo online e, em algum momento, querer participar do ISIS? A discussão é sobre o terror interno. Outro exemplo é o caso da cidade de Boston, em que um homem, Dzhokhar Tsarnaev, promoveu um atentado à Maratona de 2013. Resulta que ele - e isto era discutido na imprensa - ia à mesma escola secundária de dois atores de Hollywood, Matt Damon e Ben Affleck. A mesma escola! Então, de certo modo, de onde vem essas pessoas?
John Comaroff A linha é muito tênue. Há um filme maravilhoso sobre o qual nós também discutimos em The True About Crime, intitulado Hijack Stories8. É um filme brilhante, um tipo de Jozie9noir que fala da vida urbana e criminal em Joanesburgo.
Jean ComaroffHijack Stories fala de um jovem ator, Sox Moraka, que tenta entrar em um show televisivo de gângster. Acontece que ele já é de uma família de negros de classe média. Então, ele decide voltar ao lugar de onde seus pais vieram, Soweto, e vai viver com criminosos da periferia para aprender a ser um criminoso - porque o crime é uma performance e você tem que aprender os movimentos e a dinâmica, não é mesmo? O herói se transforma em um sequestrador, um assaltante especialista em roubos de carros. O que o filme diz, basicamente, é que a arte e a vida constantemente se reforçam uma à outra. A interação mimética entre arte e vida é algo constante. É um filme brilhante!
John Comaroff O que nos interessa, como denotamos no livro, é a economia política da representação do crime e as fantasias forenses construídas ao redor desses assuntos. O outro filme importante para nossa análise é Gangster Paradise: Jerusalema10. O protagonista, Lucky Munene, sonha com uma casa na praia. O que nos chamou a atenção é que o herói se transforma em um assaltante especialista. A razão pela qual faz isso é que ele deseja frequentar a escola de negócios, para a qual foi aceito mas não tem o dinheiro para ir. Então, sinteticamente, ele decide se transformar em um homem de negócios diferente, começando a se profissionalizar no crime e a se envolver no negócio de “sequestro de prédios”11, tornando-se muito bem sucedido. O filme se passa no período da transição na África do Sul. Não é possível, no filme, diferenciá-lo dos homens de negócios “legítimos”. O interessante é que a história é baseada em fatos reais, sendo que o “protagonista” na vida real é um “sequestrador” de prédios em Joanesburgo.
Jean Comaroff Em nosso livro, há uma entrevista com ele, em que ele diz: “O que é um ladrão? Ora, meu povo foi colonizado; nós tivemos a nossa terra colonizada; o homem branco roubou a terra. Então agora estamos apenas recuperando-a. Durante o Apartheid, não nos deixaram viver no centro de Joanesburgo e nos relegaram à periferia da cidade. Agora eu recupero essas propriedades de proprietários inescrupulosos: isto não é crime, é justiça”. No filme, o gângster está constantemente em um monólogo, e falando cita Marx: “Depois de cada revolução, há uma nova ordem. Mas, antes disso, na transição, aparecem as oportunidades”. E, depois, cita Donald Trump! E isto foi feito muito antes de que Trump fosse eleito.
Jean Comaroff Em relação aos filmes e séries, há também uma figuração da sociedade pensando sobre si mesma, e essas coisas se convertem em informações muito interessantes. Para mim, trata-se de sociologia. Não é estudo de filmes. O que nós estamos argumentando, nessa parte do livro, é que a sensibilidade da multimídia do filme pode dizer mais do que nós próprios acerca da natureza cambiante, a mudança tectônica, do capital e da sociedade.
John Comaroff O filme pode ser entendido, nesse sentido, como uma sociologia profunda do mundo urbano contemporâneo. No final, na ironia de Hijack Stories, quando ele entra no crime, percebe-se um movimento tático. Contudo, seguir o princípio do crime é uma performance. No final, é o rapaz do bairro que adquire um papel na série de TV, porque é a exemplificação viva do que exige atuar o crime. Portanto, esse tipo de identidade criminal faz com que o rapaz se torne um objeto real no final. O filme é um tipo de sociologia muito orgânica.
Jean Comaroff Esse é o ponto que discutiremos em uma palestra amanhã12, que a criminologia se transforma na nova sociologia. É, por meio do crime, você gera o crime e a detecção. É sobre como você conhece o mundo social e como o mundo social pode ser lido. Foi Durkheim quem disse: ordem da desordem - nós não teríamos a possibilidade de saber o que é a nossa ordem social sem o crime.
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Ver: “Professor de Harvard vê ‘presunção de culpa’ contra Lula na Lava Jato”, Folha de SãoPaulo, dia 1º de novembro de 2016. Disponível em: <https://goo.gl/qEhEPL>. Acesso em: 11 de junho de 2018.
Refere-se à manipulação da lei para atingir determinados objetivos políticos ou econômicos.
Jacob Zuma foi militante do Congresso Nacional Africano, preso político durante o apartheid e posteriormente eleito presidente da África do Sul em 2009 - cargo que manteve até 2018, quando renunciou em razão de acusações de corrupção.
Galeria Stevenson, Mawande Ka Zenzile: The Problem We Didn’t Create, Cidade do Cabo, África do Sul, 2015.
Indecidível, em inglês, undecidable, refere ao conceito de Jacques Derrida undecidability. O termo, de forma muito sintética, discute a impossibilidade de identificar a que lado de uma dicotomia situar um determinado elemento.
Ver: “Maryland and D.C. sue Trump over foreign payments”, CNN, 12 de junho de 2018. Disponível em: <https://goo.gl/mE5ZFB>. Acesso em: 13/06/2018.
Cyril Ramaphosa, atual presidente da África do Sul, assumiu o cargo logo depois da renúncia do ex-presidente Jacob Zuma, em 15 de fevereiro de 2018. Ex-sindicalista, Ramaphosa lutou contra o regime do Apartheid e foi encarcerado em 1974 e 1976. Já no fim da década de 1990, voltou-se inteiramente para os negócios e, em 2015, foi indicado como um dos 50 homens mais ricos da África pela revista Forbes.
Filme do diretor sul-africano Oliver Schmitz, estreado em 2000.
Apelido de Joanesburgo.
Filme do diretor sul-africano Ralph Ziman, estreado em 2008.
A expressão original é hijack buildings e se refere à ocupação de prédios no centro da cidade de Johanesburgo, que são, no geral, alugados a pessoas de setores populares. Diferentemente de São Paulo, os grupos que controlam as ocupações nesse caso não se orientam pela militância política: são grupos criminais que contam com o apoio dos inquilinos, em função do controle no preço de aluguel, podendo baixá-los quando necessário.
Palestra “Crime, Sovereignty, and the State: the Metaphysics of Global Disorder”, ministrada em 13 de junho de 2018, no Institute for Critical Social Inquiry (ICSI) do The New School for Social Research, em Nova Iorque. Disponível, em vídeo, na íntegra, no seguinte link: https://www.youtube.com/watch?v=Zmqxgm4nYa8.