A partir do documento-base de formulação do Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo (Sinase), da legislação pertinente e dos discursos de atores estatais, é possível caracterizar o Sinase por seus principais enunciados. Segundo estes, relativamente ao modelo de bem-estar do menor, o novo dispositivo é marcado pela intersetorialização, interdisciplinarização e parametrização ética do atendimento. A soma desses enunciados resultou em um discurso de
From the base document of the formulation of the National System of Socioeducational Care (SINASE), relevant legislation and speeches of state actors, it is possible to characterize Sinase from its specific emphases: intersectorialization, interdisciplinarization, and ethical parameterization of care. Their sum leads to an educationalization of the right to punish. This article proposes an analysis of this process in its constitution and its effects.
Em 2012 foi promulgada a Lei nº 12.594 que instituiu o Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo (Sinase), destinado à regulação da distribuição e execução das medidas socioeducativas dispensadas a adolescentes infratores. Essa instituição veio cumprir exigências já previstas na Lei nº 8.069/1990, o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), e substituir o modelo então vigente, correspondente à Política Nacional de Bem Estar do Menor (PNBEM) implementada pela antiga Fundação Nacional de Bem Estar do Menor (Funabem). Essa instituição criada pelo regime militar sob a Lei nº 4.513/1964 já atendia, sob o discurso oficial, à necessidade de refazer as tecnologias de controle social de crianças e adolescentes desviantes sobre bases distintas daquelas que vigoravam no Serviço de Assistência ao Menor (SAM)
Tomando “discurso” como um conjunto de enunciados com pretensão de verdade (
Para isso convém lembrar que a emergência do Sinase se dá em um momento de forte contestação e crítica ao modelo de bem-estar do menor. Conforme verificado em fontes documentais, os construtores
O objetivo deste artigo, contudo, não é propor uma comparação entre os modelos. O sistema da Fundação Nacional de Bem Estar do Menor (Funabem) importa apenas na medida em que os próprios agentes construtores do Sinase se referem, explicitamente ou não, a ele; afinal, como já dito, é em crítica e promessa de superação do “velho” sistema que o Sinase é instituído. A comparação não é um objetivo do texto, mas um dado do campo, um recurso lógico que estruturou os discursos analisados. De igual modo, não se pretende aqui realizar uma análise institucionalista da emergência do sistema ou da formação de uma agenda governamental específica, mas reconstituí-la historicamente em linhas gerais para situar os discursos no tempo.
Seguiremos em apresentação e análise dos discursos, colhidos via análise documental de várias fontes: entrevistas, notícias, anais de conferências, resoluções do Conselho Nacional dos Direitos de Crianças e Adolescentes (Conanda) e as próprias leis pertinentes.
Com o aporte do Modelo de Múltiplos Fluxos, desenvolvido por John
Muitas vezes, um problema não chama a atenção apenas por meio de indicadores, mas por causa de eventos de grande magnitude, como crises, desastres ou símbolos que concentram a atenção num determinado assunto. Esses eventos, no entanto, raramente são capazes de elevar um assunto à agenda, e geralmente atuam no sentido de reforçar a percepção preexistente de um problema (
Os casos e eventos importam porque fornecem imagens para a composição de um problema. Consideremos que o país atravessou os anos 1990 com altas taxas de homicídio e a recorrência de episódios como o Massacre do Carandiru, o Massacre da Candelária, o caso da Favela Naval e nos anos 2000 nada menos do que a crise dos “crimes de maio” em 2006, só para citar alguns. Estes eventos sustentaram amplo debate público sobre o sistema carcerário, violência urbana e a própria condição cidadã das vítimas. Pois é nesse conjunto que se inscreve a crise aguda das unidades de internação de adolescentes infratores, particularmente da Fundação Estadual de Bem Estar do Menor de São Paulo (FEBEM/SP), com rebeliões frequentes e denúncias de graves violações de direitos humanos. Neste caso foram as rebeliões, em especial, que garantiram a inscrição das unidades da FEBEM como tema no espaço e debate públicos, num amplo painel de problemas conexos, mutuamente referidos: a marginalidade, a exclusão social, a insegurança pública, a violência urbana, entre outras urgências.
A abordagem pública desse problema, como na maioria dos casos, viabilizou-se pela participação dos canais da grande imprensa. Aqui adotamos o jornal
Dos anos 1990 aos anos 2000, notícias sobre rebeliões
Na década de 1990, o desenvolvimento das rebeliões noticiadas
A série dos anos 2000
A onda crescente de rebeliões noticiadas na passagem entre as décadas - e dentro do quadro de “crise da segurança” que pautou o debate público da época - pode ter reforçado a percepção coletiva de agravamento do problema e urgência de soluções.
Mas
Ainda há que se notar a agência de empreendedores políticos que atuaram para disponibilizar soluções, filtrá-las e alinhar as janelas políticas criadas, fazendo prevalecer certas noções de direitos e exercendo pressão política para a implementação do novo sistema. Listam-se aí entre os tais empreendedores: operadores do direito, gestores públicos, organizações não-governamentais de cunho socioassistencial e de
Esses empreendedores atuaram compassadamente no acúmulo de críticas às instituições vigentes. A primeira resolução de regulamentação da execução das medidas socioeducativas foi a de número 46, expedida pelo CONANDA em 29 de outubro de 1996, determinando que o ECA fosse respeitado. A resolução era referente à superlotação das unidades, em função do que se resolve limitar a quarenta, o número de internos por unidade, bem como reafirmar o caráter pedagógico da medida. Em 1999, ano de pico de rebeliões noticiadas, Cláudio Augusto Vieira - posteriormente coordenador executivo do SINASE - exclamava: “nós dizemos ‘não’ às FEBEM’s e ‘não’ ao sistema prisional restritivo e abusivo ao qual estão submetidos os nossos adolescentes, ainda nos dias de hoje” (
Nós vimos aí os episódios das unidades da FEBEM de São Paulo e em outras instituições congêneres, que são heranças de um período de assistencialismo convencional e repressivo. Mas legalmente nós avançamos e temos o dever de enterrar de vez essas instituições. (
Em 2003 - ano de maior ocorrência de rebeliões noticiadas nas unidades de internação da FEBEM nos anos 2000, 144 ao todo
E falas como a de Jussara, militante do MNMMR: “A crise do CAJE
Na 6ª Conferência Nacional (2005) ao menos três moções dos participantes criticavam diretamente as autoridades e reivindicavam a extinção do modelo das FEBEM’s. Na mesma edição, em conferência magna, o professor Dr. Dalmo Dallari dizia ao plenário: “o Brasil foi condenado pela Organização dos Estados Americanos, pela OEA, por causa das rebeliões que estão acontecendo na FEBEM de São Paulo. É vergonhoso isso que acontece. Essas rebeliões se repetem” (
Além da crise e crítica ampla e comum às FEBEM’s, há outro fator para que o SINASE tenha sido oficialmente apresentado em 2006, embora a discussão sobre as medidas socioeducativas se desenvolva desde os anos 1990: primeiramente o momento político instaurado pela composição de um novo governo, então dirigido por um partido político historicamente vinculado aos movimentos pró-direitos humanos. Esse fato desdobrou-se em um ambiente favorável à revisão de prioridades de agenda e um melhor insulamento burocrático da pasta dos direitos humanos. Aliás, o SINASE situa-se numa onda mais ampla de políticas e planos setoriais
Nesse devir, a pressão que vem “de baixo”, de organizações não-governamentais (ONG’s), militantes e conselheiros tutelares, encontra correspondência nas intuições de agentes do sistema judiciário como promotores, juízes e de atores do próprio governo federal. Desse modo, diante de um problema crescentemente reconhecido e em um ambiente propício, as comunidades políticas envolvidas adensaram discursos comuns, disponibilizando referências de solução plausíveis - os três fluxos, problemas, soluções e política, convergiram na viabilização da mudança na agenda (
Uma constelação discursiva complexa e agudamente crítica ao modelo de “bem-estar” do menor emerge deste processo de sensibilização e lutas garantistas. A partir do documento-base, da legislação pertinente e dos discursos de atores estatais, é possível listar três ênfases discursivas na emergência do Sinase, enunciadas com o objetivo de marcar distinções do “novo” sistema em relação sistema das Febem’s: teria havido nessa passagem entre os modelos, uma intersetorialização, interdisciplinarização e parametrização ética do atendimento socioeducativo. Sua soma, dada na reestruturação material e simbólica da política socioeducativa, resulta em uma ressignificação da punição aos adolescentes infratores.
É paradigma fundamental do ECA a “Doutrina da Proteção Integral”, segundo a qual crianças e adolescentes devem ser abarcados e protegidos em todas as áreas de suas vidas. Essa noção integra a ênfase desenvolvida pelas comunidades de servidores públicos no assim chamado “trabalho em rede” como modelo de distribuição intersetorial das políticas sociais às famílias pobres. Para
É dever da família, da comunidade, da sociedade em geral e do poder público assegurar, com absoluta prioridade, a efetivação dos direitos referentes à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao esporte, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária (
Essa ênfase garantista na proteção integral também se refere aos adolescentes infratores e constitui sua experiência de internação: acesso à educação, atendimento médico, inclusive de saúde mental, práticas desportivas e assistência social e psicológica para si e suas famílias; todos estes serviços lhes são ofertados. O SINASE baseia-se assim na “integração das políticas públicas” para a composição de um “sistema de garantia de direitos”, o que exige “estímulo à prática da intersetorialidade” (SEDH, 2006, p. 22-23). O princípio em operação é o da “incompletude institucional” (
Os Planos de Atendimento Socioeducativo deverão, obrigatoriamente, prever ações articuladas nas áreas de educação, saúde, assistência social, cultura, capacitação para o trabalho e esporte, para os adolescentes atendidos, em conformidade com os princípios elencados na Lei nº 8.069, de 13 de julho de 1990 (Estatuto da Criança e do Adolescente). (
É fato também que essa apreensão intersetorial do adolescente pelo Estado completa-se em outra dimensão que é a do conjunto de disciplinas sediadas nos próprios serviços públicos, sejam de ajustamento individual (saúde, educação, profissionalização), exigente dos saberes pedagógico, psicológico; ou de ajustamento social (assistência social, esportes, cultura) operado pela combinação de recursos da pedagogia e do serviço social. Disso se deduz a íntima relação entre a intersetorialidade e a interdisciplinariedade. Não à toa a lei que normatiza os programas municipais de atendimento socioeducativo, dispõe que “A composição da equipe técnica do programa de atendimento deverá ser interdisciplinar, compreendendo, no mínimo, profissionais das áreas de saúde, educação e assistência social, de acordo com as normas de referência” (
Desse modo, a intersetorialidade exigida espelha a pluralidade de saberes necessários ao atendimento e constitui-se dessa variedade, sem a qual não se tem os saberes profissionais dos vários setores. Em suma, esse aporte técnico para um controle social que se realiza enquanto distribuição de direitos eufemiza a “experiência precoce de punição” dos adolescentes (
Historicamente, o juiz de menores sempre foi quase que pleniponitente na distribuição de sanções. Entretanto, o arbítrio do discurso jurídico nunca excluiu outros discursos, tais como o médico, por exemplo. O aparato assistencial-repressivo do “menorismo” conjugou o direito à psicologia e ao serviço social de cuidado do menor e das famílias. Justiça e assistência compuseram, ao longo do século XX, um mesmo dispositivo de controle social (
(…) com a consolidação do novo projeto visando a menoridade, a ação do juiz de menores, agente privilegiado da causa da infância e da adolescência, será definida como uma ação essencialmente multidisciplinar, devendo ser auxiliado, segundo a própria lei, por outros especialistas. (
Portanto, o aporte de outros saberes no processo não é em si uma novidade. A mudança está no modo como estes saberes ora se articulam e produzem efeitos de poder. Importa observar como a inclusão genética dos saberes de tipo clínico no
Aqui cabem proposições de Michel Foucault em
O exame combina as técnicas da hierarquia que vigia e as da sanção que normaliza. É um controle normalizante, uma vigilância que permite qualificar, classificar e punir. Estabelece sobre os indivíduos uma visibilidade através da qual eles são diferenciados e sancionados. (...) A superposição das relações de poder e das de saber assume no exame todo o seu brilho visível. (
Dada a manutenção do modelo de penas indeterminadas, o SINASE reiterou o bom comportamento como critério fundamental para liberação do socioeducando - pelo qual se subentende a barganha entre soltura e submissão em uma coprodução da conduta normalizada. Nessa instância de aplicação do saber, verificamos os principais traços da técnica tal qual descrita pelo autor:
O exame possui um sob tratamento documental, cada indivíduo se torna um
Tais características podem ser verificadas no modo como os adolescentes são tomados pelos saberes durante o atendimento e o quanto isso importa à decisão judicial sobre seus destinos. Estando sob avaliação constante, tem para si elaborado um Plano Individual de Atendimento (PIA). Por meio desse instrumento o exame já é imediatamente instalado, pela exposição e documentação que compõem um caso, cujo percurso é registrado nessa espécie de prontuário (
Mas aí brotam as consequências: Os relatórios produzidos servem não apenas como atestado de arrependimento do socioeducando, mas também como certificado de competência dos técnicos da ortopedia moral. Num mesmo parecer se promove o adolescente, como produto, e os próprios profissionais como produtores de sua recuperação. Ainda é possível concluir, como efeito político lógico do processo discursivo referido, que se no modelo de penas indeterminadas o adolescente socioeducando só é liberado quando está “pronto”, então todo adolescente liberado está “pronto”.
Nesse sentido, é especialmente a confirmação do modelo de penas indeterminadas pelo ECA
Os discursos se dispõem assim num diagrama de poder em que os autores participantes da sujeição do adolescente se combinam de maneira complexa, mais do que à primeira vista: uma vez elaborado o PIA, “a autoridade judiciária dará vistas da proposta de plano individual (...) ao defensor e ao Ministério Público pelo prazo sucessivo de 3 (três) dias” (
Essa positividade dos saberes contrasta com a passividade do poder judiciário, a quem cabe as homologações e a direção da ritualidade processual. O juiz está mais próximo de um direito de veto à desinternação do que do poder de produzi-la. Há várias limitações à autoridade judiciária em distribuir as penas (
Para ir além das sugestões postas aqui desde a leitura da Lei nº 12.594/2012 que normatiza o SINASE, podemos tomar como elemento empírico que corrobora a leitura proposta, as ações políticas
Com o avanço da interdisciplinarização desde o ECA e agora no SINASE, o processo produtivo da verdade tornou-se, ao menos à primeira vista, mais custoso. Não se trata, neste caso, da
Em síntese, a interdisciplinarização do atendimento é produzida por: 1) a própria intersetorialização que traz consigo a demanda pela participação dos saberes; 2) a exigência de “fundamentação” das decisões judiciais, o que empoderou os saberes que detém o monopólio da técnica do exame (
Em todo o processo de formulação do novo sistema, como bem expressa sua síntese oficial, há uma afirmação do caráter pedagógico da medida, o que desequilibra a clássica tensão presente no atendimento a adolescentes desviantes entre recuperar ou punir. O ECA mesmo define que: “Durante o período de internação, inclusive provisória, serão obrigatórias atividades pedagógicas” (
E alcançam a letra da Lei nº 12.594/2012 que junta à responsabilização do infrator e à desaprovação de sua conduta um terceiro objetivo: “a integração social do adolescente e a garantia de seus direitos individuais e sociais, por meio do cumprimento de seu plano individual de atendimento” (
O documento-base da Política Nacional de Atendimento Socioeducativo, publicado em 2006 pela Secretaria Especial dos Direitos Humanos (SEDH) e pelo Conanda, possui um forte tom de urgência moral quanto ao que se fazer com o modelo então vigente. A apresentação do documento, assinada pelo ministro da SEDH, Paulo Vanucchi e pelo presidente do conselho, José Fernando da Silva, representante da sociedade civil, reconhece a condição do adolescente infrator como vítima de violências perpetradas pelo Estado durante o cumprimento de medidas de responsabilização. A violação de direitos do socioeducando é seriamente considerada:
O processo democrático e estratégico de construção do SINASE concentrou-se especialmente num tema que tem mobilizado a opinião pública, a mídia e diversos segmentos da sociedade brasileira: o que deve ser feito no enfrentamento de situações de violência que envolvem adolescentes enquanto autores de ato infracional ou vítimas de violação de direitos no cumprimento de medidas socioeducativas. (
E a partir disso o documento-base é todo estruturado por ênfases garantistas: contém um capítulo inteiro dedicado aos “Princípios e Marco Legal do Sistema de Atendimento Socioeducativo”, que menciona vários protocolos internacionais sobre direitos humanos e da infância e juventude; reafirma o respeito aos direitos humanos, à legalidade e à integridade física do jovem infrator; excepcionalidade e brevidade da medida e respeito à condição de pessoa em situação peculiar de desenvolvimento do adolescentes. Princípios fundamentais do direito civil ocidental são sistematicamente invocados para a legitimação do novo modelo proposto. Na seção “Monitoramento e Avaliação”, lê-se entre os indicadores de qualidade dos programas de atendimento socioeducativo em meio fechado: “Trabalhar-se-á com indicadores de diferentes naturezas, contemplando aspectos quantitativos e qualitativos nos seguintes grupos: (...) 2) indicadores de maus tratos” (
A estrutura física das Unidades será determinada pelo projeto pedagógico específico do programa de atendimento, devendo respeitar as exigências de conforto ambiental, de ergonomia, de volumetria, de
Enfim, o que recorre no documento é que o adolescente infrator deve ser respeitado como sujeito de direitos. Essa redundância é ao mesmo tempo
É então a partir da reafirmação do espírito do ECA e legitimando-se nele que o SINASE aparece uma proposta de
Uma estratégia é indispensável na construção do novo sistema: compará-lo com o passado das FEBEM’s e afirmar que o Estado fez tábula rasa em relação ao passado de violações de direitos. Nas apropriações discursivas que os atores estatais fazem das alterações institucionais havidas, a garantia de direitos compõe o conjunto de mudanças que passam do status de
Tomemos, por exemplo, a fala da ex-presidente da Fundação CASA (Centro de Atendimento Socioeducativo ao Adolescentes), Berenice Giannella em entrevista
[CidadeOn]: O que mudou da antiga Febem para a Fundação Casa?
[Berenice Giannella]: Quase tudo. Desenvolvemos mais fortemente nesses dez anos a política de descentralização do atendimento, foram construídas 74 novas unidades espalhadas pelo Estado para levar os adolescentes o mais próximo possível de seus familiares. Horizontalizamos a administração e mudamos a proposta pedagógica, focando em unidades pequenas com atendimento individualizado e multifocal por meio de psicólogos, assistente social, pedagogos. Tudo isso melhorou a qualidade do atendimento, que ficou mais humanizado.
Vê-se que a construção
A fala de Giannella em entrevista de 2016 pelo portal CidadeOn, compara a Febem à Fundação CASA citando as várias mudanças que tornaram o atendimento, enfim, humano e adequado:
Nas falas acima, o ambiente não-violento é representado como efeito da humanização. Em outra entrevista
O SINASE é sistematicamente apresentado como realização de seu objetivo legal de “promover a melhora da qualidade da gestão e do atendimento socioeducativo” (Brasil, 2012, Artigo 19, inciso III). Desse modo ocorre uma auto-justificação institucional, como se verifica na fala do procurador de justiça Márcio Elias Rosa, secretário de justiça e cidadania do Estado de São Paulo e presidente da Fundação CASA desde julho de 2017
Se superestimando ou não as mudanças ocorridas, o fato é que os gestores da política socioeducativa dizem que a FEBEM ficou para trás, os adolescentes agora são bem tratados, o atendimento é intersetorial e interdisciplinar, as unidades são dignas, há um ambiente cidadão. Um requisito básico para estes discursos é a forte adjetivação pedagógica do atendimento. Além do termo “escola”, a palavra “educacional” aparece três vezes na última citação. O próprio adjetivo “socioeducativo/a” é uma novidade trazida desde o ECA. Vale, contudo, destacar uma crítica constante ao tom ufanista destes gestores: a de que acabam por operar uma discreta passagem do normativo ao ideológico, representando aquilo que
Em síntese, a parametrização ética do atendimento socioeducativo no SINASE se deu por meio de: 1) forte adjetivação pedagógica do atendimento; 2) ênfase comparativa entre o novo sistema e o modelo das FEBEM’s. O principal efeito político desses discursos é a
O direito de punir, sob o fracasso do modelo de bem-estar do menor incendiado com as rebeliões e escândalos, é atualizado a partir do recurso aos dispositivos “sociais”, folheados à “inclusão social”, “socioeducação”, “caráter pedagógico”, “humanização” etc., harmonizados com os míticos direitos humanos. Assim, o SINASE marca historicamente que se pune por meio de tecnologias educacionais
- a educação é a pena e a sanção ao infrator será interná-lo num “estabelecimento educacional” (
As disjunções entre o novo e o velho sistemas de atendimento socioeducativo acarretaram: considerável descentramento da autoridade judiciária na economia de poder sobre o adolescente; produção automática da eficácia do atendimento; auto-justificação do Estado na oferta de atendimento socioeducativo; representação do SINASE como um marco zero na trajetória de políticas para infâncias e adolescências desviantes. Nesse sentido, o SINASE é um
O modo como este comentário articula a intersetorialidade, a interdisciplinariedade e os parâmetros éticos do atendimento socioeducativo acaba por compor o que denomino como
Com base nas intuições Foucaultianas (
Nesse sentido, embora a pergunta já nos seja outra, verificamos que o SINASE ainda persiste como resposta. A última conjuntura crítica nessa matéria foi o ano de 2015, marcado por lutas políticas de grande repercussão pública em torno da redução da maioridade penal. Naquele contexto, os diversos atores do campo contrário à redução - entidades das Nações Unidas, ONG’s, movimentos sociais, setores artísticos e intelectuais e o núcleo do próprio governo federal - se posicionaram conforme certo padrão argumentativo. Seus enquadramentos básicos anti-redução foram três: 1) “mais escolas, menos cadeias”; 2) “redução não é a solução” e 3) menos elaborado enquanto
O que fazer com um sistema que funciona? Ante a ofensiva menorista e constrangido pelo discurso auto-proclamatório do SINASE - vocalizado por seus burocratas - o movimento de defesa dos direitos de crianças e adolescentes deparou-se desde então com um clima avesso a grandes discussões sobre como melhor responsabilizar e ressocializar os adolescentes infratores. Entrevê-se assim, a médio prazo, uma confirmação política dos processos constituintes do SINASE e sua resultante educacionalização do direito de punir, cuja única alternativa disponível parece ser o retrocesso que significa a redução da maioridade penal. Para as forças garantistas, isso significa especialmente que o eixo de discussão sobre a renovada “questão do menor” se deslocou do âmbito das instituições punitivas para outra dimensão da experiência precoce da punição, que diz respeito menos às políticas socioeducativas e mais à proteção social, ao livramento da violência estrutural fortemente racializada, à informalidade, à exploração no mercado de drogas ilícitas e às condições de “deriva” que circundam parte da infância e adolescência pobres no país.
Para ver mais sobre as instituições voltadas para o “menor”, consultar:
Por “construtores” leia-se participantes diretos do processo de formulação da nova instituição: agentes estatais como dirigentes de unidades de internação, membros do poder judiciário, parlamentares, ativistas da causa dos direitos de crianças e adolescentes.
Tabulação própria:
Em 1985 é criado o Movimento Nacional de Meninos e Meninas de Rua (MNMMR). Em 1986 é publicada a “Carta de Brasília” em um encontro da então recém-criada Frente Nacional de Defesa dos Direitos da Criança. Esse movimento desembocaria na articulação pela emenda popular “Criança - Prioridade Nacional”, que seria admitida pelos constituintes como base para o artigo 227 da Constituição Federal de 1988 e a Lei nº 8.069 de 13 de julho de 1990, o Estatuto da Criança e do Adolescente, o ECA.
O documento-base do Sinase, publicado em 2006, cita estes encontros. Durante a produção do artigo procurei registros dos debates realizados nos encontros. Estando na sede do Conanda presencialmente em Brasília, foi-me dito que estes registros deveriam estar no “arquivo morto”. Solicitando o material pelo Portal da Transparência, também houve negativa injustificada.
Conforme tabulação do arquivo do jornal O Estado de São Paulo.
Centro de Atendimento Juvenil Especializado.
Plano Nacional de Prevenção e Erradicação do Trabalho Infantil e Proteção ao Trabalhador Adolescente (2004); Política de Promoção da Saúde (2006); Política Nacional de Assistência Social (2004); Sistema Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (2006), Programa Nacional de Segurança Pública com Cidadania (2007); Plano Nacional de Educação (2001) e outros/as.
Sobre a natureza documentária do atendimento, ver mais em: “O adolescente em conflito com a lei em relatórios institucionais” -
Outro dado instigante das mudanças pós-ECA é a aparente desinterdição do discurso do adolescente, que passa a ser “protagonista” em diversos espaços de discussão sobre questões que lhes dizem respeito, inclusive ao longo do processo de atendimento socioeducativo. Como apontado por
Ver mais em entrevista com Álvaro Pires (
Há uma crescente movimentação legislativa que propõe novas regras para determinação punitiva sobre o adolescente infrator a partir do critério do “discernimento” do sujeito em relação às suas infrações, como por exemplo: PEC nº 489/2005; PEC nº 87/2007; PEC nº 73/2007; PEC nº 332/2013; PEC nº 382/2014.
Adjetivamos de menorista toda e qualquer prática que se refira à infância e adolescência nos termos do ideário pré-ECA, que se ancore, portanto, no “menorismo”, um conjunto de noções, discursos e práticas de controle social sobre as crianças e adolescentes pobres, pondo os sob sujeição desde a presunção do seu desvio e dos vícios morais que lhes seriam próprios.
Para ver mais sobre a articulação do dito menorismo com as diversas manifestações de autoritarismo no Brasil:
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