Depois da tormenta: rupturas e permanências no campo da saúde mental após o biênio 2020-2021

Autores

  • Fabio Scorsolini-Comin Universidade de São Paulo, Escola de Enfermagem de Ribeirão Preto, Centro Colaborador da OPAS/OMS para o Desenvolvimento da Pesquisa em Enfermagem, Ribeirão Preto, SP, Brasil. http://orcid.org/0000-0001-6281-3371

DOI:

https://doi.org/10.11606/issn.1806-6976.smad.2022.000211

Palavras-chave:

Saúde mental

Resumo

Os anos de 2020 e 2021 foram marcados por importantes transformações globais
em decorrência da pandemia da COVID-19. No campo da saúde mental temos observado
um importante incremento de pesquisas e também de intervenções que se voltam à
compreensão das repercussões da pandemia, em um movimento que revela a fragilidade
da nossa condição humana e, para além disso, a necessidade de que reconheçamos esse
circunscritor em busca de novas formas de existir e de cuidar não apenas de nós e dos
outros, mas de um mundo em transição.
O trânsito da pandemia e as suas sucessivas ondas em todas as partes do mundo
revelam a instabilidade desse momento histórico. Assim, o anunciado fim do biênio 2020-2021 não pode ser
corporificado, precisamente, como o fim de uma tormenta, mas como um período no qual tivemos, globalmente,
que lidar com as importantes intempéries produzidas pela pandemia em praticamente todos os níveis de nossas
relações.
Embora tenhamos sempre a capacidade renovada de avistar um futuro com mais esperança após a
tormenta, é importante que não nos esqueçamos do que vivemos – não apenas pela possibilidade de que essas
vivências sejam reavivadas no futuro, mas também porque o esquecimento pode nos custar muito. Inclusive
em termos de saúde mental. É nesse sentido que a SMAD reforça a cada ano o compromisso com a divulgação
de pesquisas, intervenções e reflexões no campo da saúde mental engajadas não apenas na mudança, mas
ancorando-se na necessidade de lembrar de nosso passado, podendo construir um porvir reflexivo e, sobretudo,
mais humano nesse campo da assistência.
O primeiro fascículo do ano de 2022 da SMAD é aberto com um editorial bastante oportuno sobre a
comunicação da Ciência e o seu papel em uma sociedade dominada pela informação, escrito pela Profa. Dra.
Carolina Aires, da Faculdade de Ciências Farmacêuticas de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo. O texto
põe em destaque a importância que pesquisadoras e pesquisadores possuem no combate às fake news e para a construção de redes de informação que façam frente à disseminação vertiginosa de conteúdo inadequado e que coloca
em risco a saúde da população(1). No campo da saúde mental, as fake news podem contribuir para o reforçamento
de estigmas, para a proliferação de informações equivocadas sobre tratamentos e, com isso, expor grande parcela
das pessoas a tratamentos ineficazes ou, ainda, subvalorizando expressões do adoecimento psíquico no cotidiano.
O primeiro artigo que compõe este fascículo é intitulado “Desinstitucionalização e as novas possibilidades no
cotidiano dos familiares de egressos(as) de um hospital psiquiátrico”, da autoria de Ingredy Nayara Chiaccio Silva e
Carina Pimentel Souza Batista, da Universidade Federal da Bahia. A partir de entrevistas com familiares de egressos de
um hospital psiquiátrico são destacadas repercussões como medo e apreensão pelo processo de desinstitucionalização.
A pesquisa enfatiza a importância do trabalho da equipe de desinstitucionalização no processo de reconstrução de
vínculos afetivos com esses familiares, ressaltando que este ainda é um dos maiores desafios de uma assistência
alinhada às rupturas promovidas pela Reforma Psiquiátrica.
O segundo artigo é intitulado “Conhecimento de vereadores acerca do uso do álcool e repercussões sobre a saúde
dos usuários”, da autoria de Tancredo Castelo Branco Neto e demais pesquisadores, em uma colaboração entre a
Universidade Federal do Amapá, a Universidade Federal do Piauí e o Centro Universitário UNINOVAFAPI. Os vereadores
entrevistados, em sua maioria, desaprovam o uso de álcool pela população, recorrendo a ideias alicerçadas no senso
comum para tratar dos possíveis agravos à saúde decorrentes do uso e do abuso de álcool. O estudo aponta para a
necessidade de maior conscientização desses legisladores acerca das questões de saúde pública, notadamente da
tutela jurídica dos usuários de álcool.
Na sequência, Jorge Luiz Lima da Silva e colaboradores ligados à Universidade Federal Fluminense apresentam o
estudo “Transtornos mentais comuns e síndrome de burnout entre profissionais de colégio universitário”. A investigação
foi realizada com 106 trabalhadores da educação, revelando que a suspeição de transtorno mental comum nessa amostra
foi de 22,6%, com associações entre as dimensões de despersonalização e de exaustão emocional características do
burnout. Endereçamentos em relação à prevenção de agravos à saúde nesse contexto são apresentados pelos autores.
Pesquisadoras e pesquisadores da Universidade Federal de São Carlos e da Universidade Federal do Piauí
apresentam, na sequência do fascículo, o estudo “Classificação do risco de consumo de álcool de gestantes nos últimos
12 meses e durante a gravidez”. A pesquisa foi realizada com 118 gestantes usuárias do SUS de dois municípios.
Os resultados destacam que 94,9% dessas gestantes faziam uso frequentemente do álcool antes da gravidez, com
associações entre o consumo pregresso de álcool das mulheres e o consumo durante o período gravídico. Tais dados
são discutidos no artigo com vistas a possibilitar reflexões sobre as estratégias de prevenção e de promoção de saúde
mental junto a essa população, identificando vulnerabilidades que devem ser acolhidas pelos equipamentos de saúde.
Na sequência é apresentado o estudo “Potencialidades e desafios do trabalho multiprofissional nos Centros de
Atenção Psicossocial”, de Giovana Telles Jafelice, Daniel Augusto da Silva e João Fernando Marcolan, da Universidade
Federal de São Paulo. A pesquisa entrevistou 27 trabalhadores de nove Centros de Atenção Psicossocial Adulto
vinculados à Prefeitura Municipal de São Paulo. Entre as potencialidades dessa atuação foi destacada, dentre outros,
a possibilidade de um trabalho integrado e em rede. A precarização do trabalho e o sofrimento do trabalhador foram
mencionados como limitações. Essas limitações são narradas pelos trabalhadores em referência ao que chamam de
lógica ambulatorial, revelando fragilidades na efetivação dos pressupostos da Reforma Psiquiátrica.
Pesquisadores do Centro Universitário UNIFACISA e da Universidade Estadual da Paraíba apresentam, na sequência,
o artigo intitulado “Ansiedade traço-estado em estudantes universitários do curso de enfermagem”. Como observado
na literatura científica que investiga a saúde mental em estudantes do ensino superior(2), os autores encontraram na
amostra um alto nível de ansiedade. Essa ansiedade está associada, no estudo em tela, a situações acadêmicas e a
consequências dessa rotina, o que deve ser discutido também a partir de políticas educacionais dispostas a compreender
o papel desse contexto nessa sintomatologia.
O estudo metodológico “Desenvolvimento de um instrumento de avaliação do letramento em saúde relacionada
ao hábito etilista”, de Ana Monique Gomes Brito e colaboradores das Faculdades Unidas do Norte de Minas e da
Universidade Estadual de Montes Claros, investigou as propriedades do instrumento para avaliação do Letramento
em Saúde quanto ao Hábito Etilista (LSHE). A partir das propriedades psicométricas apresentadas e discutidas no
artigo, o LSHE foi considerado válido, confiável e com boa interpretabilidade, podendo dar origem a outros estudos
metodológicos para a compreensão mais pormenorizada dessas propriedades.
Em seguida, Aline Bedin Zanatta, Laura Lamas Martins Gonçalves e Sergio Roberto de Lucca, da Universidade
Estadual de Campinas, apresentam o artigo “O processo de trabalho nos Centros de Atenção Psicossocial na perspectiva
dos gestores”. Foram entrevistadas gestoras de 11 Centros de Atenção Psicossocial de um município de grande porte
no interior de São Paulo. As gestoras destacam a satisfação com o trabalho em termos da possibilidade de uma atenção próxima e com vínculos em saúde mental. Apesar disso, revelam também situações de desgaste em relação
à natureza do trabalho e seus processos administrativos. Os autores recomendam o fortalecimento da rede como um
importante promotor de cuidado entre a equipe multiprofissional.
O estudo “A automedicação com psicotrópicos entre estudantes universitários: uma revisão integrativa” é
apresentado por pesquisadores da Universidade Franciscana, de Santa Maria, estado do Rio Grande do Sul. A
revisão contemplou publicações entre os anos de 2009 e 2019, corroborando com a vulnerabilidade dos estudantes
universitários quanto aos riscos para a automedicação, principalmente quanto ao uso de estimulantes e analgésicos.
As motivações para a automedicação envolvem fatores de rendimento acadêmico. Os autores enfatizam a premência
de “sensibilizar autoridades quanto à legitimação e implementação de políticas públicas de combate à automedicação
entre universitários”.
O fascículo encerra-se com o artigo intitulado “A fotografia em saúde mental: um olhar para o subjetivo”, de
Lahanna da Silva Ribeiro e colaboradoras ligadas à Universidade Federal de Ciências da Saúde de Porto Alegre. A
revisão integrativa buscou identificar na literatura científica ações em saúde mental realizadas a partir da fotografia.
Os estudos recuperados revelam ações como oficinas, pesquisas com fotovoz e foto-elicitação, além de mostras
fotográficas. As autoras concluíram que a fotografia pode ser um “dispositivo de promoção da saúde mental ao
permitir que os indivíduos compartilhem suas experiências e seus sentimentos, os quais, comumente, ocultam-se
em metodologias convencionais”.
Finalizamos esta apresentação com o desejo de que esses estudos do primeiro fascículo de 2022 possam ser
apreciados como convites a dois movimentos importantes. O primeiro deles refere-se à necessidade de pesquisar e
intervir junto aos profissionais que atuam em equipamentos de saúde mental, a exemplo do interesse manifestado
em relação aos profissionais de saúde da chamada “linha de frente” no combate à COVID-19(3) e também junto a
estudantes universitários(2). As demandas desses grupos vêm se revelando na literatura científica não apenas como
expressivas e urgentes, mas também permitindo reflexões em relação à universidade que estamos construindo ao
longo dos últimos anos e às reais mudanças a partir da Reforma Psiquiátrica no que se refere especificamente a esses
profissionais de diferentes categorias nos diversos equipamentos de cuidado em saúde mental.
Ainda nesse primeiro movimento, a esses dois públicos priorizados no campo da saúde mental, como ilustrado
neste presente fascículo que abre o ano de 2022, podemos incluir os professores(4) – da educação infantil a superior -,
sobretudo considerando as transições entre ensino presencial, remoto e híbrido oportunizadas no itinerário pandêmico.
Obviamente que as vulnerabilidades em saúde mental continuam a mobilizar esforços de pesquisa e de intervenção,
o que deve ser endereçado, de modo mais evidente, nos estudos a partir da maior tormenta vivenciada justamente
nos anos de 2020 e 2021.
Considerar essas vulnerabilidades também envolve o cotejamento das diversidades, do aumento da pobreza e da
extrema pobreza no cenário brasileiro, por exemplo, além das assimetrias sociais, econômicas, políticas e culturais que
não nos permitem afirmar que enfrentamos a mesma tormenta(5). É mister, portanto, priorizar o cuidado a populações
em permanente vulnerabilidade, em uma tormenta que não se extingue com o anúncio do fim de um período. Olhar
para esse processo a partir de perspectivas branco-americano-eurocentradas e pouco porosas à alteridade continuará
reavivando a tormenta que buscamos ultrapassar.
O segundo movimento legitimado por essas produções envolve a necessidade de que as realidades aqui retratadas,
notadamente produzidas antes do contexto da pandemia da COVID-19, possam ser acompanhadas em termos de
mudanças, necessidades e limitações impostas por esse contexto global. O ano de 2022 avizinha-se como um marcador
importante depois de dois anos de intensas transformações. Não se trata, necessariamente, de pensarmos este ano
como um contexto pós-pandêmico, mas justamente de um ano em que diferentes convites podem ser endereçados:
à permanência dos desafios impostos no biênio 2020-2021 e à construção de novas estratégias para a retomada do
que um dia fomos e, mais provavelmente, para a criação daquilo que precisamos ser depois dessa tormenta. E, por
fim, em um cenário de impermanência, continua patente o questionamento: atravessamos a tormenta?

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Publicado

2022-06-09

Como Citar

Scorsolini-Comin, F. (2022). Depois da tormenta: rupturas e permanências no campo da saúde mental após o biênio 2020-2021. SMAD, Revista Eletrônica Saúde Mental Álcool E Drogas (Edição Em Português), 18(1), 1-4. https://doi.org/10.11606/issn.1806-6976.smad.2022.000211