Chamada aberta - dossiê nº 54: “As bibliotecas multilíngues dos escritores”

2024-04-25

Editores: Olga Anokhina, Max Hidalgo Nácher
Prazo para submissão: até 15 de outubro de 2024

A biblioteca foi tradicionalmente considerada como uma imagem e um depósito de conhecimentos e, mais recentemente, como um espaço de criação literária. Bem antes de A biblioteca de Babel, de Borges, e da enciclopédia do saber contemporâneo, de Bouvard e Pécuchet, as bibliotecas representaram um motor da criação literária. Já em Dom Quixote – livro nascido de outros livros e no qual as bibliotecas aparecem com recorrência – são presentes tanto a biblioteca desmesurada de Alonso Quijano (transformada pelo efeito de suas leituras em Dom Quixote) como a biblioteca mínima, composta de três livros, que contém a mala do vendeiro (I, 32). Como Cervantes, que escreveu uma obra que obteve sua textura a partir da matéria dos livros, sabemos que Borges e Flaubert leram muitos livros para escrever suas obras. As bibliotecas dos escritores são, assim, ao mesmo tempo oficina e receptáculo da obra porvir. 

Além dos trabalhos específicos sobre as bibliotecas de certos autores ilustres, existem alguns estudos gerais sobre as bibliotecas dos escritores e dos tradutores e sobre as diferentes práticas de marginália, que mostram a importância da relação com o livro e com a biblioteca no processo de criação.¹ A propósito, as pesquisas conduzidas pela equipe Multilinguismo, tradução, criação  do ITEM² tem mostrado com frequência que “o monolinguismo aparente pode esconder o multiculturalismo e o plurilinguismo”³ dos criadores, incluindo os escritores nacionais mais emblemáticos. O plurilinguismo desses escritores se mantém oculto, pouco conhecido pelo público e pela crítica, e apenas é revelado por documentos de trabalho (pelos rascunhos, notas, roteiros), pela correspondência e pela biblioteca do autor. 

Os rascunhos e a correspondência4 nos informam sobre as línguas mais “ativas”, praticadas no cotidiano e durante o processo criativo pelos escritores plurilingues, pois o bilinguismo amplamente (re)conhecido – como o de Nabokov, o de Beckett ou o de Tolstoi – pode, na verdade, ocultar o verdadeiro plurilinguismo. As bibliotecas dos escritores oferecem, quanto a elas, uma visão espectral linguística do criador ainda mais ampla e mais aberta, dando as informações sobre as línguas “lidas” e “compreendidas” por um escritor, que participam de sua formação intelectual e que podem influenciá-lo em suas práticas criativas em uma língua “nacional”. 

Ainda, há os exemplos das bibliotecas de Haroldo de Campos, composta por mais de 20 mil livros, em ao menos 37 línguas5 , e a de Umberto Eco, que contém mais de 45 mil volumes em várias línguas. Mais do que dar forma a um universalismo monolíngue, como isso se produz com frequência na literatura atual6, essas bibliotecas assumem um espaço de tensões múltiplas e fraturadas, na qual é possível ler a inscrição de certas línguas dentro das outras, de certas obras dentro das outras. 

Este dossiê da Manuscrítica se propõe, assim, a analisar as bibliotecas a partir da problemática de um multilinguismo disperso entre o mito de Babel e o mito de Pentecostes. As contribuições para este número, sejam elas estudos de casos concretos ou de reflexões mais gerais e transversais, vão abordar inúmeros questionamentos: 

  • O que é uma biblioteca multilingue? 
  • Qual é a relação entre as bibliotecas e o multilinguismo? 
  • Qual é a relação entre o multilinguismo das bibliotecas e o trabalho criativo dos escritores?
  • Como as anotações que o leitor marginalista inscreve nos volumes de sua biblioteca colocam em contato as diferentes línguas? 
  • Quais informações sobre o domínio de línguas oferecem as marginálias de escritores? 
  • Qual o lugar que ocupa a tradução neste contexto? 

Mais do que demonstram os rascunhos – que revelam o verdadeiro processo criativo e o papel de diferentes línguas na criação de uma obra, no caso de escritores plurilingues – e a correspondência – que permite ter uma noção bem precisa das línguas dominadas por um escritor e seu nível de proficiência –, as bibliotecas de escritores impõem uma reflexão essencial: será que existem, no fundo, bibliotecas monolíngues? De fato, todo escritor cria no interior de um sistema que poderia ser designado como Weltliteratur7, do qual ele é o produto e que o inspira, guiando sua própria criação. Original ou tradução, a leitura de obras literárias e críticas provenientes de outros horizontes linguísticos, geográficos e culturais, faz com que todo escritor, seja qual for sua língua de expressão, se inscreva nessa cosmologia cultural universal, que inclui todas as línguas do mundo.

A Manuscrítica - Revista de Crítica Genética recebe contribuições em português, espanhol, francês e inglês. Para consultar as seções da revista e as diretrizes para autores, acessar: https://www.revistas.usp.br/manuscritica/about/submissions 

 

Notas:

1 Paolo D'Iorio et Daniel Ferrer (dir.), Bibliothèques d'écrivains, Paris, CNRS Éditions, « Textes et manuscrits », 2001 y Olivier Belin, Catherine Mayaux et Anne Verdure-Mary (dir.), Bibliothèques d’écrivains. Lecture et création, histoire et transmission, Torino, Rosenberg & Sellier, 2018 ; H. Jackson, Marginalia: Readers Writing in Books, New Haven, Yale University Press, 2001; Dirk Van Hulle y Wim Van Mierlo, Variantes, nº 2/3 (“Reading Notes”), Amsterdam, New York, Rodopi, 2004; Orgel, Stephen, The Reader in the Book : A Study of Spaces and Traces, Oxford University Press, 2015.

2 http://www.item.ens.fr/multilinguisme/

3 Anokhina Olga & Emilio Sciarrino, « Présentation, plurilinguisme littéraire » in Anokhina Olga & Emilio Sciarrino (dir.), « Entre les langues », Genesis, n° 46,  p. 7.

4 Françoise Leriche et Alain Pagès (dir.), Genèse & Correspondances, Paris, Éditions des archives contemporaines, 2012.

5 Max Hidalgo Nácher, « Translation and Anthropophagy from the Library of Haroldo de Campos », in Delfina Cabrera et Denise Kripper (eds.), The Routledge Handbook of Latin American Literary Translation, Routledge, 2023.

6 Esta tendência caracteriza em menor medida as épocas anteriores. Ver, por exemplo, Olga Anokhina, Till Dembeck, Dirk Weissmann (dir.), Mapping Multilingualism in 19th Century European Literatures / Le plurilinguisme dans les littératures européennes du XIXe siècle, Lit-Verlag, 2019.

7 Christophe Pradeau et Tiphaine Samoyault (dir.), Où est la littérature mondiale ?, Saint-Denis, PU Vincennes, 2005.