“O daime ferve no caldeirão”
questões de gênero que perpassam o ritual feitio do Santo Daime
DOI:
https://doi.org/10.11606/issn.2596-3147.v1i2p253Palavras-chave:
Educação, Gênero, Feitio, Santo DaimeResumo
Este trabalho é resultado de uma pesquisa etnográfica realizada na Casa de Oração Estrela D’Água, localizada na Ilha de Colares, no Pará, e objetiva analisar as questões de gênero que perpassam os processos educativos vivenciados no ritual de feitio do Santo Daime. O Santo Daime é uma religião ayahuasqueira nascida na periferia de Rio Branco, no Acre, no início do século XX, que se caracteriza, dentre outros aspectos, pelo consumo da ayahuasca – beberagem de origem indígena produzida a partir da decocção do cipó Banisteriopsis caapi, da folha Psychotria viridis e água. O ritual de feitio do Daime é o momento destinado à feitura da bebida, considerado como a “universidade” da doutrina, dada a complexidade de sua execução, uma vez que pressupõe intenso trabalho físico e espiritual, e pauta-se em uma divisão sexual do trabalho, na qual os homens são os responsáveis pela maior parte do processo diretamente ligado à produção da bebida, que compreende a coleta, a limpeza e a maceração do cipó, além do cozimento das plantas e do cuidado com o fogo da fornalha, enquanto às mulheres cabe a seleção e limpeza das folhas, além da recepção de visitantes, preparo dos alimentos e limpeza de modo geral. Essa divisão se instituiu historicamente na cosmologia daimista, fruto dos processos históricos de colonização, como a colonialidade de gênero. Metodologicamente, a pesquisa resulta de uma imersão etnográfica em dois rituais de feitio acontecidos no ano de 2019, pautada na observação participante, entrevistas semiestruturadas e conversas informais com os dirigentes, com homens e mulheres fardados do centro religioso e importantes lideranças que participaram dos rituais, como o feitor e a puxadora que o acompanha. Teoricamente, a pesquisa inspira-se na perspectiva decolonial, apoiada nos estudos de Edgardo Lander sobre colonialidade do saber, de Maria Lugones sobre colonialidade de gênero, de Maria Betânia Barbosa Albuquerque acerca da educação no Santo Daime e de Camila de Pieri Benedito sobre questões de gênero que perpassam a religião daimista. Dentre as considerações, constatamos a dimensão educativa vivenciada no cotidiano religioso do Santo Daime, em especial no ritual de feitio, como uma pedagogia cultural decolonial, pois imbrica processos educativos organizados a partir de uma base epistemológica particular na qual os saberes são mediados por uma planta mestra, contudo, a despeito disso, as contradições, os tabus e as sanções genderificadas revelam um aspecto conservador da religião no que tange aos aspectos de gênero e sexualidade, ao passo que despontam reações de membros que não assumem o discurso daimista patriarcal, heteronormativo e binário, até mesmo o questionam e apresentam resistências.
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