Chamada aberta para submissões ARA 11 - Outro Ato: em direção ao caminho inverso - Até 10 de junho de 2021

2021-02-20

OUTRO ATO

Apresentação

" [...] estou enfim caminhando em direção ao caminho inverso. Caminho em direção à destruição do que construí, caminho para a despersonalização” (Clarice Lispector,1998, p.173).


O tema proposto para a edição número 11 da revista ARA FAU USP, em parte homenageia Clarice Lispector, em seu centenário, daí o explicativo no título - “Outro ato: em direção ao caminho inverso” -. Excerto publicado inicialmente em 1962 na revista Senhor mantém atualidade, neste período em que se almejam transformações. Uma vez mais ARA busca estimular reflexões sobre a cultura contemporânea. A palavra ara em tupi-guarani refere-se a tempo em seu aspecto circular, ligado à natureza. Urge se opor a certa tendência focada em destruí-la. Entende-se que este elo fulcral vem sendo expresso em muitas áreas, a citar, história, artes, cultura, antropologia, filosofia, entre outras, sendo um convite transdisciplinar.

Vivencia-se um enclave em vários aspectos e com distintas interpretações, não raro ainda polarizadas, repetindo-se tantas outras que geraram fosso indesejável, tanto entre humanos, quanto destes com a natureza. Ainda assim, uma convergência reside no desejo em se alterar este período, seguindo em caminho inverso. Existem os que inquirem se a humanidade sairá melhor, após os embates relativos à Covid 19, mal causado pelo SARS-COV-2, chamado coronavírus. Decorrem de pavor e perplexidade, ante tantas vidas humanas perdidas. Igualmente há pessoas sensíveis sobre males sociais, educacionais, culturais e em esferas como habitação, trabalho, esportes, política dentro e fora do país.

Selecionou-se trecho escrito por Clarice Lispector, na revista Senhor, nomeado por “Em direção ao caminho inverso”, datada de três anos após o início da publicação (1962). A sugestão foi lembrada pelo conselheiro da revista ARA FAU USP, Celso Favaretto, após o GMP (Grupo Museu/ Patrimônio FAU USP), debater conceitos voltados ao par ato e potência, em trabalho de trocas, sempre muito proveitoso.

O presente tema invoca formular saber inédito e reflexões, em submissões por palavras e/ou imagens e movimento, fatores considerados essenciais e indispensáveis nesta revista universitária.     Vale esclarecer e reiterar: 1. o conteúdo não pode ter sido antes exibido pela autoria na íntegra e exatamente igual; ou seja, deve ser inédito, ainda em se tratando de obra do autor da Submissão; 2. importante creditar o trabalho usado de outros em várias linguagens, seja por palavras ou imagem; 3. o envio deve ser acompanhado de autorização do direito autoral firmado por todas as instâncias detentoras de imagens, tanto o artista, ou seus descentes quanto instituição a que pertence a obra; 4. caso haja mais de um autor da Submissão, justificar essa exceção.

O termo Ato emerge de ampla tradição, já na filosofia grega, ou no teatro, em particular aponta às cenas vivenciadas desde 2019 e ainda latentes neste início de 2021, transmitidas diariamente por variadas mídias, na vã ilusão de nos convencer de que tudo está sob controle. Promessas de soluções científicas entram em cena, sendo escaladas, na ilusão de recuperar certezas, esquecendo-se que estas também gravitam em hipóteses, experiências, dúvidas, intuição e razão.

Embates e desconforto contribuíram para que mitos estejam em franco descrédito, algo positivo legado pela pandemia, a gerar indagações sobre o futuro próximo. Reitere-se que práticas em presença foram oportunamente banidas em setores prioritários, mas deu-se o contrário no consumo em geral. Por outro lado, multidões viram-se obrigadas a sair para trabalhar, ou estão em situação de rua, enquanto nós outros, realizamos fazeres em casa por meio de várias telinhas e longe do espaço urbano, esvaziado e segregado.

Lispector em entrevistas revelou que ao criar o livro, “A paixão segundo G.H.” achava-se também em crise, porém no âmbito pessoal. Assim aborda a despersonalização como liberação de aspectos individuais inúteis, parecendo naturalizados, tanto que se está apegada. Ao se livrar de algumas prisões, na volta ao mínimo, cada um ainda pode se identificar como Ser, de maneira visivelmente reconhecível. A centenária escritora afirma no texto referido:

A despersonalização como a destituição do individual inútil - a perda de tudo o que se possa perder e, ainda assim, ser. Pouco a pouco tirar de si, com um esforço tão atento que não se sente a dor, tirar de si, como quem se livra da própria pele, as características. (1962, p.20).

O trecho citado comporá o livro “A paixão segundo G.H.”, um dos mais intrigantes e que sairá editado dois anos depois (1964). Em síntese, desenha e dá fala a uma escultora, nomeada apenas pelas iniciais e residente em elegante apartamento de cobertura. Após a saída da empregada dispõe-se a organizar, arrumar, enfim formatar à sua maneira o espaço doméstico para reintegrá-lo à própria direção. Dentro de linguagem exponencial, enquadra visualidade, reflexão, tempo e espaço de forma poética, com rimas e repetições enfáticas.

Lispector no romance cria imagens em contrastes, entre a artista e a trabalhadora: escultora, única personagem em presença; fala em primeira pessoa; reside em amplo espaço, povoado por objetos; veste robe branco; desfruta de liberdade e em sua atividade laboral, capacitando-a a discorrer sobre a linguagem. Já a empregada aparece em ausência física; realiza árduo trabalho, inviabiliza-se em desejos, enigmas e razões; viveu em micro espaço, agora vazio; descreve-a, como negra, vestida de negro; confinada, sem diálogo ou trocas, fatores reveladores de mais um entre os vários fossos sociais.

Expressa o lado preconceituoso da personagem G.H., como fará depois com Macabea em “A hora da estrela” (1977), outra dessas figuras com invisibilidade social e vida precarizada. Neste classifica sua principal ajudante, como incompetente para a vida (Lispector, 1999, p.24). No texto em exame, ao se dirigir ao quarto da trabalhadora, espécie de avesso da casa, antevê o que acharia na área antes ocupada por Janair. Seria uma alusão a Jano, divindade com duas cabeças, guardião romano? Ela faria esse ato protetor?

G.H. pensa, por certo haverá desorganização, material empilhado, vermelho desbotado em manchas no colchão roto, restos de vida, indícios de outra classe social, pedaços de luta, solidão e abandono. Esta situação contrasta com o que perseguia, ou seja, obsessão por beleza, higiene e ordem. Entretanto, ao adentrar no recinto, surpresas: reinam aparente vazio e limpeza, como escreve, quase hospitalar. Observa apenas suas próprias malas com as iniciais misteriosas e certa claridade, a incidir no espaço, quase imaculado. Ao visualizar o armário, sobressalto – um inseto refugiara-se ali. Desde este instante, sucede-se uma série de interações com a alteridade, em campos, a abranger simbólico, psíquico, social, político, uma viagem às próprias vísceras, algo mágico, a arrebatar o leitor.

Tenta fugir e ao mexer na porta, nova perplexidade, defronta-se com três vultos desenhados a carvão, na parede, que ensejam questões sobre o fazer artístico. Vale sublinhar que Lispector sempre surpreende e introduz o inesperado, o imprevisível, o não mimético. Após inusitadas experiências, próprias da linguagem na cultura artística, em dado momento, desfaz-se de coisas, denominadas inúteis, parecendo espelhar o contorno nu das figuras desenhadas – ou designadas- naquele quarto. Por meio do olhar, G.H. se apossa de detalhes, antes invisíveis, embora em seu cotidiano. Menciona então a existência de um terceiro apoio, quem sabe mais uma perna, que travaria sua caminhada, mas, por outro lado traria maior equilíbrio.

Perdi alguma coisa que me era essencial, e que já não me é mais. Não me é necessária, assim como se eu tivesse perdido uma terceira perna que até então me impossibilitava de andar, mas que fazia de mim um tripé estável [...]. Sei que somente com duas pernas é que posso caminhar. Mas a ausência inútil da terceira me faz tanta falta e me assusta, era ela que fazia de mim uma coisa encontrável por mim mesma, e sem sequer precisar me procurar. (LISPECTOR, 1998, p.11-12).

A linguagem que propicia emergir seu lado natureza, a par de invisível, indizível e o insólito se constata, em inúmeros períodos e criadores, cito Konrad Fiedler[1] no Século XIX. “O que faz a natureza visível se converter em arte, sem deixar de ser natureza, é o desenvolvimento que, em favor de sua visibilidade, se realiza a atividade artística”. (1987, p.66.Trad. A.). A arte de Lispector caminha entre o dizível e seu oposto, a permear sua linguagem, referenciando-se também na cultura judaico-cristã, ou seja, ao se nomear, não se esquece o ausente. Note-se também o uso de travessões, no início e final do livro provavelmente ênfases.

Eu tenho à medida que designo__ e este é o esplendor de se ter uma linguagem. Mas eu tenho muito mais à medida que não consigo designar. A realidade é a matéria-prima, a linguagem é o modo como vou buscá-la __ e como não acho. Mas é do buscar e não achar que nasce o que eu não conhecia, e que insistentemente reconheço. A linguagem é o meu esforço humano. Por destino tenho que ir buscar e por destino volto com as mãos vazias. Mas __ volto com o indizível. O indizível só me poderá ser dado através do fracasso de minha linguagem. Só quando falha a construção, é que obtenho o que ela não conseguiu. (1998, p. 176).

Ao se abordar imagens e palavras cumpre sublinhar a importância delas na formulação de saber, suplantando-se aquelas meramente ilustrativas. A Revista ARA FAU USP tem agregado cinema, psicanálise, filosofia, fotografia, vídeo, museologia, história, geografia, além de arte e arquitetura, entre outras linguagens voltadas ao que as une em fronteiras. Significativo neste momento de expectativas para mutações efetivas e críticas aponta esforço em se trilhar rumos desconhecidos, frestas, vias ainda não veiculadas, fronteiras, exílio e proposições para se trilhar desígnios próprios e se abrir ao coletivo.

Pretende-se com tema incentivar o criar, algo singular, de modo a se dirigir em sentido e direções opostos ao lugar comum narrado. Reconhece-se a acuidade da expressão resiliente, que pode se materializar por distintas formas, como se deseja incentivar na produção de conhecimento esperada, na edição inaugural deste ano de 2021. Constituem diretrizes tanto em submissões, quanto nos estudos do Dossiê, composto por membros do GMP, com mesmo tema e dupla análise. Desejo que cada um contribua e desvele o invisível e o indizível que nos habita!!!

Ciça, Verão, 2021.

 

Referências bibliográficas

FIEDLER, Konrad. Acerca del origen de la actividad artística. In: De la esencia del arte. Buenos Aires/ARG: Nueva Visión, 1987.

LISPECTOR, Clarice. A hora da estrela. Rio de Janeiro: Rocco, 1999.

______ A paixão segundo G.H. Rio de Janeiro: Rocco, 1998.

 

[1] Trecho consultado: Lo que hace que la naturaliza visible se convierta en, sin dejar por ello de ser naturaleza, es el desarrollo que, en favor de su visibilidad, se realiza en la actividad del artista”. Acerca del origen de la actividad artística.