pcsoPlural – Revista de Ciências SociaisPlural0104-67212176-8099Programa de Pós-Graduação em Sociologia da FFLCH-USP10.11606/issn.2176-8099.pcso.2019.165734ResenhaStarve and Immolate: Politics of Human WeaponsReview of Starve and Immolate: Politics of Human WeaponsRocaAndreaaDoutoranda PPGS-USPUniversidade de São PauloUSPBrazilAug-Dec201923122019262395401BARGUBanu. . Nova York: Columbia University Press, 2014. 1604201919082019Este é um artigo publicado em acesso aberto sob uma licença Creative Commons
Não é muito frequente se sentir afetada pela capa de um livro. Mas é isso, justamente, o que acontece com Starve and Immolate: Politics of Human Weapons, o primeiro livro de Banu Bargu, cientista política turca, na atualidade, professora do Departamento History of Consciousness da Universidade de California-Santa Cruz (UCSC). No centro da imagem, em plano zenital e close-up, vemos a um par de pés muito magros, brancos e com as unhas pintadas de preto, assentados sobre lençóis claros. Pelo estado de repouso em que se acha, subitamente, surge a dúvida: trata-se de alguém vivo ou morto? A mulher fotografada é Feride Harman, presa política e militante do Partido/Frente Revolucionária de Libertação do Povo (DHKP-C) da Turquia, organização da esquerda extraparlamentar tipificada de “terrorista” pela legislação desse país, bem como por agências de segurança estadunidenses e europeias (Figura 1). Por mais de um ano, Feride, a “mártir revolucionária”, se alimentou só de água, açúcar e vitaminas, até sua morte, em outubro de 2001. Na Turquia, entre os anos 2001 e 2007, mais de 120 presos políticos morreram de inanição pela renúncia voluntária a receber alimentos. As greves de fome carcerárias, no seu sentido mais evidente, pretendiam impedir o traslado para novos presídios, cuja inovação eram as celas individuais, desenhadas, segundo as autoridades, para melhorar as condições de vida, higiene e segurança dos internos. Para os rebeldes, no entanto, com o isolamento individual, o governo turco pretendia destruir a vida comunitária dos presos políticos e propiciar a desmobilização dos “revolucionários cativos”.
Capa do livro Starve and Immolate, de Banu Bargu.
Starve and Immolate trata sobre ditas revoltas carcerárias, bem como as respostas articuladas pelo Estado turco para a gestão do conflito. Publicado pela New Directions in Critical Theory, da Columbia University Press, série que reúne intelectuais de renome como Adriana Cavarero, Nancy Fraser e Jacques Rancière, em 2015, o livro ganhou a máxima distinção da American Association of Political Science.
O livro é apresentado como uma peça, a um só tempo, de “etnografia política” e “teoria política” (BARGU, 2014, p. 29). Junto à reconstrução das greves de fome, por intermédio do trabalho etnográfico, a pesquisadora, a partir do exame crítico de conceitos tão caros à teoria política contemporânea, tais como soberania e biopolítica, a autora teoriza a respeito das condições de emergência dessas novas formas de resistências, que, em várias passagens, irá chamar de “radicais” e “enigmáticas”. Sendo a autora formada nas ciências políticas, por certo, chama a atenção a apropriação bem-sucedida que faz Bargu da etnografia, escolha que desponta não só no plano metodológico, como também das formas narrativas. Em primeira pessoa, na introdução, assistimos a uma das passagens mais primorosas da obra, na qual é descrito o funeral de mais uma jovem militante morta de inanição: a fragilidade do cadáver, a cantoria da multidão, a euforia gerada, a raiva e a esperança no ambiente. Nesse instante de luta e comunhão na dor, a pesquisadora se pergunta: como entender que militantes marxistas acolheram de forma tão apaixonada a autodestruição como forma legítima de luta política?
Necroresistências é o conceito criado pela autora para adensar nessas formas de insubmissão articuladas ao redor da autodanificação corporal, práticas que escapam da lógica das políticas afirmativas e de defesa da vida. Assumindo uma linha de continuidade com a analítica do poder, traçada por Michel Foucault, Bargu busca contribuir no terreno mais nebuloso da obra do filósofo francês: o campo das resistências. Para tanto, recupera a máxima foucaultiana que diz: “onde há poder, há resistência”, a transformando não em pressuposto auto evidente e sim, em hipótese de trabalho a ser indagada, neste caso, por meio da pesquisa etnográfica. O interesse de complementar teoria política e trabalho de campo, fundamenta-se no desconforto de Bargu com certa tendência à teorização pura e abstrata que caracterizaria o pensamento crítico atual, condensada, na sua perspectiva, no trabalho de Giorgio Agamben. Uma teoria política ancorada no mundo real, argumenta a autora, é a chave para evitar reproduzir e solidificar certas leituras distópicas sobre o nosso presente. É assim, por exemplo, que Bargu debate um dos conceitos mais importantes do filósofo italiano, a saber, a vida nua (BARGU, 2014, p. 344). Na sua análise, vida nua seria a fantasia máxima do poder, um certo estado de impossibilidade de qualquer forma de insubmissão o qual, argumenta, não é possível de defender empiricamente. Olhando para lugares onde o poder seria total como os centros de refugiados, zonas fronteiriças e prisões, despontam práticas de insubmissão tais como auto imolações, cortes de pulso e costuras de olhos e bocas. Como entender o conteúdo político dessas táticas de autodestruição, onde a própria vida é transformada em arma de luta?
Para a autora, estas insurgências, de certo modo, intoleráveis, pois infringidas ao corpo e diretamente conectadas à morte, ofereceriam um atalho estratégico para prospectar as atuais mudanças no regime de poder. Na contramão das leituras biopolíticas “etapistas”, que negam a persistência da soberania, Bargu argumenta que estamos vivendo uma conjuntura política global na qual dois fenômenos se imbricam: a biopolitização da soberania e a necropolitização da resistência. Há, propõe a teórica, uma coexistência paradoxal entre diferentes modalidades de poder, a soberania, a disciplina e a segurança. Essas modalidades configuram um novo regime de poder caracterizado pelas suas reversões e mudanças de velocidade, pelas suas mutações e fluxos. Trata-se dos agenciamentos biosoberanos, assunto discutido no primeiro capítulo, “Biosoberania e Necroresistência”. Dialogando com a obra de Achille Mbembe, Bargu problematiza estas práticas como: “resistências necropolíticas que transformam o corpo em um território de sujeição em um espaço de insurgência, isto, por meio da auto destruição que apresenta a morte como contra conduta frente à administração da vida” (BARGU, 2013, p. 85). Recuperando a célebre expressão de Felix Guattari, constituiriam “linhas de fuga” destrutivas e criativas que fogem da cooptação do dispositivo que é biosoberano.
Em “Crise da Soberania”, segundo capítulo, apresentam-se antecedentes históricos para compreender a atualidade das greves de fome e do hiper encarceramento na Turquia, passagens que orientam de forma eficiente ao leitor leigo na história desse país. Por sua vez, no capítulo seguinte, “Agenciamento Biosoberano”, a autora analisa o complexo arranjo articulado desde o Estado turco para neutralizar os protestos carcerários, que incluía, desde as operações policiais no interior das prisões, com suas mortes e torturas, até a alimentação forçada, os cuidados médicos e as anistias. Bargu demonstra como no decorrer do conflito, o Estado fez a lei, a guerra e a paz nos seus próprios termos, se reinventando e fortalecendo o discurso antiterrorista. Essa resposta total, e até desproporcional do governo turco, naquele momento liderado pelo ex-presidente, Ahmet Necdet Sezer, ante um exército silencioso de corpos enfraquecidos, argumenta de forma instigante a autora, revelaria o que estava realmente sendo posto em jogo nos protestos: uma tentativa de lhe arrebatar aos aparelhos estatais o poder sobre a vida e a morte, uma afronta direta ao Estado.
Entrevistas, observação participante e trabalho de arquivo, incluindo cartas de presos, panfletos, manifestos e processos judiciais, conformam o corpus empírico mobilizado no livro para compreender, de um lado, as ações, as narrativas e os símbolos dos grevistas, perscrutando os anseios do movimento, seus paradoxos e fracassos; e, de outro, os discursos, os sentidos e as atuações das autoridades, médicos e agentes penitenciários, indagando acerca das hostilidades, medos e estratégias no combate do movimento. Mesmo a obra considerando ambos os lados nesta história, do poder e da resistência, a ênfase certamente está posta nas narrativas rebeldes. Há um compromisso explícito de dar voz a estas insubmissões menos visíveis e com escasso apoio popular, dada sua relação de proximidade com a violência e a morte.
Assim sendo, em “Presos em Revolta”, quarto capítulo, a história das greves de fome é apresentada, agora, na perspectiva dos militantes. Os novos cárceres de segurança máxima propostos pelo governo turco para os “terroristas”, eram entendidos, desde o movimento, como expressão de um processo político maior: a materialização do modelo social individualista promovido pelo capitalismo neoliberal, isto, em conivência com o Estado autoritário que pretende acabar com o cotidiano político da prisão política. A experiência carcerária, para os combativos, eram “espaços constituintes” surgidos, paradoxalmente, no próprio coração do poder, a saber, a prisão. As descrições de auto-organização, solidariedade e disciplina oferecidas por Bargu, por certo, lembram-me de outras histórias prisionais, como por exemplo, a vivida por militantes do Sendero Luminoso, nos anos 1980 e 1990, no Peru.
Já no quinto capítulo, “Marxismo, Martírio, Memória”, é analisada a relação entre morte e marxismo. Para tanto, a pesquisadora examina rituais, metáforas e simbolismos que evidenciariam uma crescente celebração, politização e ressignificação da morte no decorrer dos protestos e das greves de fome. Assim, o leitor depara-se com eventos estruturantes do movimento, como os atos de boas-vindas aos novos grevistas, ao receberem o maior símbolo da luta: um cinto vermelho, o qual deveriam usar até a morte. São também analisados os funerais dos “mártires revolucionários”, espaços ao redor dos quais organizavam-se os sentidos e as memórias do movimento. Um dos enigmas das greves é o fato que mesmo os entrevistados, todos eles ateus, em suas narrativas negarem qualquer sentido espiritual na sua ação política, a autora identifica uma dialética entre morte e militância, entre vanguarda e sacrifício, que ela analisa sob o prisma da teologia política secular e da “espiritualidade política” - esta última, expressão usada por Foucault nos seus escritos sobre a revolução iraniana de 1978. Como fruto dessas discussões, se propõe o conceito de “marxismo sacrificial” (diferente do “sacrifício marxista”, que são as mortes esperadas nos embates revolucionários), que tem relação com a apropriação sistemática do martírio como valor ético-político, deslocamento que faz do sacrifício a forma preferencial da propagação da luta revolucionária.
Em “O contencioso na necroresistência”, último capítulo do livro, Bargu insiste nas diferenças entre as suas interpretações e as dos seus interlocutores. Para tanto, elabora uma tipologia que identifica três marcos interpretativos circulantes entre os militantes, acerca dos protestos: atos de resistência, atos de guerra e atos de negação. O primeiro, o mais evidente e disseminado na opinião pública, diz respeito às greves de fome como uma defesa dos direitos humanos e uma luta contra a tortura. O segundo, sugere que as greves são parte da ofensiva contra o capitalismo e o Estado turco, sendo a mais acatada entre os militante. O terceiro, aquele mais enigmático e com menos adesão pública, inclusive entre a própria esquerda, que contempla a morte como um preço a ser pago para assegurar a existência política e a sobrevivência ideológica do marxismo e a revolução. As greves de fome são, nessa perspectiva, interpreta Bargu, um “êxodo coletivo” para se chegar ao comunismo. Sobre os usos, na análise, das narrativas dos militantes, alguns comentários.
Acolhendo a recomendação dita a todo pesquisador: mantenha as boas distâncias e não pretenda virar porta-voz de seus interlocutores, Bargu oferece uma reconstrução crítica de como os grevistas explicam seus engajamentos e suas ações políticas, trabalho possibilitado pela relação séria e sincera, em palavras da autora, estabelecida com seus interlocutores, isto, sem renunciar à autonomia necessária para avançar no que lhe interessa, a saber, contribuir para o pensamento crítico contemporâneo. De forma um tanto peculiar, neste livro, as “vozes” dos presos políticos são definidas em dois sentidos. Primeiro, como convicções “cruas” e “não mediadas” (BARGU, 2014, p. 31) a partir das quais a autora constrói sua própria leitura, pode-se dizer, como intérprete acadêmica ou tradutora de um código cultural para uma forma de representação textual (CARVALHO, 2002). Segundo, Bargu irá a dizer que as falas de seus interlocutores são “textos viventes de teoria política”, prontos para serem postos em diálogo com as vozes dos grandes teóricos políticos, um chamamento que visa desafiar as fronteiras construídas entre teoria política e política vivida. O convite é para pensar, por exemplo, como discute em um outro artigo, “na insistência de Thomas Hobbes na autopreservação por meio da imolação de Mohamed Bouazizi, na Tunísia, ou, na alusão de Walter Benjamin à violência divina através da greve de fome dos palestinos” (BARGU, 2013, p. 806). Em outras palavras, a teoria deveria ser trazida para iluminar as experiências concretas de homens e mulheres reais e, ao mesmo tempo, possibilitar às experiências concretas contestarem a teoria, sendo as duas, nesse movimento de vetor duplo, afetadas.
Se em um primeiro momento essa proposta resulta em algo peculiar, desconheço outra pesquisa etnográfica que se refira sobre os depoimentos de seus interlocutores como “textos viventes” (BARGU, 2014, p. 31) -, nas conclusões do livro entendemos o que a autora pretendia dizer: uma vez analisado o material etnográfico, o aparelho conceitual deve ser revisto a partir dos achados de campo, avaliando os argumentos teóricos, as proposições desenvolvidas e sugerindo pontos a serem explorados no futuro. Ou seja, trata-se de fazer o que, já faz algum tempo, a antropologia política vem fazendo: pensar a teoria a partir do campo etnográfico - e vice versa, o campo etnográfico a partir da teoria -, sem outorgar a priori superioridade a uma esfera sobre a outra. É exatamente nesses entrecruzamentos que é possível explorar os limites e o sentido do político no mundo contemporâneo.
Sem deixar de destacar as inúmeras virtudes desse livro, altamente inspirador para quem perambula na região dos embates com o poder e no mundo carcerário, é necessário chamar a atenção para um fato. Mesmo Bargu dizendo que pretendeu estabelecer uma relação dialógica entre saberes legitimados e subjugados, ao terminar de ler seu Starve and Immolate, ficamos com a impressão de que o diálogo segue uma só direção, aquela que alimenta o olhar da pesquisadora sobre as experiências que busca compreender, ficando na obscuridade o outro lado da moeda, isto é, o olhar dos interlocutores sobre ela. Nada sabemos, por exemplo, da recepção de seu livro no milieu militante turco. Isso, poderia, tal vez, ser parte de um belo posfácio para as futuras edições desta obra que esperamos seja traduzida para o português.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICASBARGU, Banu. Theorizing Self-Destructive Violence. Int. J. Middle East. Stud, 45, p.804-806, 2013.BARGUBanuTheorizing Self-Destructive Violence458048062013BARGU, Banu. Starve and Immolate: Politics of Human Weapons. Nova York: Columbia University Press, 2014.BARGUBanuNova YorkColumbia University Press2014CARVALHO, José Jorge. Poder e Silenciamento na Representação Etnográfica. Série Antropologia, n. 316. Depto. de Antropologia, Universidade de Brasília, 2002.CARVALHOJosé JorgeSérie Antropologia, n. 316Depto. de Antropologia, Universidade de Brasília2002