pluralPlural - Revista de Ciências SociaisPlural - Revista de Ciências Sociais2176-80992176-8099Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo10.11606/issn.2176-8099.pcso.2018.153627TRADUÇÃOAutoconstrução Redux: A Cidade Como Método1Auto-Construction Redux: The City as MethodJiménezAlberto CorsínaRochaAndré CamposbKosickiJoão VictorbConselho Superior de Investigações CientíficasEspanhaInvestigador ligado ao Conselho Superior de Investigações Científicas da Espanha.Programa de Pós-Graduação em SociologiaUniversidade de São PauloMestrando e doutorando, respectivamente, do Programa de Pós-Graduação em Sociologia da Universidade de São Paulo.28122021Jul-Dec2018252193219Este é um artigo publicado em acesso aberto sob uma licença Creative CommonsResumo
Este artigo recupera o conceito de autoconstrução como uma heurística para o método e a teoria antropológica. Com base no uso original do conceito nos estudos urbanos, eu sugiro que a autoconstrução oferece uma visada capaz de dar conta não só dos projetos de base que mobilizam recursos, materiais e relações de um modo inventivo e transformador das ecologias urbanas, mas que também ajuda a delinear a forma como a teoria, em si, é autoconstruída: as operações de problematizações por meio das quais situações são navegadas e projetadas em métodos de investigação e exploração. Em outras palavras, eu tomo a autoconstrução como uma descrição empírica e teórica e, ao mesmo tempo, uma forma de auto-heurística para pensar a cidade como um método. O argumento é ilustrado por um relato etnográfico do trabalho com coletivos de arquitetura e contraculturais de guerrilha em Madri, focalizando, particularmente, nas transformações de um terreno abandonado no coração da cidade em um projeto comunitário auto-organizado, explorando de que modos os ativistas problematizaram a cidade como um método.
Abstract
This article recuperates the concept of auto-construction as a heuristic for anthropological theory and method. Drawing on the concept’s original usage in urban studies, I suggest that auto-construction offers a handle for grasping not only how grassroots projects mobilize resources, materials, and relations in ways that are inventive and transformative of urban ecologies but that it also helps outline how theory itself is auto-constructed: the operations of problematization through which situations are navigated and designed into methods of inquiry and exploration. I read auto construction, in other words, as both an empirical and theoretical descriptor, a sort of auto-heuristics for thinking of the city as method. The argument is illustrated by an ethnographic account of work with guerrilla architectural and countercultural collectives in Madrid, focusing in particular on the transformation of a vacant open air site in the heart of the city into a self-organized community project, exploring how activists variously problematized the city as method.
“Uma ferramenta monumental”, alguém sussurrou. “Centenas de páginas”, alguém mais notou. “O Processgram”, uma terceira pessoa finalmente explicou, fornecendo uma descrição que funcionou tanto como nomenclatura quanto como assinatura mítica. Deve ter sido em 2011 ou 2012 quando ouvi pela primeira vez essas palavras, e as imagens que elas provocaram permaneceram comigo desde então. Eu estava hipnotizado. Nunca tinha ocorrido a mim que coletivos de arquitetura de guerrilha poderiam ter desenvolvido uma ferramenta de gerenciamento de projetos com o intuito de registrar cada ação, cada bifurcação, cada fotografia, desenho e esboço, cada fracasso e percepção captados durante um projeto comunitário. Um arquivo feito por você mesmo e uma interface de concepção social, um programa organizacional e um diretório urbano, tudo a um só tempo: eis uma ferramenta que os arquitetos estavam usando para autoconstruir a cidade (para a construção de relações sociais e materiais) ao mesmo tempo em que eles autoconstruíam seus próprios métodos.
O projeto em questão era Autobarrios (literalmente, “autobairros”), uma iniciativa comunitária social liderada pelo coletivo guerrilheiro de arquitetura Basurama em San Cristóbal de los Ángeles, um dos mais pobres e desfavorecidos bairros de Madri2. Iniciado por Juan López Aranguren, membro do Basurama que havia crescido na comunidade, e Sarah Fernández Deutsch, o projeto assinalou uma inovação em relação à história coletiva das intervenções artísticas críticas e participatórias. No auge da crise financeira, Aranguren assumiu o projeto quando a própria existência do Basurama estava sob ameaça. O coletivo de arte e arquitetura, que há apenas um ano tinha feito a curadoria da “Noite Branca de Madri” (o proeminente festival de artes do verão da cidade), estava passando por uma profunda crise pessoal, econômica e profissional. Basurama tinha colocado o desafio de curar o evento com uma proposta sarcástica mas construtiva, com o objetivo de envolver as pulsações lúdicas da capital. “Façam suas apostas!”, como eles chamaram o festival, teve lugar nas principais vias e espaços públicos da cidade, empregando lixo e materiais descartados (característica distintiva da obra de arte do Basurama) na transformação da paisagem urbana em um gigantesco playground ao ar livre e em um parque de diversões. As instalações construídas na ocasião foram projetadas para serem desmontadas e recicladas para uso futuro na autoconstrução de equipamentos urbanos nas comunidades marginais e periféricas de Madri (ver figuras 1 e 2). Contudo, a responsabilidade de curar a “Noite Branca” - um símbolo, se alguma vez existiu, do “processo de regeneração urbana baseada em marcas comerciais... cúmplice da atitude neoliberal para com a cidade” (MCGUIRK 2014, p. 15) que caracterizou a arquitetura do espetáculo e do capital da recente urbanização espanhola - dividiu o coletivo. Tendo ocorrido em setembro de 2010, no mesmo período em que a primeira onda da crise financeira tinha perdido fôlego e a bolha milagrosa da economia imobiliária espanhola explodido, o romance lúdico do Basurama com a economia do desejo atraiu pouca simpatia e recebeu muitas bofetadas, não menos de coletivos radicais e contraculturais que viram a atuação do Basurama como uma desapontadora rendição às seduções do capital. A cidade fez suas apostas, nocauteando Basurama. Ao final do evento alguns membros deixaram o coletivo enquanto outros fizeram uma pausa, e aqueles que permaneceram enfrentaram um horizonte sombrio de precariedade e depressão. Neste contexto, Aranguren partiu para San Cristóbal com um projeto que era parte terapia, parte desespero, parte chamado. Autobarrios foi concebido como uma imersão em queda livre nas condições que moldam a autonomia enquanto um projeto prático e um desafio político em contextos de marginalização - onde o uso do rótulo “auto” apontava para as vagas promessas de autoemancipação comunitária e material.
Acontece que nunca cheguei a ver o Processgram, embora tenha encontrado diferentes versões dele nos cinco anos que se seguiram. Eu nunca vi o objeto, mas me tornei parte do método. O método que o Basurama desenvolveu para o Autobarrios tornou-se uma prática importante para seu trabalho em outros lugares, em locais abandonados e loteamentos, trabalhando em colaboração com escolas e associações de bairro, em parceria com instituições culturais, com outros coletivos de arquitetura, ou até mesmo com acadêmicos como eu. O método parecia viajar muito. Com o tempo, no entanto, cheguei a questionar esta percepção do método como um objeto em movimento. Parecia haver muito método em todos os lugares. E se não tanto o método em si que havia viajado, mas sobretudo um sensorium cultural e uma estética material? E se fosse uma experiência emergente da cidade como método que as pessoas haviam encontrado em todos os lugares - se o método fosse uma infraestrutura de sentimento para a cidade?3
Este artigo desenvolve um argumento etnográfico sobre a experiência do método como uma modalidade de relacionalidade em Madri. Com base em mais de seis anos de trabalho de campo com coletivos de arquitetura de guerrilha, ativistas comunitários, artistas, e associações de bairro na cidade, faço um relato sobre o uso que estes coletivos fazem do método da autoconstrução enquanto um sistema perceptivo e material de compartilhamento de recursos, conhecimentos e experiências. O método de autoconstrução tornou-se um portador da forma como os projetos populares pensam e sentem, tomando a cidade como um horizonte de esperança e responsabilidade, de intimidade e ação. Em tempos de crise e desespero, a autoconstrução proporcionou uma linguagem fiel e intuitiva para movimentos de aspiração e autonomia, para mudar (terra)formações de impaciência e capacidade, para investigações ecléticas e selvagens dentro e fora das profundezas materiais da precariedade. Estes projetos múltiplos - que incluem projetos comunitários em arquitetura de código aberto, as chamadas plataformas educacionais “faça com os outros” ou centro social squat copyleft - falam sobre uma cidade que se acumula e prolifera através de várias linguagens, mídias e interfaces de descrição; através de arquivos, arqueologias e tecnologias que depositam, mas também ajudam a visualizar e rastrear suas memórias e esperanças; e através de sistemas de aprendizagem, tentativa e erro, e improviso que esfoliam seus vários sistemas nervosos. Meu objetivo neste artigo é fornecer alguns vislumbres de como a autocostrução surgiu e circulou como um habitus e um habitat - uma infraestrutura e um órgão sensorial - para uma experiência de convivência “com” e “em” Madri.
Como eu o utilizo aqui, o conceito de autoconstrução passa por uma importante migração conceitual: a partir de seu uso original na designação de habitações autoconstruídas no Sul global (autoconstrução como objeto), para usos mais recentes que sinalizam para a inventividade e desenvoltura de iniciativas auto-organizadas (autoconstrução como processo), à minha própria proposta de pensar a autoconstrução como um método e plataforma de investigação e exploração. Ao justificar essa transição, estabeleci um diálogo com a literatura comparada sobre autoconstrução urbana. Estou consciente de que esta é uma estratégia arriscada. A literatura sobre autoconstrução no Sul global está frequentemente distante dos projetos comunitários de autonomia política e experimentação democrática que relatei. Existe uma grande diferença entre as geografias culturais e as economias políticas das periferias das cidades do Sul e os próprios vetores de periferialização de Madri. Contudo, acredito que a comparação é valiosa pelo o quê ela pode nos ensinar sobre o status do método etnográfico hoje, em particular sobre as consequências do seu coabitar, junto a outros métodos, em mundos complexos de descrições parciais e interdependentes. A literatura sobre autoconstrução provou estar especialmente atenta às formas perspicazes e engenhosas através das quais as pessoas fornecem para elas mesmas ambientes de desejo e antecipação, ação e existência. Neste sentido, dotou-nos com uma certa sensibilidade para desvelar como as navegações urbanas das pessoas funcionam simultaneamente como métodos de questionamento e experimentação, abrindo novas perspectivas sobre como a cidade constrói automaticamente seus próprios mundos teóricos.
Este interesse na autoconstrução mútua e recursiva da cidade e da teoria é minha proposição central. Estou interessado na autoconstrução como uma metáfora material para tornar visível como a própria teoria é autoconstruída. Neste contexto, gostaria de trazer algumas reflexões recentes sobre a concepção da teoria em torno de métodos de invenção (LURY; WAKEFORD, 2012), prototipagem (CORSÍN JIMÉNEZ, 2014b) e experimentos em trabalhos de conceito colaborativo (MARCUS, 2014) para intervir em alguns debates de longa data sobre a natureza da questão urbana - bem como para introduzir algumas perguntas mais amplas sobre os recursos e locais metodológicos da descoberta antropológica.
Apesar de algumas propostas notáveis e inovadoras para tornar explícita “a estranha linguagem da urbanização” (BOUCHER et al., 2008), permanece o fato de que a teoria urbana mais recente fez pouco para explicar seus próprios momentos de articulação. A natureza do empírico permanece em grande parte não problematizada, e é apenas a adequação deste ou daquele corpo teórico que tem sido colocada em discussão. Deste modo, até hoje, investigações sobre como o urbano é tornado visível como método e local de campo permanecem conspicuamente ausentes da literatura. A relação entre o campo enquanto local empírico e o campo enquanto projeto teórico permanece largamente suspensa e inexplorada. Nós viemos a naturalizar os relatos acadêmicos como falando sobre um lugar (geográfico ou epistêmico), dando pouca ou nenhuma atenção para como tais lugares devem ser desenhados em conjunto como problemas empíricos e pragmáticos. Os problemas empíricos deste ou daquele local encobrem a operação de problematização como método.
Minha proposta de usar heuristicamente o conceito de autoconstrução centra-se em seu específico embricamento (recursivo) de método e teoria. A autoconstrução oferece uma imagem para entender como os problemas empíricos são autoconstruídos em teorias situadas e navegações teóricas. Mais frequentemente, estes desenhos teóricos têm como premissa um acompanhamento dinâmico e colaborativo da investigação que recorre a comunidades locais e pesquisadores, múltiplos meios de comunicação e mediadores, trabalhando com e através de uma variedade de gêneros e estéticas de descrição (RABINOW, 2011). Tais pragmáticos e inventivos exercícios em concepção e construção também tornam visível a natureza da cidade como um problema de método. Ou seja, a cidade é um método - de projetos, problematizações e teorias - em constante autoconstrução.4
AUTODESLUMBRAMENTO
Eu devo ter ouvido a história de Don Antonio dúzias de vezes nos últimos três anos. Don Antonio tem seus caminhos. Agora, já com seus setenta anos e aposentado, ele acorda de manhã cedo e gosta de abrir as portas de sua varanda, deixando-as abertas pelo resto do dia. Os ruídos e as brisas da cidade chegam em sua sala de estar, trazendo consigo a alegria e vivacidade do bairro histórico de Madri, localizado na região central da cidade. Ouvem-se os sons de motocicletas passando, de crianças gritando, das desajeitadas manobras dos caminhões descarregando sua carga em frente ao prédio de Don Antonio, no mercado popular de La Cebada. Ocasionalmente os ritmos e entonações de uma performance musical ou de uma peça teatral pedem passagem, entrando na sala de estar de Don Antonio. Em tais casos, no entanto, se o volume for muito alto, ele pega seu telefone celular e chama Manuel, que gentilmente pede aos atores ou aos mixadores de som que se acalmem em sua performance.
Esta é uma história que ouvi Manuel contar várias vezes. Manuel é um membro do coletivo guerrilheiro de arquitetura Zuloark, que foi o primeiro envolvido, junto a associações locais de bairro, artistas, ativistas, lojistas e escolas, na transformação de um abandonado espaço a céu aberto no coração do bairro de La Latina em um projeto comunitário autogerido. Vamos falar, brevemente, um pouco mais sobre a história deste espaço comunitário, conhecido localmente como El Campo de Cebada.
Manuel recontou a história de Don Antonio na frente de públicos múltiplos e variados. Testemunhei ele dramatizá-la diante de centenas de pessoas em um salão de arquitetura na Associação dos Arquitetos de Madri. Também o vi empregar versões maravilhosamente coloridas da anedota em várias reuniões com delegados municipais e políticos. Eu vi ele ensaiar uma versão apaixonada e carismática em uma reunião de ativistas em um centro social squat, e produzir variantes ligeiramente diferentes para palestras em centros culturais e museus. Ele também recontou a história diante das câmeras, para um documentário e, claro, encenou infinitas performances para amigos e colegas. A história também existe impressa, em textos que o Zuloark escreveu para revistas e periódicos de arquitetura, bem como em portfólios de design que o coletivo submeteu a premiações do setor.
Para Manuel, a história de Don Antonio exemplifica como os projetos comunitários populares devem continuamente ajustar e reproblematizar os modelos do método. No caso de El Campo de Cebada, isto se mostra no projeto do coletivo de uma ecologia de práticas que atenda aos interesses e preocupações dos moradores vizinhos, incluindo a sensibilidade particular de Don Antonio para a acústica da vizinhança. Os membros do El Campo costumam dizer que a abordagem deles habita la controversia, isto é, que não se recusa em viver na controvérsia, e que clama, correspondentemente, para o ato de projetar habitats para todo e qualquer problema. Sob esta luz, a história de Don Antonio reitera muitas das narrativas e metáforas que se tornaram estratagemas comuns na literatura clássica sobre autoconstrução: sobre a inventividade, resiliência e desenvoltura das relações urbanas; sobre sua capacidade de operar fora do campo de força de práticas mercadológicas ou estatais padronizadas, ao revelar horizontes de sentimento mútuo e cumplicidade, circuitos de “dar e receber” que consolidam - às vezes erraticamente, às vezes de forma fugaz, mas às vezes também de forma sustentável - espaços de convergência e produtividade.
No entanto, acredito que há uma versão complementar para a história de Don Antonio. Como observado, a história circulou amplamente, em uma variedade de formas de mídia, registros e locais, como uma história sobre métodos, sobre a autoconstrução destes métodos, bem como sobre o método de autoconstrução de forma mais geral. Além disso, esta história é apenas uma das muitas outras histórias e anedotas contadas sobre os experimentos emergentes de autoconstrução em outras partes da cidade (como o projeto de Autobarrios, com o qual abri este artigo). Portanto, de forma impressa e em auditórios, na oratória pública e nas conversas privadas, essas histórias parecem funcionar como veículos e âncoras para uma infraestrutura de sentimento para a cidade. A circulação da autoconstrução como história, como metáfora, e também como método surge como um consequente e distintivo reservatório e repertório de habilidades, sentidos e sensibilidades urbanas. Tomando de empréstimo um termo de AbdouMaliq Simone (2006, p. 359), podemos dizer que a autoconstrução está lenta e gradualmente tomando forma como um “sistema perceptivo” para a cidade, um órgão sensorial que funciona ao mesmo tempo como uma economia de atenção e uma economia de recursos, e que encontra uma ancoragem provisória na cidade como um método para outros métodos.
Porém, se a autoconstrução funciona como um método para outros métodos na cidade, onde fica a etnografia? Como se caracteriza um efeito etnográfico em meio a uma panóplia tão densa de efeitos metodológicos? Deve a etnografia em si mesma ser autoconstruída?
Estas são questões importantes que vão ao coração do projeto antropológico. Como observado acima, elas apontam para as dificuldades que assombram o projeto da etnografia como um campo de investigação: como construímos nossos métodos lado a lado com outras pessoas construindo seus próprios métodos? Não são os nossos métodos (os nossos e os delas) autoconstruídos uns através dos outros?
A literatura sobre autoconstrução urbana provê um lugar particularmente pungente para explorar estas questões porque, como mencionado acima, ela tem sido tradicionalmente esquadrinhada como um reservatório de criatividade e resiliência cultural. A autoconstrução forneceu aos estudiosos uma metáfora aparentemente natural para a criatividade sociocultural, justificando com isso reivindicações subsequentes à inovação analítica e epistêmica. Há uma passagem maravilhosa na célebre reflexão de Marilyn Strathern (1999, p. 6) sobre “o momento etnográfico” que capta esta nuance perspicazmente, observando como nossa capacidade de descrição etnográfica é muitas vezes antecipada por nossas (euro-americanas) expectativas em relação ao que conta como um efeito epistêmico em primeiro lugar. Alguém “poderia se referir a isto como autodeslumbramento”, diz Strathern (1999, p. 20): “Conhecimento envolve criatividade, esforço, produção; adora desvelar criatividade, esforço, produção!”. Os acadêmicos têm a tentação de dispor os produtos da pesquisa em termos de “descoberta e redescoberta”, onde nossa capacidade de revelar algo espelha as “práticas reveladoras” que encontramos no próprio campo (STRATHERN 1999, p. 20). Em outras palavras, podemos dizer que o cuidado com o qual construímos nossas descrições etnográficas visa deslumbrar (surpreender, confundir, mistificar) nossos leitores em termos simétricos a como esse momento de deslumbramento tomou conta de nós e de nossos informantes no encontro etnográfico. No entanto, esta simetria é ela mesma problemática e não deve ser aceita de olhos fechados, pois de outro modo corremos o risco de nos apaixonar, como coloca Strathern, pelas nossas próprias antecipações de consequência. Corremos o risco de autoconstruir o deslumbramento como um efeito epistêmico pelo autodeslumbrar do como a etnografia e a análise constroem uma à outra.
AUTOCONSTRUÇÃO
Em seu agora clássico artigo da Cultural Antropology sobre “auto-construção”5, James Holston (1991) introduziu o conceito como um recurso heurístico para pensar sobre a complexa dinâmica que subjaz os processos de urbanização periférica no Brasil. Estes processos, observou, são dirigidos ao mesmo tempo pelo capital e pelo estado, pois através do processo de construção de suas casas, os habitantes das comunidades periféricas e informais moldam para si mesmos um tipo aparentemente paradoxal de subjetividade política, simultaneamente enquanto detentores de direitos e cidadãos consumidores: a construção de casas torna-se para eles uma arena para a contestação e luta pelo direito formal à propriedade das casas (e à matriz de serviços públicos e infraestrutura onde elas estão localizadas, como saneamento de água, esgoto, etc.). Também se torna um modelo para esboçar e expressar uma ampla gama de desejos de consumo e preferências estéticas, por exemplo, em matéria de decoração de interiores ou de cultura material. A vitalidade da autoconstrução - o desiderato que a casa encarna como um projeto de vida, a vibração e a energia dos compromissos familiares e comunitários que o subscrevem, o espaço da urgência política e das necessidades fundamentais que indexa - protubera na paisagem política da cidade modernista, que de outro modo desmorona e se despedaça. “Autoerigida” e autoconstruída, a “cidade ainda por vir” avança, invadindo, se não desafiando completamente, as paisagens tolas da modernidade. A destruição e autoconstrução da cidade como teoria: poucos conceitos podem dizer tanto com tão pouco.
Embora originalmente utilizada para descrever uma modalidade específica de projetos habitacionais nos países em desenvolvimento (e.g., ARECCHI, 1984; BANCK, 1986), a autoconstrução tornou-se hoje um marco da teoria urbana. Dos projetos urbanos do tipo “faça-você-mesmo” às habitações autoconstruídas, dos projetos arquitetônicos comunitários às infraestruturas urbanas de código aberto, do direito à cidade ao direito à infraestrutura, a autoconstrução tornou-se uma condição sine qua non do repertório descritivo e do vocabulário analítico da cidade informal, se não o seu mais promissor e fértil reservatório conceitual (e.g., IVESON, 2013; MCGUIRK, 2014; EIZENBERG, 2012; PURCELL, 2013; CORSÍN JIMÉNEZ, 2014a). De uma maneira ou outra, a literatura sobre autoconstrução testemunhou o nascimento e o renascimento da cidade, uma e outra vez: como fonte de vitalidade e improvisação; de habilidade, perícia e conhecimento tácito; de acuidade política e valores comunitários; de autonomia e resistência; de resiliência e desenvoltura; de perseverança, desafio e irredutibilidade. A autoconstrução e seus termos correspondentes foram usados para mapear e rastrear múltiplas topologias de transbordamento epistêmico, onde relações técnicas, ambientais e políticas se movimentam fora do radar das práticas mercadológicas e estatais, ou geram insuspeitos e mesmo assim produtivos deslocamentos e reconfigurações entre elas. Eles forneceram uma sensibilidade conceitual para enquadrar os emaranhados confusos de energias materiais, relações afetivas, capacidades políticas e criatividade social que fazem a vida da cidade.
Há uma história geopolítica específica, no entanto, para nosso contemporâneo estado de enamoramento com o informal, o enérgico e o autoconstruído. Em uma recente e importante reflexão sobre a “favela como teoria”, Vyjayanthi Rao (2006) problematizou algumas das suposições epistemológicas que estão na base de como chegamos a entender a condição urbana. “O que”, ela pergunta, “conta como conhecimento do urbano?” (RAO, 2006, p. 225). Ela expõe seu argumento através de um engajamento crítico com o famoso ensaio de Mike Davis (2004) sobre o urbanismo planetário das favelas (veja também DAVIS, 2006). O trabalho de Davis foi criticado por apresentar uma visão apocalíptica e distópica do desenvolvimento urbano, onde a realidade do império, do capital global e do neoliberalismo condenam uma “humanidade excedente”, na formulação arrepiante de Davis (2006, p. 174-98), a um futuro de miséria, doença, crime e desespero. A propósito da autoconstrução, Davis (2006, p. 70-94) dedica um capítulo de seu livro Planeta das favelas para criticar o que ele chama de “ilusões da ajuda mútua” que informaram a abordagem filosófica e programática do Banco Mundial para políticas de habitação a partir da década de 1970. Ele remonta a visão do Banco Mundial às ideias do arquiteto anarquista inglês John Turner que, depois de viver em assentamentos urbanos de Lima de 1957 a 1965, desenvolveu uma compreensão da auto-organização e autonomia comunitárias que levou a vários escritos e propostas defendendo a autoconstrução como uma alternativa de política pública - os chamados programas de loteamento urbanizados projetados para fornecer terra e serviços básicos de infraestrutura que as pessoas ocupariam para desenvolver seus próprios projetos habitacionais (TURNER; FICHTER, 1972; TURNER, 1976). Mas enquanto para Davis (2006, p. 72) este “amálgama de anarquismo e neoliberalismo” fez pouco senão legitimar a retirada do Estado como um provedor de serviços públicos e infraestrutura, o trabalho de Turner foi recuperado como um precursor de um tipo de arquitetura ativista nascida da experiência da informalidade da América Latina que poderia servir de lição global para todos nós: “Se há uma área onde a experiência da América Latina contém uma lição global... é a sua atitude para com a cidade informal. O que queremos dizer por “informal”? A resposta curta é: são as favelas... as quais estão longe de serem caóticas. Elas podem carecer de serviços essenciais, porém operam sob seus próprios sistemas de autoregulação” (MCGUIRK, 2014, p. 25).
A favela latino-americana figura, portanto, como uma metonímia do pragmatismo empreendedor - otimista, extrovertido, mãos a postos - operando como um espaço epistêmico: “formas ativas: sistemas, redes, conexões, infraestrutura - todas estas são mais importantes sem dúvida do que a tola habitação-objeto dos modernistas” (MCGUIRK, 2014, p. 33). De fato, o que atrai a própria Rao para o debate é a maneira pela qual Davis utiliza a favela como um construto teórico cujos eixos geográficos e históricos repousam “sobre a ‘cidade do Sul’ como seu tema principal. Um novo entendimento do global emerge situando os espaços dessas cidades no epicentro de certo apetite catastrófico dos fluxos globais de capital e transformando aqueles espaços em um novo princípio territorial da ordem” (RAO, 2006, p. 227). Em seu lugar, Rao (2006, p. 232) oferece uma configuração teórica alternativa para a favela, onde, em vez de indicativo para medir as zonas de pressão do império e do capital, a “favela se torna uma taquigrafia epistemológica para rastrear as rachaduras... e para localizar as mutações do estado moderno”.
Favela como teoria, favela como pragmatismo: da favela como um subproduto do capital à favela como o autodeslumbramento da teoria?
AUTOPERIFERIAS
A crise financeira de 2008 empurrou a economia espanhola para as esquinas sombrias da periferia europeia. Por volta de 2011, o colapso do mercado imobiliário arrastou para o abismo da precariedade e do desespero as classes médias urbanas e trabalhadoras. Entre 2006 e 2010, a desigualdade de renda cresceu, na Espanha, mais do que em qualquer outra economia desenvolvida (ILO, 2015, p. 23), com os top 20 por cento da sociedade 7,5 vezes mais ricos que o quinto mais pobre (CÁRITAS, 2013, p. 3). Em 2011, o desemprego chegou a 21,4% da população trabalhadora, ou seja, 5 milhões de pessoas, subindo para 42,3% no caso de trabalhadores abaixo dos 25 anos6. Enquanto que, durante 2007 e 2011, a renda dos 10% mais pobres caiu 13% por ano, houve, em comparação, menos de 1,5% de queda para os 10% mais ricos (OECD, 2015, p. 24). Ao mesmo tempo em que o governo direitista do Partido Popular inclinava-se para políticas de austeridade, a taxa de pobreza dobrava para 18%, “com os jovens tomando o lugar dos mais velhos como o grupo com mais risco à pobreza” (OECD, 2015, p. 25).
Em 15 de maio de 2011, acompanhando uma demonstração pública sobre a administração política da crise econômica, um grupo de manifestantes montou um acampamento na histórica praça central de Madri, Puerta del Sol, que, em questões de dias, cresceu numa complexa infraestrutura e em movimento social, transformando a natureza da política municipal da cidade. A imagem do acampamento - robusto, provisório e autoconstruído - circulou pelo mundo e se tornou o emblema do hispânico movimento indignados (ver figuras 4 e 5). O acampamento se organizou como uma “cidade em miniatura”, como as pessoas se regozijavam em dizer. Este proveu temporariamente comida e abrigo para os acampados; havia uma cozinha e um refeitório, uma enfermaria, uma biblioteca, assim como uma infraestrutura open-source de painéis e redes wireless. Os manifestantes se juntaram em diversas formas de assembleias e grupos de trabalho, em temas como políticas de longo prazo ou feminismo, uma comissão de respeito e cuidado, e uma força tarefa dedicada a realizar a curatela e preservar os documentos do movimento. Metodologias brotaram em todos os lugares - seja nas assembleias, nas mediações de conflito, no cultivo da hospitalidade para os estranhos (CORSÍN JIMÉNEZ; ESTALELLA, 2014).
Ao ter feito residência no coração geográfico e político do estado espanhol, desde o primeiro dia o acampamento encarou a possibilidade de seu eventual desmantelamento e, por isso, trabalhou para seu futuro reaparecimento em mais de centenas de assembleias populares por toda a vizinha de Madrid. Sendo assim, quando o acampamento finalmente terminou, um mês depois da ocupação inaugural, ele próprio foi a energia para esta “autoperiferização” - a proliferação de assembleias, centros sociales autogestinados (centros sociais autogestionados), as hortas comunitárias urbanas, e as redes de internet comuns por todo interior da cidade (WALLISER, 2013) - que entrou em cena e manteve o ritmo. As periferias tomaram o palco central e retomaram o trabalho - alimentando a capacidade para - de “própria-periferização”.
Em seus escritos recentes sobre urbanismo subalterno, Ananya Roy (2011, p. 227, 231) tem sugerido que a teoria social corre o risco de estar fetichizando a favela como um vetor epistêmico e topológico, ao notar como a metonímia da favela está virando espécie de reservatório conceitual de onde se justifica falar tanto de “economias auto-organizadas de empreendedorismo” e do “habito dos despossuídos”. A favela, como Roy corretamente observa, tem se tornado um ponto de deslumbramento para a teoria, para a qual ela procura o desenvolvimento de uma heurística da subalternidade mais nuançada e sutil, que, segundo ela, incluiria um apelo a pensar não só como, mas através das zonas de exceção, espaços cinzentos, e processos de informalidade urbana habitando os interstícios dos regimes territoriais, jurídicos e legais/letais do capital e da soberania estatal. Outra dessas noções seria a de periferia, a qual, de acordo com AdbouMaliq Simone (2010), Roy (2011, p. 232) define tanto como “um espaço na criação da e uma forma de criar a teoria”.
Eu tomo o partido de Roy (2011, p. 224) sobre intervir nas epistemologias e nas metodologias dos urban studies. Suas observações sobre o metonímico beco sem saída que o urbanismo da favela nos conduziu é extremamente pertinente e valioso. Deixe-me, porém, atentar para o foco que ela dá para a periferia como uma heurística. Nos dois sentidos que Roy atribui ao termo - isto é, designando tanto um espaço geográfico como epistemológico - eu entendo que a promessa de que a periferia possua para a descrição talvez esteja no fato de que os dois espaços (geográfico e epistêmico) não coincidam inteiramente. A periferia, como eu vejo, é aquilo que segura ambos os espaços descritivos juntos e, simultaneamente, separados. A periferia funciona como uma figura descritiva e epistêmica na medida em que ela pode manter a tensão no seu lugar - tanto é que qualquer um pode imaginar, por exemplo, o que o trabalho da autoperiferização pode implicar7. Por essa razão, eu penso ser importante ser capaz de especificar sob quais condições a periferia como um gênero de descrição que pode descrever a periferia como um processo urbano: como a operação de problematização para a qual a periferia significa um método habita seu próprio local no campo? Qual trabalho se despende para a autoconstrução da periferia (tanto por acadêmicos como residentes) como um método da teoria da cidade?
Estas são as questões, eu gostaria de insistir, que vão para o coração de como a etnografia faz morada em seu campo de trabalho - como ela se desenha a si mesma como um design inventivo e pragmático, como se autoconstrói e, portanto, como se refere a outros métodos de autoconstrução e exploração. Deixe-me ser mais específico.
Em seu uso do termo enquanto um duplo heurístico (ora território geográfico, ora conceito), Roy retoma o trabalho de James Holston e Teresa Caldeira (2008, p. 21), que usa a categoria etnográfica de periferia para descrever os “assentamentos de pessoas que estão além de um perímetro central urbanizado e com serviços legalizados de uma cidade” característicos da urbanização brasileira. Como observado acima, a periferia não designa uma demarcação territorial estável, mas um operador geo-epistêmico mutável: é um vetor dinâmico que indexa as
relações de mútua dependência - uma produção e circulação social do espaço - em que centros e periferias definem-se ao definir o outro por meio de um aparato de dominação [...] compreendendo componentes políticos, legais, sociais, econômicos e infraestruturas cujas interrelações mudam constantemente. Como resultado, periferias como lugar e conceito mudam de localização e sentindo no tempo (HOLSTON; CALDEIRA, 2008, p. 21; grifos colocados).
Holston e Caldeira (2008, p. 21) continuam mostrando como a experiência urbana da periferia desencadeia uma variedade de movimentos sociais baseados em relação de vizinhança e mobilizações populares, cujas reivindicações e demandas ajudaram a “marcar um momento decisivo na constituição de novos conceitos de cidadania” na história do Brasil. Embora os processos por meio dos quais as experiências do que os autores chamam de cidadania insurgente fossem variados e complexos, as reivindicações que os moradores realizavam para a cidade eram muitas vezes baseadas especificamente em e por meio de experiências de autoconstrução: “A cidadania insurgente depende”, nos dizem Holston e Caldeira (2008, p. 22), “de um senso de autoestima vinculado inegavelmente à propriedade e à autoconstrução de casas” . A autoconstrução, portanto, provê um locus material e volitivo para a auto-expressão da cidade como um desiderato afetivo e político.
Em seu trabalho anterior sobre autoconstrução, no entanto, Holston (1991, p. 456) vai ainda além a especificar a “estética da autoconstrução” como animadora e estilizadora de tais expressões de autoestima. De acordo com Holston, a questão estética se torna central para entender os investimentos pessoais e os desafios que as pessoas mobilizam quando projetando suas casas como manifestações externas de si mesmas e como marcadores de suas relações com os outros. Como o autor coloca, casas são “’boas de pensar’ porque canalizam a experiência pessoal num idioma público, a arquitetura [...] este idioma é um cálculo visual de aparência - um estilo particular de fachada, certas decorações, a disposição dos eletrodomésticos, uma finalização ou um material específicos etc. - amplamente inteligível como notações simbólicas sobre si mesmo e sobre a sociedade, sobre passado e futuro” (HOLSTON, 1991, p. 456). Uma dimensão crucial desse cálculo visual, ele observa, relaciona-se com o repertório de designs estéticos e estilos que as pessoas desenham para alcançar “efeitos pretendidos” (HOLSTON, 1991, p. 460). O objetivo principal seria a fruição de um senso de inovação, de demonstrar o domínio sobre um idioma que justificará uma aprovação geral e o reconhecimento da “personalidade” da casa de algum morador (HOLSTON 1991, p. 460). Poder-se-ia dizer mesmo, sou tentado, que esses designs têm a intenção de deslumbrar a vizinhança.
Se deslumbrar é muito procurado, não é pouca a quantidade de esforço que é dispensada também no controle dos efeitos de autodeslumbramento. Como nota Holston, é da maior importância evitar intimidação e, acima de tudo, rechaçar qualquer suspeição de que alguém esteja copiando alguém:
As pessoas geralmente recusam, a ponto de ficarem bastante irritadas, admitir que derivam os designs de suas casas de qualquer outra fonte além de sua inspiração. No entanto, eu os vi trocando projetos de casas, folheando revistas de moda e de vida doméstica, fazendo “viagens a campo” para shoppings e bairros ricos e fazendo observações atenciosas sobre os hábitos e as decorações das classes mais altas apresentadas pelas novelas. Além disso, eles têm de usar os mesmo materiais de construção e bens domésticos para construir posicionamentos significativos no sistema de signos da autoconstrução. O problema é que eles necessitam avidamente evitar copiar os outros - e eles realmente evitam. (HOLSTON, 1991, p. 461)
Isso explica porque, como sublinha Holston (1991, p. 461), “questionar suas fontes seria manchar seu senso de distinção pessoal no qual investiram tão pesadamente”. Isso não é simplesmente, portanto, uma questão sobre o que a autoconstrução realiza ou o que ela representa. Não é uma questão sobre a autoconstrução como objeto (na construção de casas) ou autoconstrução como um processo (de se ajudar, ou se organizar). Em vez disso, o que vemos aqui é como a cidade avança sub-repticiamente, enquanto simultaneamente tateia e agencia um caminho por meio das ondas de informalidade e embuste, de sedução e encanto, glamour e intimidação, produção e predação. A cidade autoconstrói a si mesma como uma economia complexa de desejos e aspirações, um esconde-esconde contraditório entre atração e abandono, desejo e afecção que impedem qualquer formalização definitiva do que a periferia faz para a cidade e como ela funciona. A cidade aparece aqui como “um tipo de sistema perceptivo, um jeito de enxergar” (SIMONE, 2006, p. 359): uma paisagem evanescente cujos contornos - os truques e as trocas da mimeses e a camuflagem, de esplendor e engano - precisamos constantemente aprender a enxergar. Nós podemos pensar a autoconstrução, portanto, como uma forma de auto-heurística para a cidade, um dispositivo que nos ajuda esboçar, e também habitar, as tensões e as elisões que inevitavelmente encontramos entre os momentos de deslumbramento da cidade e nossos momentos de autodeslumbramento com a cidade. A autoconstrução como método.
AUTO-HEURÍSTICA
Moradores do bairro de La Latina relembram a data de 15 de maio de 2011 (a data da ocupação de Puerta del Sol) por uma diferente embora relacionada razão. Naquele dia, um grupo de vizinhos, ativistas da comunidade e artistas tomaram as ruas para ocupar três mil metros quadrados de terra que estava abandonado desde que os planos para um complexo esportivo foram suspensos em virtude da crise econômica.
Os motivos para a ocupação eram comemorativos. Os moradores vizinhos haviam ganhando o direito de administração do espaço após oito meses de negociações com os Departamentos de Participação Cidadã e Receita Interna e com os representantes de bairros e os representantes locais do governo municipal. Os moradores se provaram organizadores rápidos e perspicazes. Em setembro de 2010, o governo autorizou uma ocupação improvisada no contexto de um festival cultural de fim de semana - a Noite Branca, com curadoria de Basurama. Com o fim do evento, e com o fechamento e o abandono do local novamente, alguns moradores “acharam” cópias da chave dos portões do terreno.
O festival foi um sucesso e foi pouca a imaginação necessária para que os moradores entendessem o formidável potencial comunitário do terreno baldio. Eles organizaram uma asamblea (assembleia) que logo entrou em negociações e em ações combinadas com uma variedade de partes interessadas na vizinhança, incluindo duas associações de bairros, escolas locais e comerciantes, centro sociais squats, e uma variedade de coletivos artísticos e contraculturais. Impressionado pela agilidade da mobilização, e sem nenhuma outra alternativa para o local, a municipalidade concordou com um acuerdo de cesion temporal (um acordo temporário de concessão) para o espaço.
Não era uma oportunidade para se desperdiçar. A vizinhança agiu rapidamente, por meio de uma variedade de registros e mídias. Eles montaram uma lista de e-mails, uma conta no Twitter e uma página no Facebook. Eles experimentaram uma variedade de formas organizacionais - uma Assembleia da Vizinhança, uma Comissão de Assuntos Econômicos, e algumas Comissões de Operação - assim como uma autointitulada estrutura de governança híbrida (de curta duração) que incluía representantes do governo municipal e delegados da Assembleia da Vizinhança.
Dentro de semanas, o espaço adquiriu propriedades urbanas estranhas: era uma praça, com três mil metros quadrados no coração da cidade velha de Madri, que tinha repentinamente se transformado em um espacio público de gestión ciudadana, um espaço público administrado por cidadãos. O espaço havia sido salvo pelos moradores, e exibia orgulhosamente a robustez e a urgência dos seus métodos de salvação. E não digo isso desdenhosamente. Muito pelo contrário: El Campo ostentava placas de madeiras e materiais de construção utilizados por coletivos de arquitetura de guerrilha em workshops de urbanismo. Transeuntes, estudantes de arquitetura e vizinhos locais imaginaram, desenharam e fizeram peças de equipamentos urbanos não ortodoxos que depois foram usados em jardinagem comunitária, em feiras de livros e mercados de comida orgânica, em produções teatrais realizadas pelas escolas locais e comícios políticos por sonolentas formações anarquistas. El Campo armazenava pinturas, pinceis, cadeiras, plásticos e resíduos urbanos com os quais as crianças improvisaram playgrounds e cenas de batalha em seu pátio, com os quais cenógrafos traçaram os esboços de impossíveis cidades alegóricas, e entre cujas arqueologias forenses jovens amantes buscaram refúgio da transparência violenta da sociedade de controle. As metodologias de salvamento “liberaram o espaço” (liberar el espacio), como os moradores orgulhosamente observaram, e transformaram de uma vez aquilo em mais e menos espaço público.
Em qualquer manhã de domingo, juntamente com o mercado de pulgas bem próximo, centenas de milhares de pessoas passam por El campo. A atmosfera é festiva e alegre, libidinosa e reminiscente de um bazar, um espaço público exuberante. É, porém, também menos que um espaço público, porque o Estado está ausente, uma auctoritas in absentia. Como resultado, El Campo sobrecarregou a paciência, os engenhos e as capacidades intelectuais de seus cidadãos-administradores. As escassas vinte pessoas que assiduamente participavam e realizavam a assembleia semanal estavam oprimidas e sobrecarregadas. As obrigações diárias de manutenção (abertura dos portões, varredura e organização do espaço, a expulsão das pessoas quando da hora do fechamento do espaço), as correspondências de e-mail e a manutenção da presença de uma vívida comunidade digital - para tudo isso, parecia nunca haver pessoas o bastante. Em algumas ocasiões, o espaço ficou fechado já que os detentores das chaves não estavam presentes. Alguns eventos foram atrasados ou cancelados, pessoas ficaram bravas e discussões incendiaram as assembleias, que, por seu turno, viram membros abandonarem como outros chegarem. Três mil metros quadrados de espaço ao céu aberto pode tirar o fôlego de qualquer pessoa.
Que El Campo de algum modo falhou enquanto um espaço representacional, enquanto um espaço de participação política e autonomia, não evitou que acabasse funcionando de diversas outras formas, pois se manteve como um local onde tudo podia acontecer. Embora, talvez, incapaz de se firmar como um local urbano, de encontrar uma linguagem para si mesmo enquanto forma urbana, El Campo, por outro lado, foi bem sucedido em fornecer uma plataforma para uma “intensiva urbanização de perspectivas”8, enquanto um método, se eu posso assim colocar, para a autoperiferização da cidade.
Por exemplo, El Campo hospedou inúmeros debates e fóruns sobre o papel da academia e sua relação com a cidade, incluindo a organização de uma Universidade Popular que está agora em seu terceiro ano. Um de seus projetos mais interessantes, nesse aspecto, foi o coletivo educacional #edumeet. A iniciativa foi realizada pela primeira vez em Setembro de 2011, após uma troca sobre assuntos educacionais e sobre a cidade no Twitter. O encontro reuniu um grupo de quase vinte pessoas, incluindo alguns da comunidade original de ativistas e arquitetos que ocuparam o espaço meses antes, assim como novatos em El Campo, tais como professores, designers, e consultores de tecnologia da informação. O grupo se reuniu toda noite da segunda quinta-feira do mês, em reuniões organizadas via Twitter, embora sem nenhuma expectativa de comparecimento.
As conversas em #edumeet gravitavam sobre a preocupação com a natureza do aprendizado nas cidades contemporâneas, e, em particular, com as condições - os ambientes construídos, os ritmos do capital, as formas de experiência sociais e técnicas - que possibilitavam ou desencorajavam o despertar das capacidades e acessibilidades pedagógicas da cidade. As pessoas geralmente expressavam preocupações com a fragilidade de encontros realizados fora de um horário comercial, a céu aberto, e não raramente perambulando na hospitalidade noturna dos bares. Era uma hospitalidade estranha para qual os encontros pareciam estar se ajuntando. No entanto, foi também essa transitoriedade e essa selvageria urbana que mais cativou as pessoas, enquanto navegavam e auscultavam as diversas paisagens - as penumbras e as promessas do aprendizado compartilhado. Nas reuniões, os participantes vocalizavam suas insatisfações para com a educação formal e, não menos importante, com o papel desempenhado pela universidade na padronização e no torpor da experiência urbana. Houve consideráveis discussões, por exemplo, sobre qual tipo de postura que as pesquisas deveriam ter quando relacionadas à cidade: O que significa investigar a cidade? Quais tipos de relação e corpos que o ato de pesquisar deduz vis-à-vis nas inscrições estéticas de artistas, nos acompanhamentos enriquecedores dos professores, ou na curiosidade literária dos jornalistas? Como a pesquisa se acomoda no tecido urbano, qual tipo de rastros deixa e quais memórias e despertares ela provoca? Algumas pessoas voltavam-se para mim em meu papel de etnógrafo com essas e outras questões semelhantes, curiosos por entender como etnografia moldava-se a si mesma na presença da cidade, como ela construía um espaço de questionamento por entre as vicissitudes e os tumultos de um mundo em crise. Onde e como, eles queriam saber, a etnografia se encaixava nessa nascente embora precária infraestrutura de sentimento?
Estas eram as questões urgentes para muitos dos participantes, alguns dos quais se sentiam compelidos a dar testemunhos, para “tornar visível” (hacer visible) que estas questões estavam sendo feitas, que eles estavam tomando posições: de fato, aquilo lá era um lugar específico para eles, ou, pelo menos, arranjos e possibilidades específicas. Por exemplo, tornou-se uma prática estabelecida entre os participantes reportar as discussões ao vivo no Twitter, incorporando desenhos e fotografias do grupo, trechos de notas, imagens do ambiente em volta da reunião e coisas assim. Eles também muitas vezes escreviam as discussões da noite em posts de blogs ou produziam sumários para fóruns online de arquitetura e urbanismo; alguns mesmo se aventuravam em incursões teóricas em domínios discursivos nos chamados urbanismos “pessoa-para-pessoa” ou “faça-você-mesmo”. Esses arranjos sinalizam distribuições específicas de presença e ação, de corpos-no-espaço e corpos-através-do-espaço, direções e ondas de movimentos, excitação, expectativas e recompensas. Eles implantaram sistemas sumários e métodos para intuir e rastrear, para conhecer e reconhecer, para testemunhar e aprender. “A cidade”, as pessoas sibilavam entre si com olhos brilhantes, “emerge”.
Com o passar do tempo, #edumeet se tornou uma referência para discussões sobre cultura livre e a cidade. Em 2012, a Arquitetura Viva, a publicação sobre arquitetura mais prestigiada da Espanha, publicou um número especial sobre os coletivos arquiteturais que estava emergindo, neles inclusos uma citação sobre #edumeet. A citação foi produzida pelos próprios seguidores do Twitter da #edumeet:
#edumeet / ambientes de aprendizagem, autônomos e temporários / pessoas que conversam sobre educação na La Cebada toda segunda quinta-feira / (...) espaço afetivo em torno da aprendizagem / [...] uma #hashtag que não pertence a ninguém / pode mesmo estar acontecendo agora sem que nenhum de nós saiba / (...) desaprendendo por conhecer pessoas que não compartilham os mesmo interesses / todo tweet novo é uma nova renderização da #edumeet (EDUMEET, 2012, 26).
Há um outro sentido no qual o testemunho e o aprendizado se tornam operadores importantes na organização da experiência em El Campo. Desde que o espaço foi liberado em fevereiro de 2011, Basurama e Zuloark vêm organizando oficinas de urbanismo artesanal no local, onde estudantes de arquitetura, transeuntes e vizinhos são convidados a projetar e construir peças de urbanismo para a cidade (ver figura 8). Como os arquitetos gostam de dizer, “o urbanismo é brico-urbanismo, se faz com as mãos” [el urbanismo es brico-urbanismo, se hace con las manos]”. Uma dimensão pedagógica central dessas oficinas é que todos os projetos e desenhos são documentados seguindo o que os arquitetos descrevem como uma “filosofia de código aberto (open-source philosophy)”. Isto exige que os participantes não só façam notas técnicas ou diagramas para instrução para os objetos e instalações criadas, mas que também façam explicações acerca dos tipos de materiais usados, sua acessibilidade, qual é e onde fica sua fonte e origem, e coisas assim. A documentação inclui fotos, diagramas, vídeos e renderizações 3D, que são então disponibilizadas online, na esperança de que eles possam se tornar métodos ou “protótipos”, como os membros da Zuloark gostam de dizer, para as investigações em curso da cidade como um ambiente de código aberto. Alguns desses protótipos vão viajar para outras partes da cidade, como quando um protótipo de um banco urbano é desmontado e depois usado na construção de canteiros para jardins ou usados em playgrounds de uma escola local em oficinas de autoconstrução com estudantes. A viagem desses vários objetos emaranham a cidade e uma espessa textura de relações sociais e materiais, da qual as pessoas começaram a falar enquanto metodologias para hacer ciudad, métodos para descobrir as capacidades da cidade.
Entretanto, a documentação que os participantes produzem nessas oficinas são erráticas e inconsistentes. Alguns apreciam a oportunidade de documentar exaustivamente seus trabalhos, e podem até mesmo realizar entrevistas com vizinhos locais numa tentativa de dar substância para um projeto ou uma escolha estética, enquanto outros se resolvem com pouco mais do que um par de fotografias e desenhos. Tais disparidades preocuparam os coletivos de arquitetura. Eu tive longas conversas com Manuel sobre a urbanidade desses desenhos e desses objetos, dado que se pode dificilmente falar deles como se tivessem qualquer tipo de padrão mínimo. Em uma ocasião, Manuel examinou mais profundamente do que antes sobre a específica inflexão que os projetos de código aberto trouxeram para a relação entre conhecimento e reconhecimento, entre aprendizado e testemunho em assuntos urbanos: “A questão é quando o município fala em ‘projeto participativo’, eles estão pensando em incorporar vozes representativas nas infraestruturas e nos padrões, como, por exemplo, nos projetos de parques infantis ou equipamentos urbanos para praças e parques. Nós, por outro lado, pensamos na pedagogia e na aprendizagem: como projetar espaços e infraestruturas para que as comunidades possam aprender uns com os outros”. Ele continua: “Então quando dizemos que El Campo é uma infraestructura para la ciudad, uma infraestrutura para a cidade, não queremos apenas dizer que ela fornece espaço ou materiais para a comunidade realizar atividades antes inimagináveis. Pelo contrário, são os processos de aprendizado que permitem e colocam em circulação que nos interessa. É a economia circulante de aprendizado que é a infraestrutura: a autoconstrução da cidade enquanto uma infraestrutura de aprendizagem”. Aurora, outro membro do Zuloark, aponta: “Onde quer que você olhe, de jardins urbanos comunitários às assembleias do bairro de 15M, há uma efervescência explícita e uma consciência sobre os aprendizados que estão implantados na cidade [los aprendizajes que se despliegan por la cuidad]”. Porém, acrescenta ela, “também se sente que muito passa despercebido, que não temos um espaço no qual possamos tornar conhecidos todos esses processos de aprendizados - o que significa um aprendizado urbano? Que tipo de aprendizado é a cidade?” (cf. MCFARLANE, 2011)9.
CONCLUSÃO
A autoconstrução tem uma longa tradição nos estudos urbanos e na antropologia. Em 1984, Alberto Arecchi sublinhou a importância da autoconstrução como um sistema empírico de resoluções de problemas nas cidades africanas, embora ele tenha alertado aos leitores os riscos de invocar a autoconstrução como um tropo neocolonial e romantizado de autoempoderamento: “Onde a autoconstrução é um sintoma tradicional de pobreza, onde os governos novos são ansiosos para modernizar, tornar as favelas e as cabanas tradicionais uma coisa do passado, corre-se o risco de soar neocolonialista ao se propor as vantagens da autoconstrução” (ARECCHI, 1984, p. 575-76). O fascínio e os perigos da autoconstrução permaneceram dentro da teoria urbana desde então. A metonímia da favela, na descrição de Ananya Roy, continua a ser um poderoso marcador para os relatos distópicos e inventivos do urbano: para o retrógrado, o resiliente e o engenhoso.
Inspirado por estudos recentes que buscam na periferia, no informal e no subalterno novos sistemas perceptivos para pensar (com) a cidade, neste artigo, eu proponho usar a autoconstrução como uma dupla heurística de método e teoria para a condição urbana. “Em vez de a cidade ser de alguma forma lida por meio de esquemas particulares de poder”, Morten Nielsen (2011, p. 352) escreveu em seu estudo sobre a autoconstrução em Maputo, Moçambique, as lentes da governamentalidade inversa (como ele inteligentemente descreve como os projetos de habitações autoconstruídas) oferecem a perspectiva de que “a cidade consequentemente lê a si própria”. Do mesmo modo, eu tentei mostrar como a autoconstrução pode funcionar como uma auto-heurística, não apenas para a teoria urbana, mas também para a teoria antropológica, em um plano maior. Procurei demonstrar diversos casos de desafios e dificuldades enfrentadas por uma variedade de coletivos de arquitetura contraculturais e de guerrilha em Madrid na tentativa de recuperar um terreno abandonado no coração da cidade. O trabalho de autoconstrução do espaço, de fornecer tanto uma ecologia material como social para si, também se transformou num método para descrever a liberação política e epistêmica do espaço. Os ocupantes de El Campo experimentaram várias tecnologias e gêneros para registrar obrigações e requisitos, assim como as aspirações e expectativas que depositaram no espaço como um lugar de autonomia, aprendizagem e mútuo testemunho. As suas autoconstruções, portanto, funcionaram como um método de descrição e um projeto para teoria, da cidade que eles têm em mãos e da cidade que eles gostariam de construir: uma cidade específica e uma cidade-em-abstrato. Pretendo terminar, então, com algumas reflexões sobre o lugar que a etnografia ocupa em meio a panóplia de métodos que habitam, intermediam e suspendem o modo como a cidade-específica e a cidade-em-abstrato se relacionam.
Poucas distinções têm atraído tantos escrutínios e críticas engajadas e exaustivas como aquele entre as qualidades específicas e abstratas do raciocínio conceitual. Nada menos do que O Pensamento Selvagem abre com uma investigação sobre a espúria diferenciação entre o pensamento específico e abstrato quando aplicado, respectivamente, ao raciocínio primitivo e científico (LÉVI-STRAUSS, 1966, p. 1-9). Como bem conhecido, Claude Lévi-Strauss sugeriu que o pensamento selvagem é alimentado pela bricolagem, uma operação de inventividade que se baseia num conjunto heterogêneo, embora limitado de ferramentas e materiais para estabelecer novos arranjos com os quais navega e opera no mundo. A operação de bricolagem exemplificou, para Lévi-Strauss, “uma ciência do concreto”, onde as qualidades abstratas ou específicas do manejo conceitual são substituídas por um método de potencialidades e de pragmáticas empíricas.
A imagem do bricoleur lembra o método de brico-urbanismo que os coletivos de arquitetura de guerrilha destacam como a característica maior de suas práticas em Madrid. No entanto, se para Lévi-Strauss (1966, p. 18) a bricolagem realiza uma operação que se encontra “a meio caminho entre percepções e conceitos”, tem sido o meu propósito neste artigo mostrar como, no contexto do urbanismo de guerrilha, o método da bricolagem é ele mesmo autoconstruído em uma operação que recursivamente problematiza o próprio status da cidade como método. Assim, quando as pessoas invocaram os fantasmas da crise econômica na cidade em miniatura de Puerta del Sol ou quando especularam sobre a aliança oligárquica entre interesses imobiliários e políticos corruptos que assombravam o futuro de El Campo, eles estavam invocando uma imagem da cidade que se fez sentir, ao mesmo tempo, como uma presença específica e genérica em suas vidas. O genérico e o específico aparecem entrelaçados e confundidos, e a experiência de navegar e se mover entre eles é traduzido como uma experiência do método, de compartilhamento, de movendo-se em direção a, de mobilizando-se para, de imersão, de sistematização - por exemplo, por meio do uso de linguagens e interfaces específicas para descrição, arquivamento e tecnologias documentárias, ou sistemas e infraestruturas de aprendizagem. Podemos mesmo dizer que a cidade aparece como “uma figura vista duas vezes” (RILES, 2001, p. 91) - um objeto ao mesmo tempo específico e abstrato - embora só assim o seja enquanto em movimento como um método de autoconstrução10.
A cidade como um método afeta também a etnografia, pois ela fica entremeada nas recursões ora específicas, ora genéricas, com outros métodos e outros sistemas de problematização. Como discernir, portanto, como é um efeito etnográfico atualmente? O próprio envolvimento da etnografia nesse deslumbramento de recursos, como observei, é geralmente percebido, apropriadamente, como um momento de autodeslumbramento, quando nossos métodos nos dão a volta maliciosamente em sua presumida eficácia. Quando a cidade que está em jogo, os perigos do autodeslumbramento surgem nos rastros da informalidade e da periferia: as descobertas da etnografia reveladas na informalidade da descoberta. E se, porém, se for o “auto” em vez do “deslumbramento” a quem o etnógrafo deve procurar - nos seus momentos de própria construção ao invés de seu momento de autorrevelação? Isto não é diferente do que os informantes de James Holston fizeram quando se concentraram na cultura de distinção e personalidade investida em cada casa, enquanto mantinham olhos nos perigos que a cópia representava para cada projeto. Muito literalmente, eles pareciam estarem autoconstruindo seu próprio autodeslumbramento. Neste contexto, como observei acima, a autoconstrução não funciona como um objeto (habitação) nem como um processo (auto-organização), mas como um método para a cidade. Para alguns acadêmicos, isso ensaia e convida para reformulações do problema da epistemologia do urbano - as categorias e os conceitos com os quais se pode apreender a cidade. Em vez de persistir com esse problema, no entanto, gostaria de nos convidar a considerar e explorar os métodos, projetos e “trajetórias de aprendizagem” (PIGNARRE; STENGERS, 2011, p. 44) por meio dos quais a cidade e suas histórias se autoconstroem mutuamente.
AGRADECIMENTOS
Quando eu retornei para Madrid em 2009, depois de 17 anos de cidade, a cidade com a qual me deparei e tive que conhecer era muito diferente da cidade em que lembrava ter crescido. Durantes estes últimos oito anos, eu tive muita sorte de me encontrar em companhia de um grupo de pessoas cuja capacidade de redescobrir a cada esquina da cidade um espaço de maravilhas, surpresas e possibilidades é inabalável, assim como é também a sua capacidade de levantar toda vez que caem, o que, infelizmente, acontece mais do que poucas vezes em tempos de despertar do neoliberalismo austericida que nos assola. Este texto seria, portanto, simplesmente inimaginável sem a inspiração e o acompanhamento que recebi deles. Em particular, eu gostaria de expressar minhas mais profundas simpatias e gratidão a Juan López-Aranguren Blázquez, Manuel Polanco Pérez-Llantada, Rubén Lorenzo Montero e Alberto Naclares; Manuel Palacio e Aurora Adalid (Zuloark); Diego Peris (Todo por las Praxis); Jacobo García Fouz e Jorgen Martín (El Campo de Cebada). Tomás Sánchez Criado leu o primeiro rascunho desse ensaio, e seus comentários e sugestões proveram a tão necessária direção e finesse. Com a lucidez e perspicácia característica, Morten Nielsen ficou envolvido com um rascunho inicial do texto e me convidou a repensar as escalas, a estrutura e as temporalidades dos argumentos que eram, naquele período, dificilmente recursivos. Marilyn Strathern deslumbrou o texto com sua costumeira generosidade enquanto me tranquilizava de haver mesmo espaço para autodeslumbramento em nossa linguagens de descrição da cidade. Gostaria também de expressar meu apreço pelo coletivo editorial da Cultural Anthropology pelo encorajamento crítico e pelo apoio por todo o processo editorial. O texto final se beneficiou enormemente das generosas e atentas leituras dos editores e dos revisores. E se deixo para o final minha menção a Adolfo Estalella, é apenas em reconhecimento ao papel magistral na autoconstrução metodológica e intelectual de nossa jornada etnográfica por Madri durantes todos esses anos.
Texto originalmente publicado no periódico Cultural Anthropology, Vol 32, pp. 450-478. O link para acesso ao artigo original é o que segue https://culanth.org/articles/923-auto-construction-redux-the-city-as-method>. Acesso em: 03 nov 2018. No texto original encontram-se todas as figuras que, por razões editoriais, foram omitidas na presente tradução.
A taxa de desemprego em San Cristóbal é de 17,85%, a mais alta de Madri. Menos que metade da população do bairro tem alguma educação formal, com apenas 4,8% tendo completado o ensino superior. A renda média em 2015 alcançou os € 15.594.
Aqui, eu me inspiro na bem conhecida descrição de Raymond Williams (1961) dos vetores culturais - as estruturas de sentimento - moldando a dinâmica de classes, mas também na recente reapropriação do termo por AbdouMaliq Simone (2014, p. 84) para descrever as “maiorias urbanas” que se juntam e tomam forma como uma “densificação de técnicas. . . cálculos, impulsos, telas, superfícies. . . lágrimas” , de tal forma que “as coisas tomam seus rumos tendo influenciado umas às outras.”
Neste aspecto, a autoconstrução nos ajuda a nos afastar das questões de representação na teoria urbana (ver também THRIFT, 2008), não apenas chamando a atenção para os vetores de afeto, desejo ou vitalidade que atravessam a vida da cidade (GANDOLFO, 2009; SIMONE, 2010), nem tão só focando nas peças complexas, heterogêneas e difusas que constantemente compõem e recompõem a condição urbana (FARÍAS; BENDER, 2010; MCFARLANE, 2011), mas, sobretudo prestando atenção às ecologias da prática através da qual a cidade é autoconstruída como método de investigação e exploração.
Eu hifenizo este termo, embora estudiosos como Holston não o façam, para destacar sua lógica recursiva: uma linguagem da cidade que faz o dever duplo enquanto linguagem para a cidade.
O desemprego continuaria crescendo até os 26.09 %, ou 6 milhões de pessoas, em 2013.
Note-se com a periferia é feita para funcionar, neste contexto, como uma figura vista duas vezes: ora território, ora conceito. Annelise Riles (2001) usa essa frase para descrever a complexa heurística da era da rede, onde formas sociais e analíticas muitas vezes se substituem. Significantemente, Strathern (1999, p. 262) usa essa imagem para caracterizar o momento etnográfico, no qual “seja observação ou análise, imersão ou movimento, podem parecer ocupar todo o campo de atenção. O que faz o momento etnográfico é a maneira pela qual essas atividades são apreendidas enquanto ocupando o mesmo espaço (conceitual)”. Mais adiante no ensaio, eu argumento que é também necessário examinar como os espaços (conceituais) são projetados e autoconstruídos.
Eu devo essa frase a um dos anônimos revisores do artigo.
A última questão de Aurora, no original, foi “que significa aprender cuidad?” Aprender ciudad e hacer ciudade, apreendendo e realizando a cityness, tornaram-se dois dos maiores idiomas populares por entre os projetos comunitários de base.
Na recursão como um método em movimento, ver HOLBRAAD 2012.
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