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Pesquisa mostra como ler Machado de Assis através das estrelas

Release de Margareth Artur para o Portal de Revistas da USP

O período da noite, à primeira vista, significa tempo de dormir e descansar. Mas a noite também contempla outros significados, subjetivos ou imbuídos de simbologias, principalmente relacionadas ao desconhecido, à sensação de perigo e a toda sorte de criaturas fantásticas que fogem à lógica. Temerosa e fascinante, ela é tema recorrente na literatura mundial, sobretudo no Romantismo do Brasil, “cujo fascínio pairava sobre o indivíduo isolado e melancólico que da atmosfera noturna fazia um confidente“, afirma Raphael Valim da Mota Silva, no artigo da revista Opiniães, revelando ao leitor uma imagem recorrente na ficção de Machado de Assis – a noite e os elementos a ela “ligados semanticamente“: a lua, a névoa, os astros, as estrelas.

Quando chega a noite, toda cautela é pouca“, afirma Silva. À primeira vista pode paracer estranho esse caráter “noturno” na obra de Machado de Assis, considerado o maior escritor brasileiro. Mas o artigo mostra que, se Machado lança mão, em seus citados romances, do simbolismo romântico desse aspecto específico da natureza, o noturno, também encontramos, dentro dos mesmos cenários, nos romances Ressurreição (1872), A mão e a luva (1874), Quincas Borba (1891) e Dom Casmurro (1899), a crítica social da qual o romancista não prescinde. A pesquisa enfatiza a postura crítica e irônica de Machado em relação ao tratamento dispensado ao tema pelo Romantismo, peculiaridade que “tem o poder de tornar possível o improvável: a ideia que se pode ler Machado de Assis através das estrelas“. Silva observa que os elementos noturnos participam da construção narrativa, das reações e intuições dos personagens.

Quando a natureza noturna emerge, não é por acaso“, denotando ao leitor “a dimensão astrológica da noite” nos romances machadianos citados acima. Em Ressurreição e A mão e a luva, os elementos noturnos, recorrentes no imaginário popular, são, “em certa medida, satirizados“. Em Quincas Borba e Dom Casmurro, a ironia permanece, mas a ela se juntam cenas de contraste social bem demarcadas, exploradas pelo lado mais crítico do autor. A atmosfera noturna não apenas sugere subjetividades românticas e emotivas, mas também reflete o jogo político e a diferença de classes. Tecendo uma analogia com a lua crescente, o artigo faz referência ao “astrólogo equivocado“, tendo como exemplo o romance Ressurreição, “ponto fora da curva na produção romanesca do Brasil da década de 1870“, optando-se, aí, pela análise de paixões e caracteres, em que o protagonista é um homem complexo, incoerente e caprichoso.

Na analogia com a lua cheia, A mão e a luva conserva o elo entre noite e ingenuidade – como a “frouxidão do apaixonado“. Na analogia com a lua minguante, a crítica social é mais destacada. Em Quincas Borba, emergem os contrastes sociais e “figuras indesejadas surgem das sombras“. Paralelamente ao legado romântico, Machado mostra a diferença de classes na sociedade brasileira, “que permite aos que já estão em alta sonhar com as estrelas, enquanto os que estão em baixo têm de se contentar com a dureza do chão“. Na analogia com a lua nova, em Dom Casmurro a noite representa o jogo social, em que o personagem “Bento Santiago mostra que a “mentalidade romântica que já não funciona em um mundo dominado pela ambição”“.

Se, na ordenação das fases da lua, a lua nova costuma vir primeiro, na obra machadiana ela é a última. Durante essa fase, não é possível observar a lua, pois sua face não iluminada está voltada para a Terra. O autor nos conta que “a cena noturna“, a lua e as estrelas vão perdendo o sentido na medida em que Machado vai publicando novas obras, dando lugar à crítica e à ironia que revelam a construção narrativa das obras machadianas. Comenta Silva que o “Bruxo do Cosme Velho” não despreza a noite; ao contrário, ao “reelaborá-la” é possível constatar um “certo apreço“a ela, “desmembrada em seus sentidos mais corriqueiros por um autor que encontrou, para cada estrela que brilha, um pouco de atribuição humana“. 

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Artigo

VALIM DA MOTA SILVA, Raphael. Metamorfoses noturnas – Machado de Assis, o legado romântico e a crítica social. Opiniães, São Paulo, n. 15, p. 258-279, 2019. ISSN: 2525-8133. DOI: https://doi.org/10.11606/issn.2525-8133.opiniaes.2019.156319. Disponível em: https://www.revistas.usp.br/opiniaes/article/view/156319. Acesso em: 19 fev. 2020 

Contato

Raphael Valim da Mota Silva – Mestrando em Teoria Literária e Literatura Comparada – FFLCHUSP.  raphael.valim.silva@usp.br

 

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