Volume 1
Edição nº 12
2012
Seção:
DOSSIÊ ESPETÁCULO
Artigo 3


Orfeu - mito e mistura

Jerusa Pires Ferreira


Muito jovem, no cinema, me encantei com um Orfeu, aquele surrealista vivido por Jean Marais. O atravessar dos espelhos, a Eurídice, o chofer Heurtebise; mediador nos trâmites de vida ou morte. E a pergunta parecia ecoar: sabe quem eu sou?

No imaginário de toda uma geração o Orfeu do Carnaval parecia responder: a sua Morte.

Em uma de suas últimas entrevistas Glauber se dizia Órfico. E é deste mergulhar até o profundo, trazendo à tona segmentos e fragmentos salvos que se faz a Arte. Por mãos do mais perfeito dos músicos ou do deus “sonso e ladrão”.

E o teatro, ah o teatro! A grande viagem que tudo compromete, o corpo a fala, passado e futuro.

Mas aqui uma pergunta se faz. Qual o Orfeu que não é mestiço?  Os gregos o eram, nutrindo-se da Ásia menor, crescendo a partir das diferenças e conquistas de um povo de pastores que buscava o grande mar: Talassa. Depois viria a filosofia, o desafio natural.

Aqui neste Orfeu de agora o “griot”, personagem composta, mais que isso, uma espécie de Exu é responsável pela transmissão do mal e do bem, propiciador de ritos e de uma certa unidade agregadora.

Em sua boca a experimentação de sons, sonoridades claras e ocultas de vogais e consoantes... o modo de ser de uma cultura entre as do mundo, a nossa. Ao definir-se, marcas se reconhecem, uma história se apresenta ou recupera, dá-se o mergulho num inferno próximo.

No texto e na cena o horror da ditadura recente.

Conduz-se então todo um conjunto de citações, algumas pressentidas, outras bem visíveis.

Enquanto isso, no cenário a roda do tempo subverte cronologias. E a tela/Thomas mais uma vez inaugura temporalidades de avanço, retrocesso, véu que disfarça o previsível.

Na construção de linguagens, um mito nos define: o de um Orfeu falante e mestiço. E um rito leva e traz, de onde a onde?

Na cena, o rito indígena, simulação que, no entanto, o inscreve no corpo desse itinerário de misturas.

Evoco então uma tarde na Cascata de São Bartolomeu, Bahia, em que o giro, a dança, o canto, o charuto se reuniam ao sacrifício de galinhas cujo sangue vivo era bebido pelas participantes em rodopios. Com todo o meu horror, pensei, eu seria capaz de me integrar. Era o rito que se impunha no giro daquelas saias largas numa clareira encantada.

Aqui no Orfeu paulistano, o rodopio dos vestidos de uma das personagens, o eterno movimento que a cena dessa troca de roupas nos faz partilhar... como a nos permitir sair vivos dessa viagem maldita....

E tudo porque na geometria da descida, há também a curva capaz até de expulsar os clichês da comunicação e do teatro.

Esse seria agora o Orfeu da fala, de nossa fala, viagem ao fundo de nós mesmos a nos entregar de repente vivos ou mortos, exaustos e ressurgentes, mortos/vivos como zumbis.

Passa a ser este então um espaço possível de nosso encontro com os universais e também com a história mais imediata. Momento de se situar, o corpo em cansaço pela contingência e pela extensão repetitiva, (afinal o antigo teatro tomava horas e dias) ocasião para recusar vozes em sua estridência, balancear o âmago perturbador que nos habita, e que  aqui se acende. De lidar com nossas resistências e fantasmas.

Fazer teatro político, fazer um teatro mestiço sem contar com um “griot” seria um desacerto ou pelo menos uma imprudência.

O que o grupo faz, nos leva imediatamente a pensar numa contraparte ao mais corrente, ao que a torto e a direito, anda por aí. Fazer desse modo, experimentando, avançar retrocedendo e vice-versa, para criar recursos novos. Apostamos, jogo sem volta, na força dos atores, na energia que emana de um fazer sem limites demarcados. Tudo vai tomando forma num laboratório Órfico, alquimia do improvável que se funde ao experimentado.


Jerusa Pires Ferreira é professora do CJE/ECA-USP e do Programa de Pós-Graduação em Comunicação e Semiótica da PUC-SP, onde criou e dirige o Centro de Estudos da Oralidade.


Data de Recebimento:
26 de março de 2012
Data de Aceite:
31 de maio de 2012
Data de Publicação:
30 de Junho de 2012