Publicada Revista ARA 13

2022-12-26

"[...] Brilhar um brilho eterno,

Gente é para brilhar [...]"[1]

 

 

 

 

Adrienne de Oliveira Firmo
Grupo Museu Patrimônio FAU USP, São Paulo, Brasil. adriennefirmo@gmail.com

 

 

 

Se o mundo ficar pesado
Eu vou pedir emprestado
A palavra poesia

[...]

Se acontecer afinal
De entrar em nosso quintal
A palavra tirania

Pegue o tambor e o ganzá
Vamos pra rua gritar
A palavra utopia.

(JONATHAN SILVA, Samba da utopia, 2018)

 

 

 

Na noite do dia 02 de setembro de 2018, um incêndio de grandes proporções consumiu a maior parte do acervo histórico e científico do Museu Histórico Nacional, Rio de Janeiro, bem como parcela do edifício da sede – evento entre outros de devastação de órgãos de cultura e educação ocorridos em período próximo – a transfomar luzeiro em cinzas e materializar as mazelas e os sufocamentos que assolariam o país nos anos seguintes, sob um governo de intenções totalitárias que arrastaria o Brasil e seu povo a uma série de crises econômicas, políticas, sociais, ambientais e sanitárias, lançando-nos à acentuação da literalidade de um Real cruento, afastando-nos de metáforas ou alegorias, por meio do achatamento propositado de nossas dimensões culturais e educacionais, expressivas de nosso ser comum e dependentes de políticas públicas que as impulsionem. Projeto este iniciado poucos anos antes por meio de um golpe ao governo democraticamente eleito, em 2014, e instalação de acirrado programa neoliberal e excludente, orientado pelo documento chamado “Uma ponte para o futuro” (2015)[2], que, por um lado, reeditava o clichê de Brasil como país do futuro, a nos malograr o presente, por outro, ainda, nos impõe a considerações sobre o devir povo e país que nos propomos enquanto indivíduos e sociedade, porque “a gente quer viver uma nação, a gente quer ser um cidadão”[3].

O legado desse período, curto, mas intenso em suas investidas destrutivas, põe-nos diante de escombros e destroços pessoais e coletivos, como os da perda de direitos sociais, da pauperização, da devastação do meio ambiente, do embotamento psíquico e da morte, concretamente experimentada na perda de quase 700 mil pessoas pela Covid 19, institucionalmente impulsionada, recolocando a pergunta sobre nosso futuro nos termos de como dotar esses fragmentos presentes de significados que nos reorganizem em sociedade voltada para o bem comum e engendrada para o bem viver coletivo.

O conceito de ruína, conforme elaborado por Walter Benjamin (1892-1940), pode ajudar-nos a iluminar as sendas por que caminharemos, enquanto trevas ainda nos rondam, estaria ligado a uma ação histórico-destrutiva, seus fragmentos seriam objetos possíveis de serem deslocados do tempo linear, pelo rompimento no tempo progressivo, a fim de expressar o caráter destrutivo da própria história e, assim, permitir a antecipação de catástrofes vindouras, justamente pela consciência histórica neles presente, de modo a libertar o futuro que o passado não teve, porque, para Benjamin, a história não é linear, mas “um tempo saturado de agoras”[4].

Em Origem do drama trágico alemão (2011), Benjamin considera a obra de arte, o que tomamos aqui como a cultura em suas mais diferentes expressões, ruína, pois é indício do que foi e potência futura, registro e promessa, sendo trabalho do alegorista (aquele interessado em ressignificar o já ido e a “contar a história que a História não conta”[5]), desvendá-la, liquidar as totalidades constituídas e conclamar a significados fora daqueles contextos, a fim de expor a história como história mundial do sofrimento e significativa nos momentos de declínio.

As concepções benjaminianas – como ruína, fragmento, estilhaço deslocado do tempo linear, história como construção e tempo saturado de agoras a liberar o futuro que o passado não teve, bem como a conceituação de barbárie como cultura, memória, experiência e construção de outra tradição, diferenciada daquela que é violência, poder, estado de exceção, perigo e terror – permitem o entendimento desse nosso passado ainda presente e espedaçado, mais que referência, como objeto de conhecimento para a construção do futuro, de um viver histórico não linear, de um real constituído a partir do trauma e do abjeto, da destruição, da cultura como ferida de tal devastação, retornada como recalque, que é o fragmento silenciado do vivido, agora restituído e a antecipar futuros, repetição e retorno inerentes à sociedade de produção e consumo em série, pautada pela dinâmica do descarte e da circulação de tudo como mercadoria, que a leitura anacrônica e crítica de suas partículas reavistas pode produzir novo campo de tensões, antever latências e crises a fim de constituir um diferente vir a ser, “para que amanhã não seja só um ontem com novo nome”[6].

O volver do reconhecimento da fragilidade de nossas políticas públicas reimplica-nos a exacerbar a diligência quanto ao fortalecimento e garantia de estabilidade até mesmo das mais singelas conquistas. Tomando cultura e educação como alicerces da constituição dos grupos humanos e do próprio indivíduo, como campo de tomada de consciência e afirmação da liberdade, emergem, nesse contexto, como domínios a serem defendidos e caucionados na esfera pública em suas concepções de como essencialmente democráticas e humanistas, livres de formalismos estéreis, mas que alcancem, elas sim, a concretude, como são concretos os homens. Conforme propôs Paulo Freire (1921-1997), que sejam práticas da liberdade, escapes da alienação ou minimização da consciência, que permitam ao homem ser sujeito de si mesmo e ao povo ser sujeito de sua história. Torna-se, portanto, urgente e crítico o esforço, sobretudo pelas comunidades acadêmica, cultural, científica e artística, vilipendiadas e dispersas sobremaneira nos últimos anos no país, na reconstrução sólida de educação e cultura que renovem os laços das possibilidades de investigação e criação, que escapem de imposições verticalizadas – como as propostas pelos meios de comunicação, pela indústria cultural, pela mercantilização do ensino e pelo mau uso das tecnologias – e resgatem a liberdade criativa e o conhecimento desmistificado.

O número 14 da Revista ARA, procura nos acionar a tarefa árdua e ética do trabalho incansável em busca da realização da justiça social e do conhecimento, ao mesmo tempo, de preservação e estímulo do fulgor, ainda que em meio ao obscuro e ao precário, na certeza de que “gente é pra brilhar e não pra morrer de fome”[7], é espelho das estrelas e reflexo do esplendor. Convoca-nos a transvalorar a violência e o medo recentemente vividos em amor e destemor, a atravessarmos a escuridão da noite a cismar nossos quefazeres para um amanhecer luminoso e solar à nossa frente, a cuidarmos de germinar nossas flores entre qualquer rancor[8]. A revista, em seu apreço zeloso pelo coletivo e pela diversidade, abre sua chamada para trabalhos comprometidos com propostas de revalorização das instâncias culturais, artísticas, científicas, ambientais, sanitárias e educacionais, em variadas formas, artigos, ensaios, imagens e outros, tendo como fim a contribuição na ampliação dialógica dos temas que hoje nos são caros e urgentes, bem como compreendermos nossos silêncios e estupefações recentes. Vladimir Maiakovski (1893-1930), no poema que inspira o número 14 de ARA, em debate com o Sol, é convocado por este a resplandecer tanto quanto o astro celeste, entre seus trabalhos de elevação da consciência social do povo e sua produção poética, missão e disposição que, hoje, cabe a cada um, a cada gente para que brilhe e, juntos, brilhemos mais.

“Anda, quero te dizer nenhum segredo
Falo desse chão da nossa casa
Vem que tá na hora de arrumar

[...]

Vamos precisar de todo mundo
Pra banir do mundo a opressão
Para construir a vida nova
Vamos precisar de muito amor.”

(BETO GUEDES, O sal da terra, 1981)

 

Bibliografia citada

BENJAMIN, Walter. Obras escolhidas. Vol. 1. Magia e técnica, arte e política. Ensaios sobre literatura e história da cultura. São Paulo: Brasiliense, 1987, p. 222-232 (Tese 14 sobre o conceito de história).

____________. Origem do drama trágico alemão (ed. e trad.: João Barrento). Belo Horizonte: Autêntica, 2011.

FREIRE, Paulo. Educação como prática da liberdade. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1967.

MAIAKOVSKI, Vladimir. “A extraordinária aventura vivida por Vladimir Maiakovski no verão na datcha”, 1920 (tradução Augusto de Campos), in PITHON, M.; CAMPOS, N. (orgs.). Poemas russos. Belo Horizonte: Viva Voz/FALE/ UFMG, 2011, p. 20-23.

 

[1] Vladimir Maiakovski, A extraordinária aventura vivida por Vladimir Maiakovski no verão na datcha, 1920 (tradução Augusto de Campos).

[2] Plataforma política do governo Michel Temer (2016-2018).

[3] Gonzaguinha, É, 1988.

[4] Tese 14 sobre o conceito de história, 1940.

[5] Deivid Domênico, Tomaz Miranda, Mama, Marcio Bola, Ronie Oliveira e Danilo Firmino/ GRES Estação Primeira de Mangueira, História para ninar gente grande, 2019.

[6] Emicida, AmarElo, 2019.

[7] Caetano Veloso, Gente, 2018.

[8] Ver Taiguara, Carne e osso, 1971.