Este trabalho é uma análise do projeto de tradução da série de 5 poemas em que a poeta Elise Cowen trabalha a imagem de baratas como uma metáfora dos homens e, principalmente, das mulheres pertencentes à geração
This paper is an analysis of the translation project of the series of 5 poems in which the poet Elise Cowen works with the image of cockroaches as a metaphor for men and, mainly, women of the beat generation. The analysis was carried out by the Translator's Identity theory. Throughout the analysis I could verify that even though I was pursuing a practice that recognized my identity as a translator and that it moved away from the traditional prescriptive ideals of translation, for several moments I noticed a translation concerned with the ideals of fidelity and invisibility. Although oscillating between a more or less transformative attitude towards the work of translation, I conclude that the process itself and the subsequent analysis made on it were instructive and formative in the sense of understanding and carrying out a translation by the principle of cocreation.
Esse artigo nasce como uma análise do trabalho realizado para um projeto de tradução poética e reflexão sobre a prática tradutória. O projeto se propunha a traduzir uma série de poemas da poeta Elise Cowen e investigar a questão da identidade do tradutor no processo de tradução. Mais especificamente, o
A geração
O movimento literário foi reconhecido pelo cânone artístico na figura central de três escritores: Allen Ginsberg, Jack Keuroac e William Burroughs. Além desses, outros nomes masculinos foram, ainda que consideravelmente menos que o dos três, celebrados pela crítica. Mas no que se refere às autoras mulheres do período, essas foram invisibilizadas pela história literária oficial. Foi o trabalho mais recente de pesquisa, curadoria e divulgação por parte de pesquisadoras filiadas à crítica literária feminista que trouxe a público as obras dessas escritoras, silenciadas pela sistematização hegemônica da tradição literária.
A escolha de poemas de Elise Cowen como objeto de tradução e análise foi subjetiva. Partiu de um desejo pessoal que eu, mulher, escritora, feminista e militante de esquerda, alimentava, de me aproximar desse universo feminino à margem da margem. Pois, se os escritores homens do movimento puderam ver seus trabalhos cultuados pela mesma sociedade que os discriminava, as escritoras mulheres não tiveram o mesmo privilégio. Assim, o presente trabalho e o de todas as pesquisadoras, tradutoras e editoras que se dedicam a viabilizar essas obras, atua para diminuir os efeitos do apagamento sistêmico operado contra elas. Sendo uma escolha confessamente pessoal, afetiva e política, me pareceu oportuno avaliar o processo de tradução dos poemas por meio da teoria da identidade do tradutor. Me interessa investigar de que forma minha identificação com alguns aspectos da biografia e da poética de Cowen influenciam o processo tradutório. Bem como, propor uma prática de tradução que reconheça tradutores enquanto sujeitos dignos de visibilidade, tendo seu exercício profissional amparado por um viés humanizado, cocriativo e emancipatório.
Depois de um longo e progressivo desenvolvimento, os Estudos da Tradução passaram a considerar uma ampla gama de aspectos concernentes ao seu escopo teórico. Se, em suas primeiras investigações, a atividade tradutória foi reduzida a uma operação mecânica de transferência linguística, desdobramentos contínuos expandiram o campo da tradução ao ponto de borrar suas fronteiras. No livro seminal de Antony Pym,
Essa perspectiva faz parte de uma prática interdisciplinar entre os Estudos da Tradução e a Psicologia, além de estar a par com os princípios dos multiletramentos (campo de destaque da Linguística Aplicada contemporânea) no que se refere à herança iluminista das ciências ocidentais. Como aponta Roxane Rojo, em
No que se refere à prática tradutória, o princípio da neutralidade serviu como parâmetro para uma noção de tradução cristalizada em conceitos como objetividade, equivalência e fidelidade. O que se esperava de um tradutor para as correntes mais antigas e, inclusive, para o imaginário popular, era que ele fosse invisível. A dizer, esperava-se que o tradutor tivesse a capacidade (eu diria possibilidade) de encontrar uma correspondência tão exata para aquilo que traduzia, que ninguém perceberia que ali fora feito um trabalho de tradução. Em suma, era considerado ideal apagar tanto o sujeito tradutor, quanto o seu trabalho. Impedido de realizar essa tarefa pela própria natureza da linguagem, o tradutor se vê obrigado a perseguir a maior neutralidade possível diante dos objetos de tradução. Contudo, essa atitude, antes de garantir uma tradução “transparente”, acaba por turvar tanto a tradução enquanto objeto de pesquisa, quanto a prática tradutória real de sujeitos reais inseridos em contextos reais.
Segundo a apresentação de Maria Paula
os teóricos (inspirados por Michel Foucault, Roland Barthes e outros) salientam a ideia de que ninguém é livre ou autônomo; que todos, e consequentemente todas as suas atitudes, estão subordinados a valores culturais e forças históricas. Essa visão necessariamente implica que não podem existir nem a autoria como criatividade puramente individual, nem a tradução como atividade absolutamente neutra.
A pesquisadora coloca em xeque uma possível independência da atividade criadora e da atividade tradutória dos sujeitos por trás de ambas; ou seria mais acertado dizer à frente? No que se refere à autoria, essa impossibilidade reside na coletividade constitutiva de cada sujeito. E no que se refere à tradução, essa impossibilidade reside nas múltiplas línguas/linguagens, ideologias, culturas e geografias que atravessam o sujeito tradutor, impedindo- o de não se posicionar, mesmo que inconscientemente, diante das escolhas que faz ao traduzir.
Além disso, há a questão do caráter instável da significação. Em
Por bastante tempo a tradução foi concebida a partir de uma visão essencialista da linguagem, que acredita(va) em uma operação neutra de transferência de significados fixos entre uma língua e outra. Essa visão orientou os discursos a respeito da prática tradutória e de seus profissionais, resultando no critério da invisibilidade. Desde então, o tradutor vem se esforçando ao máximo para passar despercebido. Em seu projeto de pesquisa sobre Interdiscurso e Identidade, Maria José
o próprio conceito com o qual estamos lidando, “identidade”, é demasiadamente complexo, muito pouco desenvolvido e muito pouco compreendido na ciência social contemporânea para ser definitivamente posto à prova (
Dessa forma, para as finalidades do presente artigo, aqui utilizaremos o conceito em sua acepção mais comum, a noção de definição pessoal a partir de características (intrínsecas e/ou extrínsecas). Embora identidade aqui se refira a essa definição pessoal, a construção dessa definição acontece de forma coletiva. No artigo
De modo a viabilizar uma prática tradutória possível e real, bem como uma pesquisa cientificamente progressista da mesma, interessa aos estudiosos da identidade do tradutor destacar os processos linguísticos e psicológicos que necessariamente atravessam a prática da tradução. E, ainda,
explorar, através do instrumental fornecido pela tradução, as várias relações que se estabelecem entre poder e cultura: a construção da imagem de um autor, de uma literatura, de uma ciência ou filosofia e até mesmo de um tradutor consagrado; as relações entre culturas dominantes e culturas dominadas, entre línguas dominantes e dominadas; a manipulação - consciente ou inconsciente, implícita ou explícita, mas sempre inevitável - de textos a serviço desta ou daquela ideologia e, finalmente, a própria concepção de ideologia como inspiradora desta ou daquela “fidelidade” ao original (
Trata-se, portanto, de expandir o objeto de tradução para uma análise do (con)texto do autor e do tradutor. Em outras palavras, tirar o véu que cobre a dimensão política desse e de todo e qualquer fato linguístico. Conforme aponta
Uma das principais propostas dos estudos [da Tradução] nas últimas, digamos, quatro décadas, tem sido
O caráter insurgente dessa concepção fica explícito no verbo lutar, em destaque. Se a invisibilidade do tradutor e a negação de sua identidade no processo da tradução ainda são premissas e práticas institucionalizadas, às quais é preciso jogar luz e abrir caminhos alternativos, fica patente a urgência de investigações e discussões que se debrucem sobre esse problema. Esse trabalho objetiva somar forças nessa orientação teórica, ao mesmo tempo em que elabora uma prática condizente com o reconhecimento da identidade do tradutor e sua visibilidade.
Esse trabalho partiu do princípio de que no exercício tradutório empregado por mim, minha identidade influenciaria, necessariamente, o processo e o resultado da tradução. Essa manifestação da minha subjetividade ocorreu, inicialmente, a respeito da escolha da autora e posteriormente da escolha dos poemas a serem traduzidos. Foi a minha identidade militante feminista que falou mais alto no momento de preferir uma autora invisibilizada, pertencente a um movimento artístico do meu interesse, também por questões identitárias. Além disso, enquanto escritora independente, o fator da (in)visibilidade me tocou bastante. Como eu poderia desejar e perseguir uma prática tradutória invisível, conhecendo a invisibilidade autoral e investigando a invisibilidade das escritoras pertencentes ao movimento
Durante a tradução dos poemas
Por fim, a partir da tradução dos poemas, amparada pela fundamentação teórica da identidade do tradutor, analisarei, no presente trabalho, as intervenções identitárias, registradas em diários de tradução, confrontando-as com as escolhas finais, a fim de verificar as relações (de poder, ideológicas, culturais e paradigmáticas) que permearam toda a prática. Ainda, buscarei explicitar os processos psíquicos e emocionais experimentados nos processos tradutórios, de acordo com as expectativas (ou não) de neutralidade, e como eles interferem na atividade profissional do tradutor.
O projeto teve início com uma pesquisa a respeito das autoras mulheres pertencentes à geração
Acredito que dois fatores sejam importantes no destaque dado a essas autoras. O primeiro, é que elas pertenciam ao círculo dos escritores homens do movimento e o segundo, é que com exceção de Anne Waldman e Elise Cowen, essas mulheres escreveram memórias, gênero propício tanto para a denúncia do apagamento sofrido, quanto para o resgate da literatura, por meio da própria literatura das autoras. Ainda assim, o anonimato a que foram relegadas, por muitos anos, só começou a ser rompido na década de 1990, quando “pesquisadoras especialistas na Geração Beat [...] começam a pensar formas de organizar as mulheres que não apenas conviviam e se relacionavam com os homens do grupo, mas também escreviam e publicavam” (
Dentre as autoras citadas, Elise Cowen chamou a minha atenção por sua história trágica. A poeta se suicidou aos 29 anos, atirando-se da janela do apartamento de seus pais. Elise já havia publicado em revistas literárias do momento, mas não pode publicar um livro em vida. Tudo o que havia de material literário da autora estava na casa de seus pais, com exceção de um caderno deixado na casa de um amigo. Na ocasião da morte de Elise, seus pais, com o auxílio dos vizinhos, incendiaram todos os escritos da poeta, restando apenas o caderno do qual resultou o seu livro, publicado recentemente, em 2014. A motivação que levou os pais de Elise a se apressarem em eliminar qualquer vestígio de seus registros poéticos foi o conteúdo dos escritos, marcados por sua bissexualidade e vivência
Motivada a atuar contra essa invisibilidade infligida às mulheres
Na dissertação de mestrado de Anthony Andrew
A Cockroach
Uma barata
1 A cockroach
Devagar e com cuidado
2 Crept into
Uma barata macho
3 My shoe
Atraída pelo escuro perfume
4 He liked that fragrant dark
Entrou no meu sapato
5 A cockroach
Essa barata
6 Climbed into
Escalou
7 My shoe
Meu sapato
8 Away from cold & light
Para longe do frio e da luz
9 I crept my hand
Devagar e com cuidado
10 In
Coloquei minha mão
11 After him
Depois que ela entrou
12 Cockroach
Barata,
13 The best I can do for you
O melhor que eu posso fazer pelos seus
14 Is compare you to bronze
É te comparar ao bronze
15 And the jews
E aos judeus
16 You're not really welcome
Apesar disso,
17 to use my shoe
Você não é assim tão bem-vinda
18 For a roadside rest
para usar meu sapato
Como um hotel de beira de estrada
19 Obvious
Óbvio,
20 From the shadow of my hand
Que da sombra da minha mão
21 You keep coming back
Você continua voltando
22 across my floor
Cruzando meu chão
23 For more? - look -
Por mais? - Veja -
24 You've lost an antenna
Você perdeu uma antena
25 I treat you
Séria
26 seriously affectionately as a child
E afetuosamente
Eu te tratei como a uma criança
Quando o Eu-lírico utiliza a palavra
Tendo compreendido, apoiada na interpretação de
toda reescrita, qualquer que seja sua intenção, reflete uma certa ideologia e uma poética e [...] manipula a literatura de modo a que ela funcione, em uma dada sociedade, de determinada maneira.
Outra alteração significativa da forma, que implica em uma alteração poética e ideológica do poema, foi o acréscimo da conjunção subordinativa concessiva “apesar disso”, na tradução do verso 16. De modo que o Eu-lírico cita o povo judeu, com quem compara com a barata e enfatiza que essa não é bem-vinda em seu sapato, optei por colocar uma conjunção que denotasse a consideração do Eu-lírico pela condição da barata. De acordo com a minha leitura interpretativa, sem essa concessiva, parecia que o Eu-lírico estava rejeitando o povo judeu, por haver rejeitado a barata, com quem o acabara de comparar. No processo tradutório, primeiramente optei por separar esse verso em outra estrofe, mas ao fim, decidi por acrescentar a conjunção. Aqui ficam patentes as ideias apresentadas por
Ainda, outro ponto que chama a atenção na tradução e que foi registrado no diário como uma escolha conscientemente atravessada pela identidade da tradutora
Em contraste, nos outros poemas, as baratas que simbolizam as mulheres da geração são localizadas em ambientes domésticos
1 Keep out of the light
Fique longe da luz clara
2 Out of the dangerous radiance of
Longe da perigosa radiação
3 Bong Eyes
Dos olhos de bong: vidro e fumaça
4 Respect the cockroach centuries
Respeite os séculos d
as baratas
5And the heavy confection of plunder kitchen
e a pesada confecção da cozinha saqueada
A estratégia tradutória utilizada para marcar essa perspectiva de gênero foi o destaque feito em itálico a “elas”, na palavra “delas”, visando formar, por meio das “duas palavras”, uma ambiguidade na frase, sugerindo que os séculos se referem tanto às baratas quanto às mulheres e, ainda, consequentemente, exigindo respeito para a história de ambas. Essa foi uma opção marcada tanto pela minha identidade feminista quanto pelo próprio objetivo do projeto, que era dar visibilidade à poética dessas autoras, de modo a respeitar suas vidas e obras. Aqui, ficou evidente o desejo de totalidade manifesto pelo desejo de autoria que explica
Um outro aspecto relevante dessa tradução foi a escolha de fazer um texto alvo rimado, diferente do texto fonte. Essa escolha, mostra de uma liberdade tradutória, se baseou no fato de haver uma ocorrência frequente de rimas no trabalho da autora e numa decisão estética pessoal: achei que o poema mais ritmado, por ser curto, ficaria mais sonoro e interessante.
A tradução do poema
Morning blessing from Elohim
Benção matinal de Elohim
1 From
De
2 Who
Quem
3 Opened back one petal of the lavender crocus
Abriu uma pétala da flor de açafrão
4 23 1/4 minutes past 7 Feb 2 at the window
7 hrs, 28 min e 15 seg, 2 de fevereiro, na janela
5 All the housework before breakfast
Todas as tarefas domésticas antes mesmo do café da manhã
6 Is blasting the wind 26 miles an hour
o vento soprando a 42 quilômetros por hora
7 Lightening the blue in the airshaft
iluminando o azul no vão do prédio
8 Carrying the voice through the small
levando a voz do pequeno
9 Radio in the living room here into
rádio da sala para
10 the kitchen along with the clock tick
a cozinha junto com o tique-taque do relógio
11 28 minutes past 7 and parade music
7 horas, 28 minutos e música de desfile
12 Who bowing graciously grateful in who
Quem se curvou graciosamente e com gratidão por quem
13 Black Flag giving up busy cockroach
Bandeira Negra desistindo de baratas ocupadas
14 Wu during the night & killing cockroaches
Xamã(ndo) Wu durante a noite e matando outras baratas
15 again this morning
De novo, nessa manhã
16 Who six-digit up my leg
Quem subiu seis dígitos na minha perna
17 Who makes flower shadow on the open petal
Quem fez sombra na pétala da flor aberta
18 Groundhog Day
Dia da Primavera
A primeira afirmação que faço no diário de tradução desse poema é que o traduzir foi extremamente desafiador. Não conseguia compreender um sentimento, uma atmosfera geral no tecido poético, muito menos uma sequência diegética. Mesmo diante dessa espécie de vazio em relação a leitura do poema, me esforcei por atribuir uma cadeia de significações para além do significado mais imediato das palavras. Foi, sobretudo, por meio dos recursos imagéticos, que consegui inferir alguns sentidos possíveis para o desenvolvimento do poema. Mas algumas construções eram muita obscuras, por exemplo, o verso 4, em que a disposição 23 1/4 não se remetia a nenhuma marcação de horário usual. Imaginei que o Eu-lírico pudesse estar se referindo à marcação dos segundos, mesmo ficando inquieta diante dessa tradução, devido ao fato de, na época em que o poema foi escrito, não haver relógios digitais com marcação de segundos.
A partir do verso 12, o poema vai perdendo a frágil linearidade construída, segundo minha interpretação, nos versos anteriores, na qual o Eu- lírico observa (a passagem d)o tempo, em uma manhã, pontuando diferentes acontecimentos e circunstâncias: o florescimento da flor de lavanda, tarefas domésticas, o vento, ondas sonoras, um desfile, o Dia da Primavera... Do verso 12 em diante, o Eu-lírico repete o pronome relativo “
Apesar de a tradução literal ser também uma tomada de posição interpretativa, a tradução operada nesse poema foi mais presa às definições dicionarizadas, sem uma operação criativa mais autônoma da minha parte, que levasse em conta não apenas as correspondências entre as palavras de cada língua, mas principalmente, o contexto discursivo e poético em que as palavras estavam inseridas. Aqui, cabe convocar o entendimento de tradução enquanto comunicação entre culturas, de
A tradução desse poema também chamou atenção para um aspecto do texto literário, sobretudo na estética modernista: o de que alguns poemas foram escritos de modo a explicitar o caráter inexato da significação, a impossibilitarem interpretações fechadas, a não serem compreendidos. É sintomático que a tradutora se esforce por conferir um sentido até onde esse foi propositalmente camuflado, visto que “os critérios de avaliação de textos traduzidos (...) giram em torno de um ideal de fluência na leitura, que recomenda a ausência de frases desajeitadas, de construções não idiomáticas e de significados confusos” (
Assim, mesmo familiarizada com as teorias da identidade do tradutor, não consegui realizar uma tradução que transformasse o texto alvo, ou trechos desse, a ponto de romper com o exercício de substituição de termos e construções correspondentes. Atitude que
mitificação do autor por parte do tradutor que se curva diante dele, sobretudo quando se trata de um nome (re)conhecido, a ponto de almejar uma fidelidade ímpar, o que o leva a lutar com todas as suas forças contra qualquer gesto de interpretação a qual, por alguma razão, venha a corromper as ideias ou as palavras do mestre.
Inclusive ao traduzir uma escritora marginalizada, essa atitude se confirmou. Talvez também por isso, pois ter como objetivo um maior alcance da voz (poética) de Elise Cowen pode ter inibido investidas autorais no processo tradutório, como se essas pudessem ser outra forma de invisibilidade à autora. Logo, me conformei a operar pequenas transformações, que não modificassem o poema a ponto de torná-lo irreconhecível. Me permiti algumas liberdades, como a definição de “
Essa prática tradutória baseada em operar pequenas transformações sem alterar o poema substancialmente acabou sendo a prática utilizada em todos os poemas, funcionando melhor em alguns casos do que em outros. Tomemos de exemplo a tradução do poema
1 And not to forget
E não esquecer
E não esquecer
2 the cockroach
da barata
3 that crawled across
que se rastejou solícita
4 the floor & painted
pelo chão & pintou de
5 blue under the stove
azul tristeza embaixo do fogão
6 somewhere in the [ ]
em algum lugar [ ]
7 to God knows where
sabe-se lá Deus onde
Tanto na palavra
Mesmo quando o resultado me pareceu melhor, não pude deixar de sentir insatisfação com o resultado das traduções. E até as pequenas modificações me causaram inquietação, conforme pode ser verificado no registro do diário de tradução
- Acrescentei a palavra tristeza como se fosse uma tonalidade da cor azul, de forma a manter a ambiguidade da palavra em inglês, mas fiquei receosa de estar colocando sentidos antes não previstos pelo poema, apesar de saber que essa é uma operação razoável em se tratando de tradução de poesia.
- Me sinto insatisfeita com a 1ª tradução. Me frustra o fato de eu não conseguir interpretar o poema em inglês o suficiente para recriar, a partir da minha identidade enquanto leitora e tradutora, uma versão em que algum sentido implícito seja sugerido de forma mais definida.
Destaco as palavras “receosa”, “insatisfeita” e “frustra[da]” para apontar o desgaste psíquico experimentado no processo de tradução que está associado ao sentimento de culpa pontuado por
- Optei por manter “azul-tristeza”, mesmo sabendo, e talvez por isso mesmo, que essa é uma escolha pautada na identidade da tradutora. Por ser cheia de lacunas, inclusive expressas por sinais gráficos como “[ ]”, a poesia de Elise convoca a participação do leitor. Para um processo de tradução, em que as palavras são lidas e pensada pelo seu viés plurissignificativo, achei razoável acrescentar uma palavra prevista pela ambiguidade de
Ainda que essa liberdade conquistada durante o processo tenha sido tardia, no sentido de abordar o texto no momento da primeira leitura com uma maior segurança e autonomia interpretativa, ela foi determinante para a finalização da tradução do poema. No trecho citado, fica manifesto meu desejo de autoria e nota-se, inclusive, um sentimento de orgulho pelas transformações operadas, diametralmente oposto ao sentimento de culpa experimentado no primeiro momento da tradução. Esse movimento polarizado da prática tradutória ilustra o lugar do tradutor
entre a ânsia de fidelidade e a impossibilidade de ser fiel; entre a busca das intenções do autor e a impossibilidade desse encontro; entre o consciente e o inconsciente; entre a necessidade e a impossibilidade da tradução; entre a reprodução e a criação (
Por fim, o poema
1 Must I move to get away from killing you
Será que eu vou ter que fugir de você para não te matar
2 And carry to Sutton Place in the back of my mind
Me mudar para Sutton Place, no fundo da minha mente
3 back to San Francisco ants
de volta às formigas de São Francisco
4 To get away from you?
Para fugir de você?
5 I know -
Eu sei -
6 I'll starve a hungry cat
Que vou esfaimar um gato faminto
7 And name it Darwin
A quem darei o nome de Darwin
8 Angels
9 If I crawled into your crack in the wall
Se eu rastejasse brecha adentro da sua parede
10 Four clumsy appendages, too dumb to talk
Com quatro patas desajeitadas, e burra demais para falar
11 What would you & your dynasty do?
O que você & sua dinastia faria?
12 Tickle me to death under your indifferent feet
Me fariam cócegas com seus pés indiferentes até que eu morresse de rir
13 Teach me to be a makeshift cockroach
Me ensinariam como ser uma
14 Live off my flesh & use the bones for cockroach walls
Viveriam de minha carne & usariam meus ossos para as barricadas dos seres subterrâneos
15 Cockroaches
Baratas do esgoto,
16 Prepare
Preparem-se
17 I'm coming in
Estou chegando
A partir do verso 8 eu começo a imprimir a minha interpretação do poema, apoiada fortemente na interpretação de
Conforme registro no diário de tradução, me senti satisfeita com a tradução do poema por ele ter me possibilitado, a partir de uma interpretação mais justificada, uma transposição criativa menos presa à aderência semântica do que a transposição criativa realizada em traduções literais. Essa necessidade de justificação joga luz sobre o aspecto da autoridade intelectual, no caso o pesquisador
Intitulei o projeto de tradução de poemas de Elise Cowen como “(Re)viver Elise Cowen”. Ainda que pouco delineado o aporte teórico e anterior aos resultados obtidos pela tradução e pela análise dessa, o projeto, em seu início, já objetivava visibilidade e sobrevivência. Traduzir Elise Cowen era, a princípio, uma tentativa de reviver a poeta e fazer ressoar a sua voz. Logo, durante o processo, procurei ser fiel as suas palavras e ao seu fazer poético, ao mesmo tempo em que me deparava com a minha voz autoral. Como não poderia deixar de ser, pois ao me propor a cocriar as baratas de Elise, me propus também a dispor da minha bagagem emocional e intelectual, do meu (in)consciente e do meu trabalho de leitura, interpretação, mediação e autoria, se assim posso resumir o trabalho de tradução.
Nessa tentativa de dar visibilidade à poeta, sem sacrificar a minha voz, assumi diferentes posturas, inclusive contraditórias, ao longo das traduções. É próprio do exercício tradutório não apenas o câmbio linguístico, mas também o emocional, esse trânsito por (entre)lugares. A esse respeito,
a tradução, como qualquer forma de re-escrita, não surge de mão mecânica, neutra e obediente a um significado já fixado em uma gramática, em um dicionário, em uma língua tomada como Uma, como idêntica a si própria; nem se origina em uma cabeça que se suponha livre e imaginativa, capaz de racional, consciente e autonomamente reinventar ou quebrar o tecido uniforme da língua.
De modo que, seja imbuído do desejo de fidelidade, completude e invisibilidade ou do desejo de transformação, cocriação e visibilidade, o tradutor não tem o poder de controlar plenamente os sentidos e a recepção dos textos fonte e alvo. Seria mais frutífero, então, reconhecer as limitações e possibilidades de sua prática, a fim de humanizar o seu trabalho, bem como ressignificar os objetivos da tradução, principalmente, literária. Sendo a interpretação uma atividade atravessada pela subjetividade e identidade de cada leitor, a tradução não pode ser diferente, uma vez que é realizada após leitura e interpretação. E quanto mais liberdade o tradutor tiver para interpretar e transformar o texto fonte, sobretudo quando o acesso aos sentidos é dificultado pelo próprio texto, mais comunicativas serão suas traduções e com maior potencial de garantir a (sobre)vida do texto. Em outras palavras, sem a minha voz, a voz de Elise não poderia ser ouvida pelo público leitor de língua portuguesa que não compreende a língua inglesa.
O principal nome político envolvido na chamada “caça aos comunistas” foi o do senador Joseph McCarthy. O senador foi o responsável, dentre outras investidas coercitivas, pela Lei Feinberg que proibia as escolas de contratarem professores “subversivos” e poderia demitir todos os docentes que considerassem “comunistas”. A perseguição de McCarthy foi tão ferrenha que o anticomunismo passou a se chamar de macarthismo.
Esse movimento teórico também está a par da discussão foucaultiana de saber/poder, bem como da descentralização operada pelos estudos culturais e pós-coloniais em relação a epistemologia da modernidade.
Há um episódio narrado em
Baratas seculares: a imagem da barata como metáfora da mulher e artista beat marginalizada na série de poesias sobre baratas de Elise Cowen, tradução minha, bem como de toda as citações à dissertação do autor, presentes no artigo.
Utilizarei essa forma quando estiver me referindo a traduções realizadas por mim.
É relevante notar que a estrada é um dos principais temas da estética literária
Ainda que nesse poema a barata cruze a casa do Eu-lírico, a alusão a seu sapato enquanto um “
O poema não tem título, por isso é mencionado pelo seu primeiro verso.
Interpretei “
O poema não tem título, por isso é mencionado pelo seu primeiro verso.
O diário não foi publicado.
O poema não tem título, por isso é mencionado pelo seu primeiro verso.
O nome
Por diversos momentos durante a pesquisa eu questionei as interpretações de Jaime, mas acabei recorrendo a elas, baseada no pensamento de que por ele ser falante nativo da língua inglesa, estar mais próximo à cultura de Cowen e realizando uma pesquisa de mestrado sobre sua poética, ele provavelmente estaria mais próximo também dos sentidos textuais da poesia da autora. O que pode ser verdade. Me interessa, contudo, pontuar o sentimento de inferioridade experimentado por leitores comuns ou menos especializados e, ainda, a possibilidade de que esse leitor (também) realize interpretações pertinentes.